Esta pandemia tem feito a vida negra a muita gente a mim fez, se calhar, a pior coisa que me poderia acontecer: zero vontade de ler. Desisto de quase todos os livros logo nas primeiras páginas, ou fico tempos infinitos para os terminar. Só o Lillias Fraser me levou outra vez para aquele estado de ausência que os livros me costumam levar, mas e pegar noutro?
Não ter doces
Enganei-me ao comprar papel higiénico e trouxe rolos de papel de cozinha. Rimo-nos todos muito, só por isso valeu a pena a troca. E ficam bastante bem no quarto-de-banho.
Os meus filhos andam a fazer ninhos pela casa, isto é, a montar a tenda de campismo em sítios nada próprios. Deve ser o equivalente deles às minhas folhas varridas.
Há cada vez mais pessoas doentes, e conversas de doenças, à nossa volta, nem todas sobre Covid. Nós, os que escapamos não só às doenças, como aos isolamentos profilácticos, começamos a sentir que somos uma raridade, sobretudo quando estamos a viver num dos concelhos de risco extremo.
O Nicolau fez este inquérito ao pai:
1- O que te faz feliz?
2- O que te faz infeliz?
3- Qual o teu maior medo?
4- O que gostas mais de fazer na vida?
O Jaime respondeu: 1) ver-vos felizes 2) doenças nas pessoas que gosto 3) não sei 4) passear com a família, de preferência de autocaravana. Depois fez-lhe as mesmas perguntas, as respostas foram: 1) viajar 2) não ter doces 3) apanhar o Covid 4) andar de bicicleta.
Procrastinar
Imaginem se eu não fosse feminista
Prometo não ter mais ideias sobre férias, ok? Foi só querer usar os domingos a passear para vir a ordem do confinamento. Bom, mas antes disso ainda conseguimos fazer um programa, desta vez a cinco.
A Bea veio dormir à Póvoa e os irmãos acharam que ela tinha de ir experimentar um restaurante onde somos nós a cozinhar na mesa. É um daqueles clássicos, aonde as famílias vão em romaria, com comida realmente boa e um pudim abade de priscos que nos deixa felizes.
Depois, como queríamos deixá-la em casa aproveitámos para ir ver a exposição da Yoko Ono e passear no Treetop Walk. Ir a Serralves é sempre bom, sobretudo quando as exposições valem a pena. Quer dizer, logo no início fiquei espantadíssima por ver, na instalação de korakrit Arunanondchai, uma planta a mexer-se e a questionar-me se haveria algum tipo de sensores. Quando percebi que era um dos meus filhos que estava a conseguir tal proeza não deu para continuar concentrada no que estava a ver (benditas as crianças que visitam exposições sem necessidade de correr e apontar o dedo demasiado perto das obras).
Para piorar a Yoko Ono fez umas instalações interactivas, em que a pessoas podiam pintar, ou carimbar. E como explicar aos meus ricos filhos que nem todas as obras careciam de intervenção, sobretudo a do martelo pendurado?
Resumindo, o Jaime gostou mais da exposição O Sol Não Se Move, Capítulo 35, eu não consegui ver nada muito atentamente, a Bea disse qualquer coisa sobre a Yoko lhe parecer um bocado hippie pedante e todos adorámos passear pela copa das árvores.
O que me deixou perturbada foi ver a Yoko Ono como artista, quando achava que era só a namorada do John Lenon e fazia umas coisas. E ver toda a exposição de R.H. Quaytman convencida que era um homem. O machismo está-nos entranhado.
Culpa
Estava a ver o Dave Chapelle a fazer piadas sobre as violações de Bill Cosby, com um certo desconforto, e a pensar nas mudanças que têm ocorrido na sociedade, muito graças ao movimento #MeToo, quando comecei a ouvir todo o discurso dele dirigido a um carnívoro - ''Sim, ele come carne, mas salva pessoas. E salva mais pessoas do que os animais que mata''.
Há uns anos eu achava que íamos chegar a um estado de evolução em que olharíamos para os tempos em que comíamos carne como agora olhamos para a idade média. Nessa altura era vegetariana, mas provavelmente fartei-me de ser evoluída sozinha. Agora, como mais carne do que deveria e com mais gula, mas não consigo deixar de sentir uma certa culpa.
Sair sem sair
No domingo passado, como não podíamos circular entre concelhos, fomos almoçar à minha mãe. E isso até poderia não ser digno de registo se, de cada vez que vou a casa da minha mãe, não fosse como ir às grutas de Morutaumorubara, em Balibó, Timor-Leste.
Suponho que não tenho qualquer registo dessa viagem, aqui no blog, por ter sido uns dias antes do acidente, mas acreditem que há muitas similitudes entre a ida a essa gruta e os almoços em casa da minha mãe. Aquela ansiedade antes de entrar por não sabermos o que nos espera, o susto com os morcegos a sobrevoar as nossas cabeças no escuro, a vontade de fugir e ficar ao mesmo tempo.
O momento alto, no domingo, foi a diversão depois de termos atolado o carro num terreno que a minha mãe nos pediu para ir ver. O bacalhau também estava muito bom. O pior foi a sensação de não ter feito nada do que me propus.
Bojador e Clarinhas
No quarto domingo fomos a Viana do Castelo, ou melhor, fomos visitar o antigo Navio-Hospital Gil Eannes, porque já conhecemos relativamente bem a ''Pérola do Minho''.
Era escusado ter perguntado se sabiam quem era Gil Eannes para depois não saber responder onde era ao certo o Cabo Bojador. Só me ocorria Vidigueira, por causa do vinho. Enfim, tenho sido um flop como guia turística.
É claro que toda a gente adorou visitar o navio e ninguém achou nada daquilo claustrofóbico, tirando eu.
O almoço foi num restaurante muito sui generis, que antes era um Bingo, mas, além de não ter uma carta de vinhos decente, é caro para o que oferece.
Como a Natário está fechada ao domingo, regressamos pela EN13 para comprar Clarinhas de Fão. Comi quatro.
Poeira
Ontem, estava a ver a Serif a limpar o pó das máquinas de secar da lavandaria e lembrei-me do pó do deserto do Saara que chega à Amazónia e de como me pareceu bonita a ideia de estarmos todos ligados pela poeira.
Fiquei à procura de encontrar a mesma poesia naquele pó compacto, repleto de queratinócitos e outros vestígios de diferentes pessoas, mas não consegui.
Hemester
O mais importante
Respondi a uma mensagem do Jaime que tinha almoçado bacalhau, mais especificamente ''uma badana desenxabida'', porque não tinha a consistência certa, nem o sal necessário. Enquanto a mensagem seguia o seu destino eu seguia em direcção à minha infância, ao sítio onde os termos badana e desenxabida eram proferidos frequentemente.
Muitos de nós cresceram em casas onde a cozinha era o centro de tudo, mesmo nas casas, como a minha, em que não se cozinhava nada de especial. Ainda assim, enterneci-me e espantei-me com a proximidade da minha infância. Mas, a alimentação, essa eterna prioridade dos seres humanos, continua a governar a minha existência daí, talvez, não ser tão estranha a rapidez com que chego às cozinhas de outros tempos.
E se é na cozinha que procuro alguma ordem na minha vida, ao ponto de ficar desorientada se não jantar sempre à mesma hora, é noutras pequenas coisas que me concentro para controlar a ansiedade (quando não bebo): na camisola que estou a tricotar, nos vasos, no silêncio.
Algumas pessoas dirão que isso é valorizar o que é mais importante. Não é. As plantas crescem sem mim, a camisola é só mais uma camisola e o silêncio, bom, o silêncio é uma preciosidade fácil de encontrar para quem o procura.
O mais importante é que gostem de mim e isso tenho valorizado muito pouco.
Pronta para o Outono
Estava a ler sobre Marie Bashkirtseff e a sua incessante busca pela fama, mas a personagem feminina que mais me tem intrigado é a Louisa Durrell. A forma como esta mulher viveu a maternidade é, para mim, absolutamente enternecedora. Depois, há o problema com a bebida, que na série é mencionado muito ao de leve, e tendencialmente simpatizo com mulheres que têm problemas de álcool, não sei se é muito evidente.
Também há os casos amorosos com o Sven, o Hugh e o Spiro, mas há mais qualquer coisa que me deixa vidrada na personagem, ao ponto de querer saber mais sobre a vida da verdadeira Louisa e a procurar identificar-me com ela. Já tinha saudades de uma pequena obsessão. Acho que estou pronta para o Outono, portanto.
Intranquilidade
Todos os problemas com a idade, ali a partir dos 35, são uma parvoíce comparados com a proximidade dos 50 (aos 70, se ainda estiver viva, vou rir muito disto, eu sei), que é quando nos vemos num corpo que não reconhecemos como nosso.
Além de estar como o Sérgio Godinho - ''Dói-me o joelho/ Dói-me parte do antebraço/ Dói-me a parte interna/ De uma perna/ E parte amiga/ Da barriga/ Que fadiga'', tenho partes do corpo sobredimensionadas para praticamente todo o meu guarda-roupa. E não é aquela coisa de ter uns quilos a mais, ou não é só, é mais do que isso. É como se estivesse a transformar-me numa pessoa de...quase 50 anos (AUCH!!). E isso até nem seria mau (haja saúdinha) se na minha cabeça eu fosse uma pessoa de quase 50 anos. Ou se, pelo menos, quisesse ser.
Há muitas vantagens em ser uma pessoa de quase 50 anos. Supostamente estamos reconciliadas com os erros do passado, perdoamos a quem tínhamos de perdoar, deixámos ir o que tinha de ir e sabemos a quem queremos dedicar o nosso tempo. Só que não.
Há sempre uma inquietude a perseguir-me, por isso soube mesmo bem quando ela me disse, citando Adèle Van Reeth, "que sejamos sempre atingidas pelo dardo da intranquilidade".
A seguir perguntei-lhe se se lembrava de termos comentado o filme Antes da Meia-Noite, porque tinha-o revisto na televisão e não me lembrava o que me tinha desagradado. Depois ocorreu-me que deve ter sido por a Celine se ter tornado uma mãe como nós. Seja como for, tenho a impressão que achei piada ao filme quando estreou, mas gostei mais de o rever.
A Celine tinha 41 anos, o que quer dizer que se fizerem outro Antes... ela terá 50 anos. Acho que vou enviar um e-mail ao Richard Linklater com umas sugestões. É mais uma daquelas ideias para juntar à do episódio do Odisseia e ao argumento de um livro de Amin Maalouf.
Se bem que, a avaliar pela forma como tentei explicar aos miúdos a diferença entre ácido e azedo, a minha capacidade para explanar está uma desgraça.
Acepipes
Eu sei que concordei com o Javier Marías (no post anterior) sobre não ser preciso andarmos tão sedentos de experienciar coisas, porque estar vivo é suficiente. Mas há que saber/conseguir viver, digo eu, e parece-me que ultimamente não tenho sabido.
Por razões que nem sempre consigo explicar gosto de culpar a Póvoa por isso, pela minha falta de vontade, ou incapacidade, de viver melhor. Melhor comigo mesma, claro. E, no entanto, não me lembro de ter tantos momentos de ''confortabilidade''*, no meio de uma existência quase amorfa. Acontecem quando menos espero, como hoje a lavar um prato de acepipes. É uma palavra bonita, acepipes.
*Há uns tempos estava a fazer festas ao Isaac, enquanto víamos um programa qualquer na televisão, e ele revelou-me, enlevado, que estava a sentir uma onda de confortabilidade a subir-lhe pelas costas e a inundar a cabeça. Ri-me e disse-lhe que sabia exactamente o que queria dizer. A partir daí, a palavra entrou no nosso léxico. Assim como amaciante (do cabelo) e guzas (em vez da exclamação 'estás a gozar'!)
Ainda ontem
Os miúdos foram passar três dias com a irmã, quando nos reencontramos ela perguntou-me se eu ainda escrevia no blog (a sério? bom, na verdade, é melhor que não o leia) e eu pensei que ela ia contar-me o que tinham feito para depois eu escrever sobre isso, ou só dizer qualquer coisa acerca da necessidade de tantas pessoas escreverem sobre parentalidade. Quando lhe respondi que sim, mas que escrevo cada vez menos, ela fez um esgar estupefacto e perguntou: ''Como consegues? É impossível usar o cérebro com eles por perto. É impossível completar um raciocínio!'' .
Sim, é verdade. Quer dizer, não é impossível, mas é realmente difícil, até porque mesmo quando não estão por perto, com as gritarias, as solicitações constantes e os ruídos dos diferentes dispositivos electrónicos, estão sempre presentes. Como uma pedra no rim. Temos umas horas até ir buscá-los, preparar-lhes as refeições, tratar das roupas, ouvir-lhes os queixumes, mas muitas dessas horas são passadas a adiar o que queremos ou temos de escrever, porque como acabaremos por ter de interromper, mais vale nem começar. Acho que este filme fala sobre isso, mas ainda não o consegui ver.
As crianças são o melhor do mundo, como se sabe, mas também conseguem ser bastante insuportáveis. As minhas, pelo menos. E depois vão à vida delas e nós ficamos sem perceber muito bem como é que isso aconteceu, quando ainda ontem andavam a moer-nos o juízo.
O Javier Marías tem razão (ele deve estar extasiado por eu lhe dar razão), não precisamos de andar tão angustiados a tentar somar experiências, ''porque no final de qualquer vida mais ou menos longa, por monótona que tenha sido, e anódina, e cinzenta, e sem sobressaltos, haverá sempre demasiadas recordações e demasiadas contradições, demasiadas renúncias e omissões e mudanças, muitas marcha-atrás, muito arriar bandeiras, e também demasiadas deslealdades, isso é garantido.''
Está tudo bem, por enquanto
As pessoas fixes
Substituídos pelo incaracterístico horror
Posso chorar?
Uma lulik
Acabaram as aulas
Ensinar educação
Fazer listas
Dia #60
Ontem tivémos o primeiro almoço com familiares e mesmo que se evitem beijos e outros contactos é impossível manter-se a distância em convívios destes. Também pude confirmar, com a minha irmã e o meu irmão, que trabalham na indústria, que pouca coisa mudou em termos laborais nas redondezas. As fábricas continuam abertas e os operários a trabalhar normalmente, agora de máscara.
Chegámos à conclusão que provavelmente já fomos infectados com o vírus sem revelar sintomas, ou temos tido sorte. Também temos tido cuidado, bastante cuidado, mas sabemos que isso só por si não é garantia de nada.
Por isso adoptámos a máxima ''Não deixem de ser felizes'' e procuramos cumpri-la. Em dieta é muito difícil, devo dizer!
O diário fica por aqui, mas o Covid-19, certamente, ainda vai ter bastantes entradas neste blog.
Saúde e boa sorte. Tchim Tchim!
Dia #57
Depois, foi preciso inserir no site as novidades para serem incluídas na newsletter e, apesar de não haver uma periodicidade fixa, decidi que isso tinha de ficar pronto hoje. Ou seja, as crianças passaram o dia na Netflix a ver o Flash. Deve faltar um dia, ou dois, para eu começar a odiar a Netflix, apesar do Seinfeld.
Dia #56
Dia #55
Obviamente, vou levar a minha máscara da Pescada para usar no atendimento ao público, mas espero não ter de usá-la na rua. Se tiver é mau sinal.
Em duas ou três semanas, passámos do princípio de que só os profissionais de saúde devem usar máscaras para vamos fabricar máscaras e salvar o mundo.
Esta semana fomos buscar comida a um restaurante que ofereceu nada mais nada menos do que uma máscara em tecido, com o belo do arco-iris a dizer ''vai ficar tudo bem''. Eu acredito que vai ficar tudo bem, para uns, para outros nem tanto.
Sabemos que o distanciamento social, lavar as mãos e não tossir/espirrar para cima das pessoas são cuidados que temos de ter nos próximos tempos (que devíamos ter desde sempre, aliás, menos o distanciamento social, uma vez que precisamos muito de abraços), mas daí até a nossa sobrevivência depender do uso de máscaras, parece-me um exagero. Mas é uma opinião baseada unicamente no bom senso, sem qualquer fundamentação científica (que não será difícil encontrar se formos à procura dela), posso estar completamente errada.
E opiniões há muitas, como os chapéus, mas não agradeçam às pessoas por sairem de casa para irem trabalhar e garantirem que o país continua a funcionar, para depois olharem-nas de soslaio por quererem aproveitar o sol. O trabalho não pode ser a razão mais importante para correr riscos!
Dia #54
Dia #53
Mas tenho um vaso com a planta das fitas que a vizinha me deixou no muro.
Dia #52
São demasiados dias a lidar com as nossas merdas e com as merdas das pessoas que mais gostamos no mundo. E nós gostamos mesmo muito uns dos outros e de passar tempo juntos, mas eu agora precisava de ter um espaço da casa só para mim, com um computador só meu. Podia ser muito pequeno, com uma janelinha de nada, desde que fosse à prova de som. Eu estava lá meio dia e depois saía e os meus filhos não me pareceriam dois animais selvagens e o Jaime um avatar.
Dia #51
Também me sinto um bocado doente, hoje.
Dia #50
Depois de ajudar o Nicolau, ou entre uma coisa e outra, a fazer uns cupcakes, que deveriam ser de baunilha mas saíram de limão, vi um filme que me fez sentir saudades de viver em Lisboa. A bem da verdade, a conversa com a Carla, agora a viver na nossa capital (não era segredo, pois não?) também deve ter contribuído.
No filme, a mãe tinha um blog e no fim chegou a uma conclusão semelhante à(s) minha(s). Arranjar pontos de comparação entre mim e a Uma Thurman é demasiado, eu sei, mas deixem-me divagar, por favor.
Depois de escrever sobre as mães blasé, caiu-me a ficha ao aperceber-me que tenho uma filha blasé, numa conversa sobre maquilhagem. Disse ela: ''Por acaso é uma coisa que tenho pena de não ter experimentado quando era mais nova''. Ela tem 19 anos.
Dia #49
É certo que não se pode comparar uma pandemia a pós-partos, puerpérios e bebés fofinhos (mesmo que guinchem, nos ponham as mamas a escorrer sangue e não nos deixem dormir), mas isolamento é isolamento. Por isso, sempre admirei aquelas mães blasé que não deixando de ser mães parecem que não são. Adoro-as!! Podia dizer que as admiro, mas isso implicaria achar que se esforçam para ser assim, quando não é o caso. Por isso, só podem ser adoradas.
É verdade que é preciso uma aldeia para educar uma criança, mas nunca houve tantas facilidades como agora (as creches acessíveis a uma grande parte da população é uma realidade recente), as mães blasé podiam, e deviam, ser uma tendência. Mas as creches existem para as mães e pais poderem ir trabalhar e pagar as contas e depois chegarem a casa e fazer tudo o resto (quando não podem pagar a uma empregada doméstica). E, como ao fim-de-semana têm de inventar coisas giras para fazer com as crianças, sobra pouco tempo para fazer o que lhes interessa.
Nestes dois meses é capaz de haver muito mais pessoas a reverem-se nesta realidade, por não terem para onde mandar os filhos, por isso é capaz de ser mais fácil compreederem que já há algum tempo não sei como festejar o Dia do Trabalhador, porque nunca trabalhei tanto como quando não tive um emprego.
Dia #48
Sei que há muitas dúvidas sobre o que nos espera, mas essa é basicamente a condição de ser humano, por isso, não, não estou preocupada. Tenho medos (estou sempre a falar disso, do meu medo de tudo) e fico apreensiva com algumas notícias, mas não estou preocupada. Não estou preocupada por nós, quero dizer, e estar aqui a falar da minha preocupação pelos outros seria só um chavão bonito. Aflige-me a situação de muita gente que conheço pessoalmente e de pessoas que não conhecendo sei quem são, mas é só isso. Aflige-me e continuo com a minha vida.
E a minha vida está bem, na minha perspectiva. Ter um negócio que abriu há pouco tempo, sem uma almofada financeira para suportar a quebra face ao investimento, e não descender de uma família com recursos, deveria preocupar-me, mas eu acredito profundamente no que estamos a fazer, em termos profissionais, entenda-se. E quando eu acredito, não preciso de mais nada.
Além do amor e derivados, há pessoas que precisam de sapatos, outras de sexo, ou de carros, ou de todas as mencionadas. Eu preciso de acreditar no que faço (e de vinho, sendo que não desdenho o sexo).
Por isso, fomos apanhar maias (tenho a impressão de conhecer estas plantas como maios, mas não tenho a certeza) para proteger a vinharia e a nossa casa.
Dia #47
Mas, se mesmo assim não conseguíssemos reparar que são muito diferentes, um tem o cabelo quase até meio das costas, com uma franja abaixo dos olhos, e o outro usa-o rapado.
Apesar das diferenças, hoje montaram a tenda no quarto da irmã, transformado em quarto da PlayStation, e vão dormir juntos, como tem acontecido, às vezes, quando um deles sobe ou desce do beliche.
Por momentos pensei que era o amor ao campismo, mas não. Da última vez, nas ''férias da Páscoa'', puderam levar os telemóveis para a tenda e estavam à espera de poder fazer o mesmo, hoje. Quando perceberam que isso não ia acontecer, quiseram ficar na tenda na mesma, por isso nem tudo vai mal neste nosso reino.
Dia #46
Nesta família nascemos todos em Abril, menos o Isaac. Eu sou a primeira a festejar (a mais velha de todos) e no fim é o Nicolau, o mais novo.
Este dia valeu pela alegria deste pequeno entusiasta e irredutível menino (apesar do almoço escolhido ter sido McDonald's, ainda que largamente compensado pelo bolo oferecido pela Joana).
Obrigada, meu querido Nico!
Dia #45
Eu não sei como está a vossa a casa, a nossa está tão caótica como antes, ou mais. Mas pode ser de mim e não da casa.
A tranquilidade das primeiras semanas começa a dar lugar a um certo desassossego, o que até poderia não ser mau, uma vez que na medida certa é muito útil, mas nestas condições atrapalha bastante.
Bom, fez-me procurar tisanas e concluir uma das partes do casaco (sim, desisti de tricotar a Mungoche e comecei um casaco do livro japonês. Parece que funciono melhor com esquemas), portanto, nem tudo vai mal.
Quer dizer, quando o terminar e verificar que não me serve é possível que comece a chorar como os personagens de banda desenhada japonesa, aqueles que jorram água pelos cantos dos olhos, sabem? Mas posso sempre oferecê-lo a alguém, em vez disso. Ou fazer ambas as coisas.
Dia #44
Ou seja, não quero saber. Tenho montes* de likes no post do facebook sobre o meu aniversário de mãe pela primeira vez (sim, gostava muito de falar do orgulho e da maravilha que é ser mãe de uma criatura maravilhosa, que sei que é, mas não é o que sinto, assim sendo, vou só sorrir e acenar), por isso está tudo bem.
*obviamente depende do que cada pessoa considera montes, para mim mais de 100 são montes.
Dia #43
Dia #42
Bom, seja como for, começa a ficar claro que também vamos retirar coisas boas disto tudo, não começa?
Provavelmente ainda falta algum tempo para isto (nem sei quantos problemas cabem nesta palavrinha) passar, mas já se começa a notar um certo frenesim para voltar tudo ao ''normal''.
Por mim, podíamos ficar assim desde que tivesse mais liberdade de movimentos para poder soltar os miúdos na Natureza e encontrar-me com algumas pessoas.
Entretanto, lembrei-me que devia ter apontado pequenas coisas que fui descobrindo com o confinamento, como as cebolas de Barcelos. Há uma mercearia aqui perto de casa que vende fruta e legumes, com a origem da mesma escrita à mão, num pequeno papelão. A salsa, a alface e os limões são do quintal dela, mas isso não está escrito em lado algum.
Então, as cebolas de Barcelos fizeram-me perceber o que significa ao certo este legume ter muitas camadas. Por cada camada normal, há uma película quase transparente e muito fina, que não se deixa picar e cai na panela inteira, ou enrola-se nos dedos.
Não se pode comparar à descoberta da Michelle Gurevich, mas já tinha saudades de fazer coisas destas, de juntar cebolas de Barcelos e uma cantora e compositora canadiana no mesmo post.
Dia #41
Espero conseguir usar os meus indian clubs, que chegaram hoje, para o bem.
P.S Valeu a festa de aniversário de uma amiga, que distribuiu bolas de berlim pelas nossas casas.
Dia #40
Dia #39
Acho que foi isso que me pôs a pensar que está a chegar o momento de voltar tudo ao normal e eu, estranhamente, não fiquei nada aliviada.
Não estou preocupada com a doença, tenho medo de ir parar ao hospital e não haver camas, ventiladores, ou o que mais for preciso e morrer por causa disso, claro, mas nesta fase da pandemia tudo indica que esse risco é menor. Também não receio o sofrimento, porque acho que se aguentei a chikungunya, também aguento o covid-19. E mesmo sabendo que não é bem assim, é um bom descargo de consciência. Quanto ao medo pela minha família é tão habitual que nem o associo a esta pandemia.
Acho que é a sensação, familiar q.b, de não me sentir preparada para sair do casulo e enfrentar o mundo outra vez, ainda por cima, a partir da Póvoa de Varzim. A falta de energia para recomeçar um trabalho que tinha praticamente acabado de começar também tem o seu peso. E, por falar nisso, também há todo um conjunto de regueifas que não sei em que roupa encaixar para conseguir sair de casa relativamente composta.
Dia #38
Podia ser melhor, e com o tempo é provável que fique; Podia ser diferente, mas esta é a escola pública que temos, sem as adaptações que cada agrupamento vai fazendo, tendo em conta a realidade em que está a trabalhar. Ou seja, agora todos os alunos do país estão na mesma sala - estou a viver uma utopia, apetece-me chorar como as Misses a sacudir as mãos na cara.
Não se preocupem, da mesma forma que nenhuma Miss conseguiu a paz no mundo, eu sei que os problemas do nosso sistema de ensino não vão ser resolvidos, mas deixem-me regozijar com o único momento em que sinto que a Educação é igual para todos (ou para uma grande maioria, vá).
É claro que gerir as diferentes plataformas da escola de cada um deles mais a tele-escola do terceiro ano, para um, e do quinto para outro, faz-nos parecer chimpanzés num jardim zoológico, mas às tantas é isso que somos (''e sabias que temos 130 células [são 130 tipos, mas depois explico-lhe], que desempenham diferentes funções no corpo humano, mamã''?).
A boa notícia é que só faltam dois meses (?) para acabar o ano lectivo. E temos muito vinho.
Dia #37
Isto tudo para dizer que não li a entrevista ao historiador Manuel Loff, que poderia ser uma das notícias que me converteria a leitora assinante, mas como tenho andado a pensar nisso vou usar só a informação do título e do lead (será que os meninos da Abut, que fizeram um jornal comigo, ainda se lembram do que é o lead?)
Então, tudo indica que o confinamento tem sido bem sucedido em Portugal. Eu sei que nem toda a gente tem essa impressão, porque encontra muitas pessoas na rua, porque conhece alguém que conhece alguém que foi não sei onde e fez não sei o quê, mas parece ser uma realidade que, em comparação com outros países da Europa, os portugueses fizeram o que lhes foi pedido.
É muito provável que as razões sejam ''o medo, o pessimismo e a tristeza dos portugueses'', como referiu o historiador, mas eu estou convencida que esse sucesso se deve à nossa cultura da obediência. Mas eu não sou historiadora, socióloga, nem doutorada em qualquer ciência social, não tenho como saber se os portugueses são obedientes por sentirem medo (lá está), ou se por sentirem que são uma parte importante na resolução do problema.
Vamos fazer de conta que os portugueses são os meus filhos e nós, os pais, os nossos governantes. Ui, pensando melhor, vamos esquecer, isso. Mas já perceberam, certo? O respeitinho-é-muito-bonito-e-eu-gosto está muito bem inculcado nas nossas cabeças.
Dia #36
Dia #35
Saí da cama, igual a uma lontra, com a cabeça a latejar e uma nódoa negra na canela da perna com origem desconhecida (entretanto, lembrei-me que ontem, antes de me deitar, a porta do armário onde temos o balde do lixo soltou-se e bateu-me na perna).
Como gastei demasiada água no duche, fique a pensar se servirá para alguma coisa tomar menos vezes banho, se depois compenso com longas e quentes chuveiradas de água. Ainda considerei definir uma quantidade para gastar semanalmente, com a cabeça sempre a latejar, e ri-me. É por isso que bebo, para deixar de me ouvir.
No resto do dia, e depois de me sentir uma atrasada mental a acompanhar as aulas das crianças, decidi fazer as coisas que me ajudam a não pensar: caminhar, ler e tricotar. Cozinhar, às vezes, também ajuda, mas a utilidade/necessidade da acção estraga o efeito.
Se cada um de nós pudesse fazer só o que lhe apetecesse, lhe fosse conveniente, que tipo de pessoa seríamos? Eu acho que não seria má pessoa, mas gastava muita água.
Dia #34
Dia #34
Também se diz, mais ou menos, o mesmo das viagens e não tenho a certeza que as pessoas regressem assim tão diferentes, ou talvez regressem um bocadinho diferentes de cada uma das viagens que fazem, até se tornarem outras pessoas. Mas estamos sempre à espera que ao tornarmo-nos pessoas diferentes nos tornemos melhores pessoas. Supostamente crescemos e aprendemos com adversidades e novas experiências, não é?
Calculo que dependa de pessoa para pessoa e que, aos poucos, podemos vir a ser ser cada vez mais e mais a querer/precisar de mudar, como defende o Alter Eco, mas até vermos uma transformação na sociedade vai demorar muito tempo. Não há-de ser daqui a dois, ou três meses (nem daqui a dois, ou três anos) que tudo vai ficar bem.
Entretanto (saudades do Meanwhile de John Colbert), a escola dos miúdos começou hoje, nada a apontar. Foram duas horas a fazer os trabalhos propostos pelos professores, nos horários definidos por nós, com discussões de ideias entre todos. Estou bastante ansisosa para assistir ao #EstudoEmCasa e perceber como vai funcionar este terceiro período. Ansiosa no sentido de expectante e não de quem está a sofrer de ataques de ansiedade. Eu só tenho problemas mentais quando não tenho razões para isso, ou quando já está tudo bem, não sei se já tinham percebido. Até lá, vou aguentando e cantarolando (por favor, Jaime, se ouvires isto, lembra-te que tens uma fotografia com o José Malhoa).
Dia #33
Eu não tenho muito trabalho, mas consigo arranjar coisas que têm mesmo de ser feitas, como é evidente. Não estou a falar das tarefas domésticas, que essas nunca acabam, refiro-me a ter de responder a mensagens, a alimentar as redes sociais da Vinharia e a confirmar stocks, que é o suficiente para me sentar ao computador e ficar horas a ''trabalhar'', ou seja, a estar no whatsapp a conversar com as amigas, a ler os jornais, a rever o tutorial de tricot, a tentar perceber como funcionam as diferentes plataformas usadas pelas escolas dos miúdos, a deliciar-me com as comidas da quarentena no instagram e a ler cenas sobre a influência da lua e dos astros, em geral.
Por isso, às vezes, decido não trabalhar. Faço como os velhos que se sentam à soleira da porta a ver quem passa, só que no meu caso, sento-me no pátio, num banquinho de madeira, por baixo das cordas da roupa estendida, com uma chávena de café na mão, a cadela em cima do vaso de alecrim, e deixo-me estar ali, até alguém começar a gritar, ou ouvir partir alguma coisa.
Se me apetecer vou ler, ou fazer tricot, que é uma forma de ficar menos deprimida, mas também gosto de andar pela casa a reparar no que fazem eles para fugir ao aborrecimento.
Não tinha reparado, por exemplo, como é bonita a Árvore de Março do Nicolau!
Dia #32
Dia #31
Eu sei que não posso estar do lado que despreza os negócios, quando temos um negócio, que ainda por cima pode vir a beneficiar, quem sabe, das festas de casamento, mas 800 milhões?!?! As pessoas não podem só decidir partilhar a sua vida com alguém? E, no caso de fazerem questão de assinar um contrato, não poderão fazê-lo numa cerimónia simples, como a da assinatura da escritura de uma casa (que nem é tão simples quanto isso)?
Eu sei, não é muito romântico, mas têm a vida toda para ser românticos, digo eu, que sempre adorei casamentos e festas em geral!
Enfim, acho que só vim aqui perguntar: Não poderíamos simplificar muito mais a nossa vida?
Dia #30
Dia #29
Também encomendámos lasanha da Pizza Hut para os miúdos. Batemos no fundo, é o que é!
Mas temos vinho.
Dia #28
Eu não sei se o nosso país está a fazer tudo o que é necessário para combater esta epidemia. Sei, pelo que leio na imprensa e pelo que vou acompanhando nas publicações de pessoas com conhecimentos técnicos (que eu não tenho), que têm sido tomadas medidas eficazes. Mesmo assim, não deixa de ser surpreendente que estejamos a ser um caso de estudo na imprensa internacional.
Dia #27
Ainda assim, ajudei o mais novo a montar a tenda lá fora e estão os dois há umas horas lá dentro a ver youtubers parvos, claro, mas também a ouvir música e a jogar cartas. Dizem que querem dormir na tenda, vamos ver como isso corre.
Hoje de manhã, o Isaac disse que queria tomar banho. Ele nunca quer tomar banho, até entrar na banheira, por isso ia tendo um ataque. Depois percebi que ele queria usar o desodorizante pela primeira vez e como lhe tinha dito que não se pode usar roll on sem tomar banho, tomou a decisão. Depois tive mesmo um ataque: o meu querido filho começou a cheirar mal!!!! Está a chegar a altura de ter pré-adolescentes rapazes em casa.
As minhas sinapses precisam de fazer um reset rapidamente.
Dia #26
Acho mesmo que o drama pós Covid não vai ser a economia, quando muito, talvez os 95% que trabalham passem a ser 94% para continuarem a garantir a riqueza dos 5% mais ricos do país. O drama vai ser redefinir escalões sociais.
Quem vão ser os hipsters se toda a gente já sabe fazer pão? Quem vão ser os hippies se toda a gente se está a marimbar para a roupa por passar a ferro? (ok, se não estão deviam aproveitar) Quais serão os médicos que merecem receber 90€ por uma consulta, quando estão a fazer o mesmo trabalho dos que recebem um salário do SNS? E as escolas? Bem, aqui nem sei por onde começar.
E se de repente os operários, que a par dos médicos são os que mantêm o país a funcionar, determinarem o futuro da mundo ocidental? Eu sei, estou a delirar, mas apetecia-me tanto assistir a esta realidade! Não tem nada a ver com qualquer moral de justiça social, era mesmo por diversão. Afinal, já não vou para nova e não vejo telenovelas (ainda existem?), e os meus filhos até me parecem capazes de se desenrascarem numa fábrica, ou de conduzirem um camião durante 12 horas.
Dia #25
*do filme O Nosso Último Verão na Escócia
Dia #24
Dia #23
Foi um dia a gerir (aka a deixar andar) frustrações alheias e próprias, aborrecimentos e dores de crescimento que nem a ida ao quiosque para comprar jornais amenizou.
Os meus filhos pareceram-me pessoas crescidas, no sentido de maduras, o que só pode querer dizer que estou a ficar louca. Se bem que isso implicaria dar razão ao Jaime e assumir que não é ele que está chato, que eu é que estou sem paciência. Portanto, estou muito sã.
E amanhã, pelos visto, temos uma festa!
Dia #22
Não sendo a pessoa mais organizada do mundo e que até nem aprecia rotinas por aí além, tenho o momento das refeições como uma espécie de guia. Tenho de fazer isto e isto até à hora do almoço e mais aquilo e aqueloutro até à hora de jantar. Mesmo em quarentena é o que funciona para mim. E estando mais tempo em casa, sem ter de ir buscar os miúdos à escola, é mais fácil fazer pão e pensar em receitas demoradas.
Também se dá o caso de gostar de comer e beber, claro, por isso é que estou a adorar seguir os menus do Zé e da Inês, no instagram. Como diário da quarentena, parece-me uma ideia assim espectacular!
Dia #21
Sim, não arrastei a cama para aspirar, nem limpei o pó, ou lavei a parte de fora das sanitas (cujos autoclismos não funcionam), desde que começou a quarentena. E não tem nada a ver com a falta de tempo, pelos vistos. É a mesma falta de vontade de sempre.
As tarefas domésticas são divididas, obviamente, mas cada qual investe o seu tempo naquilo que acha necessário e fundamental para o bom ambiente familiar. Funciona? Sim, quase sempre.
Dia #20
Procuro manter-me informada, como toda a gente, e continuo a confiar em alguns meios de comunicação, mas mesmo estes nunca me pareceram tão obsoletos como me parecem agora. Ou, talvez esteja a questionar tudo em demasia.
Fiz uma máscara facial com aloe vera, mel e açafrão e, quando saí para fazer a caminhada, apanhei flores num descampado. Também escrevi uma carta para a Bea.
Ia começar a fazer o jantar, arroz de marisco, mas acabou o gás. Enquanto espero pela botija, acho que vou beber um copo de vinho.
Cartas da Póvoa #3
Ao longo deste ano em que estiveste afastada de nós, pensei várias vezes escrever-te mais uma carta, mas depois nunca sabia o que queria, ou o que devia, dizer.
Agora sei. O que quero dizer, pelo menos. Convenhamos, um ano e um mês é tempo suficiente para pensar no que nos aconteceu.
Eu não sei, ainda, o que aconteceu, da última vez que abordamos o assunto pediste para falarmos noutra altura, nem sei se alguma vez vou saber. O que me fez escrever-te hoje, foi ter acordado a cantar Suede, ''The 2 Of Us''.
É estranho lembrar-me de ti sempre que ouço esta banda, porque nunca a ouvimos juntas e também por não ser uma daquelas pessoas que tem uma banda sonora para tudo. Bem, talvez tenha o David Bowie como banda sonora dos meus anos de liceu, mas não sei se era por precisar disso, ou se por saber que fazia parte.
Acho que foi numa viagem de carro que eu e o Jaime fizemos com os miúdos e ele pôs o ''Dog Man Star'', no leitor de CDs. Quando começou a ''Still Life'', desatei num pranto nunca visto. Eu só conseguia pensar em ti, e em como podia continuar a viver sem te ter na nossa vida, e o Brett Aderson a gritar ''But it's still, still life/But it's still, still life/But it's still, still life''. Enfim, o que vale é que os miúdos acharam que eu estava muito emocionada com a música e ainda hoje me gozam com isso.
Então, hoje acordei a cantar ''Lying in my bed./Watching my mistakes...'' e pensei se também estarias deitada na tua cama a pensar nos teus erros. Quer dizer, a cama onde estás deitada por estes dias é, muito provavelmente, um erro por si só, mas a vida é tua, as escolhas são tuas, como sempre te disse.
Não quero estar, nem tenho estado, a fazer juízos de valor sobre as tuas opções. Só queria fazer parte da tua vida, saber o que sentes, que planos tens para o futuro, sobretudo agora, quando o futuro parece cada vez mais distante.
Mas isso já sabes. O que quero dizer-te é que tenho muita pena que não nos queiras na tua vida, porque estás a perder a oportunidade de passar bons momentos com pessoas realmente espectaculares. Até podias não gostar muito de nós enquanto família, mas, caramba, o que nos divertimos juntos!!!
Agora, ainda antes do Covid-19, temos andado mais preocupados, mais ocupados e estamos mais cansados, mas ainda somos espectaculares. Podes ter a certeza.
Dia #19
Fui levar umas coisas a casa da minha mãe e não foi o drama que estava à espera. Sem beijos, nem aproximações desnecessárias, tudo com muita naturalidade. Na verdade, nunca fomos muito de manifestações de afecto e talvez não sejamos tão próximas como pensava, ou gostava, não sei. Não quis ir ao quarto ver a minha avó, que já não anda há um par de anos, nem fala há uns meses.
Depois do almoço estivemos a trabalhar nas burocracias da vinharia, que é a parte menos divertida do negócio. Bom, limpar os vidros daquela montra e lavar o chão também não é propriamente entusiasmante, mas é mais tolerável. Quer dizer, depende dos dias!
Como queremos evitar que as crianças passem muito tempo a olhar para ecrãs, o Jaime foi buscar a caixa de ferramentas, que é assim uma mania que me ultrapassa, este fascínio por ferramentas. Temos coisas que acho que nunca foram usadas, só porque o Jaime achava giras, ou úteis, sei lá eu. Enfim, eles também não ficam indiferentes àquela parafernália e, portanto, foi uma bela tarde de marteladas e objectos a serem lixados.
O que me valeu foi ter tido o melhor momento da quarentena, até agora: o pão com doce de kiwi da Dora e a infusão da felicidade que ela enviou pelo Jaime, aquando da entrega da encomenda de vinho.
Nunca pensei que uma infusão pudesse saber-me tão bem como um copo de vinho! E aquele doce, então, nem sei o que dizer.
P.S acabei de ter a primeira conversa online, desde que isto começou, com uma amiga de longa data e foi tão bom (isto hoje está a ser um dia em grande)!! Para muita gente pode ser estranho, mas eu não gosto particularmente de falar com pessoas no computador, ou no telefone. Mesmo nos dois anos em que vivi em Timor devo ter feito duas chamadas skype. Parece que até isso a quarentena está a mudar!
Dia #18
Depois de ter tratado das encomendas, que o Jaime foi entregar ao Porto (confirma-se que foi melhor ter ficado, é unânime que não teria conseguido evitar chorar), deixei-os comer a massa com pesto no sofá, enquanto comi uma sandes de salmão fumado; joguei Ping Pong na mesa de jantar; recomecei a camisola que desfiz ontem; tratei de ferimentos e ajudei a preparar lanches.
Ainda assim parece que passei o dia entre o computador e o sofá, com os miúdos a andar, ou a gritar, por aqui.
Até quando as segunda-feiras vão ser segundas-feiras?
Dia #17
Decidi plantar batatas num vaso e cebolinho noutro e apeteceu-me muito voltar a ter um jardim. Podemos sempre mudarmo-nos para o Porto, já que o nosso apartamento tem quintal, e fechar esse capítulo de uma vez por todas!
Os miúdos começam a acusar o aborrecimento de estarem fechados em casa, a minha esperança é que se fartem dos ecrãs de uma vez por todas e comecem a fazer outras coisas. Nem que seja dar banho a todos os peluches e fazer provas cegas de comidas, quando ninguém quer comer.
Amanhã temos entregas de vinho no Porto e algumas amigas aproveitaram para fazer encomendas. Fiquei encantada com a possibilidade de rever pessoas que adoro, mas depois lembrei-me da distância social e achei melhor evitar fazer figuras tristes.
Não interessa, ''vamos ficar todos bem'', como diz no desenho com um arco-íris pendurado na varanda que se vê da fila para o supermercado. E acreditar nisso é tudo o que importa, agora.
Dia #16
Atendi quatro pessoas de manhã e todas cumpriram as regras de segurança, mas não pude deixar de notar que há quem tenha vontade de conversar, ou mais vontade do que habitualmente.
Soube-me bem pentear o cabelo e vestir uma roupa para ir trabalhar, apesar de sentir-me ligeiramente nervosa. Por isso, achei melhor levar comigo a Mungoche, poucas coisas relaxam-me tanto como tricotar.
O Jaime está sempre a dizer que quando isto acabar - a quarentena e suas consequências - vai estar tudo pior. Eu quero acreditar que vai estar melhor em muitos aspectos, ou nos que interessam, pelo menos. Mas, claramente, sou uma pessoa com fé.
Os rapazes ficaram sozinhos, antes e depois do almoço, e quando cheguei convenci-os a preparar um lanche no nosso pequeno pátio. Comeram rápido, discutiram a selecção musical e voltaram para os ecrãs.
O mais novo é o que se aborrece mais facilmente. Passa a vida a dar banho ao Panda. Eu percebo completamente o bem estar que um banho pode trazer (se não fossem as alterações climáticas era capaz de usar e abusar desta terapia), mas isto de dar banho a alguém (ou coisa) é outro nível, que eu ainda não atingi. Quer dizer, eu gostava de lhes dar banho quando eram bebés, porque a seguir adormeciam e eu podia desligar durante umas horas, mas não é isso que acontece neste caso.
Daqui a uma semana faço 47 anos e só me lembrei disso, porque o nosso obsessivo compulsivo dos banhos ao Panda, que faz anos daqui a um mês, não fala de outra coisa, isto é, do seu aniversário. Nesta casa (ou neste núcleo de família) fazemos anos todos no mesmo mês, menos o Isaac, e apesar de Abril ter sido um mês atípico nos últimos dois anos, este ano ultrapassa tudo.
Mas ainda estamos em Março e é preciso viver um dia de cada vez.
Dia #15
O hashtag ''stayhome'' é muito bonito, mas quantos de nós têm de sair de casa para trabalhar? Honestamente, choca-me mais o julgamento sumário de tudo e de todos, do que ver velhinhos na rua, como se estivesse tudo normal, ou ver os homens das obras a almoçar juntos numa sombra. E quantas pessoas que se orgulham de ficar em casa utilizaram os serviços das que não ficam, porque estão a trabalhar?
Sim, já sabemos que sair para trabalhar é uma coisa, para passear é outra (espero tanto que esta crise venha reformular a organização do trabalho!). Mas não podemos achar que ficar em casa, com todas as mordomias que o nosso nível de vida e a tecnologia permitem, faça de nós melhores pessoas do que as que têm de sair (se calhar aquilo de não romantizar a quarentena era sobre isto. Eu costumava ser mais perspicaz...).
Sim, já sei, há as que têm de sair e as que saem porque sim e, muitas vezes, também fico perplexa com o número de pessoas na rua. Pior, porque raio saem tantas ao domingo? Será que há muita mais gente com a mesma rotina de trabalho do que supomos? Como não são nossas amigas no facebook, não temos como saber.
Bom, reflexões do dia à parte, tive um belo momento a observar os meus rapazes a ''brincar às bonecas'' com os seus peluches preferidos. Estiveram horas, isto é, uns 40 minutos, a vestir o panda e o cão com as roupas deles de recém-nascidos (finalmente tiveram uma utilidade!) e foi bonito de ser ver. Também comeram 1kg de laranjas, além das refeições normais, e o último dia de aulas foi adiado para segunda-feira.