Estou doente

8.12.20

Esta pandemia tem feito a vida negra a muita gente a mim fez, se calhar, a pior coisa que me poderia acontecer: zero vontade de ler. Desisto de quase todos os livros logo nas primeiras páginas, ou fico tempos infinitos para os terminar. Só o Lillias Fraser me levou outra vez para aquele estado de ausência que os livros me costumam levar, mas e pegar noutro?

Não ter doces

26.11.20

Enganei-me ao comprar papel higiénico e trouxe rolos de papel de cozinha. Rimo-nos todos muito, só por isso valeu a pena a troca. E ficam bastante bem no quarto-de-banho.

Os meus filhos andam a fazer ninhos pela casa, isto é, a montar a tenda de campismo em sítios nada próprios. Deve ser o equivalente deles às minhas folhas varridas. 

Há cada vez mais pessoas doentes, e conversas de doenças, à nossa volta, nem todas sobre Covid. Nós, os que escapamos não só às doenças, como aos isolamentos profilácticos, começamos a sentir que somos uma raridade, sobretudo quando estamos a viver num dos concelhos de risco extremo.

O Nicolau fez este inquérito ao pai:

1- O que te faz feliz? 

2- O que te faz infeliz?

3- Qual o teu maior medo?

4- O que gostas mais de fazer na vida?

O Jaime respondeu: 1) ver-vos felizes 2) doenças nas pessoas que gosto 3) não sei 4) passear com a família, de preferência de autocaravana. Depois fez-lhe as mesmas perguntas, as respostas foram: 1) viajar 2) não ter doces 3) apanhar o Covid 4) andar de bicicleta. 

Procrastinar

23.11.20


O papel higiénico acabou e eu fui varrer as folhas do pátio. Não sei explicar, mas varrer as folhas tranquiliza-me sempre.

Imaginem se eu não fosse feminista

20.11.20


Prometo não ter mais ideias sobre férias, ok? Foi só querer usar os domingos a passear para vir a ordem do confinamento. Bom, mas antes disso ainda conseguimos fazer um programa, desta vez a cinco. 

A Bea veio dormir à Póvoa e os irmãos acharam que ela tinha de ir experimentar um restaurante onde somos nós a cozinhar na mesa. É um daqueles clássicos, aonde as famílias vão em romaria, com comida realmente boa e um pudim abade de priscos que nos deixa felizes. 

Depois, como queríamos deixá-la em casa aproveitámos para ir ver a exposição da Yoko Ono e passear no Treetop Walk. Ir a Serralves é sempre bom, sobretudo quando as exposições valem a pena. Quer dizer, logo no início fiquei espantadíssima por ver, na instalação de korakrit Arunanondchai, uma planta a mexer-se e a questionar-me se haveria algum tipo de sensores. Quando percebi que era um dos meus filhos que estava a conseguir tal proeza não deu para continuar concentrada no que estava a ver (benditas as crianças que visitam exposições sem necessidade de correr e apontar o dedo demasiado perto das obras).

Para piorar a Yoko Ono fez umas instalações interactivas, em que a pessoas podiam pintar, ou carimbar. E como explicar aos meus ricos filhos que nem todas as obras careciam de intervenção, sobretudo a do martelo pendurado?

Resumindo, o Jaime gostou mais da exposição O Sol Não Se Move, Capítulo 35, eu não consegui ver nada muito atentamente, a Bea disse qualquer coisa sobre a Yoko lhe parecer um bocado hippie pedante e todos adorámos passear pela copa das árvores. 

O que me deixou perturbada foi ver a Yoko Ono como artista, quando achava que era só a namorada do John Lenon e fazia umas coisas. E ver toda a exposição de R.H. Quaytman convencida que era um homem. O machismo está-nos entranhado.

Culpa

7.11.20

Estava a ver o Dave Chapelle a fazer piadas sobre as violações de Bill Cosby, com um certo desconforto, e a pensar nas mudanças que têm ocorrido na sociedade, muito graças ao movimento #MeToo, quando comecei a ouvir todo o discurso dele dirigido a um carnívoro - ''Sim, ele come carne, mas salva pessoas. E salva mais pessoas do que os animais que mata''. 

Há uns anos eu achava que íamos chegar a um estado de evolução em que olharíamos para os tempos em que comíamos carne como agora olhamos para a idade média. Nessa altura era vegetariana, mas provavelmente fartei-me de ser evoluída sozinha. Agora, como mais carne do que deveria e com mais gula, mas não consigo deixar de sentir uma certa culpa. 

Sair sem sair

4.11.20


No domingo passado, como não podíamos circular entre concelhos, fomos almoçar à minha mãe. E isso até poderia não ser digno de registo se, de cada vez que vou a casa da minha mãe, não fosse como ir às grutas de Morutaumorubara, em Balibó, Timor-Leste.

Suponho que não tenho qualquer registo dessa viagem, aqui no blog, por ter sido uns dias antes do acidente, mas acreditem que há muitas similitudes entre a ida a essa gruta e os almoços em casa da minha mãe. Aquela ansiedade antes de entrar por não sabermos o que nos espera, o susto com os morcegos a sobrevoar as nossas cabeças no escuro, a vontade de fugir e ficar ao mesmo tempo.

O momento alto, no domingo, foi a diversão depois de termos atolado o carro num terreno que a minha mãe nos pediu para ir ver. O bacalhau também estava muito bom. O pior foi a sensação de não ter feito nada do que me propus. 

Bojador e Clarinhas

27.10.20




No quarto domingo fomos a Viana do Castelo, ou melhor, fomos visitar o antigo Navio-Hospital Gil Eannes, porque já conhecemos relativamente bem a ''Pérola do Minho''.
Era escusado ter perguntado se sabiam quem era Gil Eannes para depois não saber responder onde era ao certo o Cabo Bojador. Só me ocorria Vidigueira, por causa do vinho. Enfim, tenho sido um flop como guia turística. 
É claro que toda a gente adorou visitar o navio e ninguém achou nada daquilo claustrofóbico, tirando eu.
O almoço foi num restaurante muito sui generis, que antes era um Bingo, mas, além de não ter uma carta de vinhos decente, é caro para o que oferece.
Como a Natário está fechada ao domingo, regressamos pela EN13 para comprar Clarinhas de Fão. Comi quatro. 
O pior foi o regresso com eles os dois a serem parvos no banco de trás, porque há dias em que não nos apetece aturá-los nos apetece ouvir música no carro e o melhor não preciso de dizer, pois não?

Poeira

23.10.20

Ontem, estava a ver a Serif a limpar o pó das máquinas de secar da lavandaria e lembrei-me do do deserto do Saara que chega à Amazónia e de como me pareceu bonita a ideia de estarmos todos ligados pela poeira. 

Fiquei à procura de encontrar a mesma poesia naquele pó compacto, repleto de queratinócitos e outros vestígios de diferentes pessoas, mas não consegui.

Hemester

21.10.20

Como não tivemos férias este ano, ou melhor, os miúdos estiveram duas semanas num campo de férias e depois passámos quatro dias juntos na Serra d' Arga, considerámos fechar a vinharia uma semana para fazermos a 'road trip' da moda, este mês. Mas, com o isolamento profilático a fazer de espada de Dâmocles em cima das nossas cabeças parece-nos insensato gastarmos dias em férias (nem acredito que sou eu a dizer isto).
Assim sendo, decidimos ir a um sítio diferente, todos os domingos, que fique a uma distância de casa relativamente curta. São as nossas 'hemester' (tantos bloggers/influencers a fazer 'satycation' este ano e não inventaram um termo em português?). O IKEA e os ABBA são quase tudo o que sei sobre a Suécia, mas fico sempre fascinada com as palavras que inventam para denominarem um modo de estar, como a 'Lagom'.
Então, como estava a dizer, temos vindo a usar os domingos para uma espécie de férias perto de casa. No primeiro fomos fazer parte da Rota do Românico. Escolhemos a do Vale do Tâmega e dos 25 monumentos incluídos, visitamos 11 mais o Centro de Interpretação da Escultura Românica, em Abragão. Foi tudo muito giro, até porque conseguimos os passaportes, mas o melhor mesmo foi o vinho doce da Casa dos Presuntos, em Penafiel. O pior foi a minha total falta de conhecimento sobre arquitectura românica, que pôs toda a gente à procura de cães para responder à pergunta: ''Que tipo de motivos estão esculpidos nos cachorros desta Igreja?''
No segundo domingo fomos ao Portugal dos Pequenitos. É aquele clássico que ainda não lhes tínhamos mostrado. Fomos lá todos, quando éramos crianças, se calhar mais do que uma vez e todos delirámos com aquilo. Depois, claro, queremos revivê-lo através dos nossos filhos. Primeiro embate, as máscaras e o circuito obrigatório. Depois, a quantidade de telemóveis no ar a fotografar as criancinhas. Não era assim que me lembrava do Portugal dos Pequenitos e pareceu-me que os nossos filhos não ficaram lá muito impressionados. O melhor foi o almoço no Arcada e a paragem no Castelo de Montermor-o-Velho. O pior, a fotografia que tivemos de comprar no final da visita.
Depois, no domingo passado, fomos a Cabeceiras de Basto visitar Moinhos de Rei, que é assim um lugar para lá de bonito. É claro que faz alguma diferença estar vazio nesta altura do ano, mas pareceu-nos um sítio mesmo especial! O melhor foi estar ali, a ouvir a água correr, enquanto eles brincavam, o pior foi não nos termos lembrado de levar comida para ficar por ali, no parque de merendas. Bom, na verdade, almoçámos muito bem no Grelhados & Companhia e depois ainda fomos parar à Barragem do Oural sem querer, onde os pequenos aproveitaram para tirar a roupa e mergulhar. Portanto, não houve pior em Cabeceiras de Basto.

O mais importante

24.9.20

Respondi a uma mensagem do Jaime que tinha almoçado bacalhau, mais especificamente ''uma badana desenxabida'', porque não tinha a consistência certa, nem o sal necessário. Enquanto a mensagem seguia o seu destino eu seguia em direcção à minha infância, ao sítio onde os termos badana e desenxabida eram proferidos frequentemente. 

Muitos de nós cresceram em casas onde a cozinha era o centro de tudo, mesmo nas casas, como a minha, em que não se cozinhava nada de especial. Ainda assim, enterneci-me e espantei-me com a proximidade da minha infância. Mas, a alimentação, essa eterna prioridade dos seres humanos, continua a governar a minha existência daí, talvez, não ser tão estranha a rapidez com que chego às cozinhas de outros tempos. 

E se é na cozinha que procuro alguma ordem na minha vida, ao ponto de ficar desorientada se não jantar sempre à mesma hora, é noutras pequenas coisas que me concentro para controlar a ansiedade (quando não bebo): na camisola que estou a tricotar, nos vasos, no silêncio.

Algumas pessoas dirão que isso é valorizar o que é mais importante. Não é. As plantas crescem sem mim, a camisola é só mais uma camisola e o silêncio, bom, o silêncio é uma preciosidade fácil de encontrar para quem o procura.

O mais importante é que gostem de mim e isso tenho valorizado muito pouco.

Pronta para o Outono

9.9.20

Estava a ler sobre Marie Bashkirtseff e a sua incessante busca pela fama, mas a personagem feminina que mais me tem intrigado é a Louisa Durrell. A forma como esta mulher viveu a maternidade é, para mim, absolutamente enternecedora. Depois, há o problema com a bebida, que na série é mencionado muito ao de leve, e tendencialmente simpatizo com mulheres que têm problemas de álcool, não sei se é muito evidente.

Também há os casos amorosos com o Sven, o Hugh e o Spiro, mas há mais qualquer coisa que me deixa vidrada na personagem, ao ponto de querer saber mais sobre a vida da verdadeira Louisa e a procurar identificar-me com ela. Já tinha saudades de uma pequena obsessão. Acho que estou pronta para o Outono, portanto.

Intranquilidade

27.8.20


Todos os problemas com a idade, ali a partir dos 35, são uma parvoíce comparados com a proximidade dos 50 (aos 70, se ainda estiver viva, vou rir muito disto, eu sei), que é quando nos vemos num corpo que não reconhecemos como nosso.

Além de estar como o Sérgio Godinho - ''Dói-me o joelho/ Dói-me parte do antebraço/ Dói-me a parte interna/ De uma perna/ E parte amiga/ Da barriga/ Que fadiga'', tenho partes do corpo sobredimensionadas para praticamente todo o meu guarda-roupa. E não é aquela coisa de ter uns quilos a mais, ou não é só, é mais do que isso. É como se estivesse a transformar-me numa pessoa de...quase 50 anos (AUCH!!). E isso até nem seria mau (haja saúdinha) se na minha cabeça eu fosse uma pessoa de quase 50 anos. Ou se, pelo menos, quisesse ser. 

Há muitas vantagens em ser uma pessoa de quase 50 anos. Supostamente estamos reconciliadas com os erros do passado, perdoamos a quem tínhamos de perdoar, deixámos ir o que tinha de ir e sabemos a quem queremos dedicar o nosso tempo. Só que não. 

Há sempre uma inquietude a perseguir-me, por isso soube mesmo bem quando ela me disse, citando Adèle Van Reeth, "que sejamos sempre atingidas pelo dardo da intranquilidade".

A seguir perguntei-lhe se se lembrava de termos comentado o filme Antes da Meia-Noite, porque tinha-o revisto na televisão e não me lembrava o que me tinha desagradado. Depois ocorreu-me que deve ter sido por a Celine se ter tornado uma mãe como nós. Seja como for, tenho a impressão que achei piada ao filme quando estreou, mas gostei mais de o rever.

A Celine tinha 41 anos, o que quer dizer que se fizerem outro Antes... ela terá 50 anos. Acho que vou enviar um e-mail ao Richard Linklater com umas sugestões. É mais uma daquelas ideias para juntar à do episódio do Odisseia e ao argumento de um livro de Amin Maalouf.

Se bem que, a avaliar pela forma como tentei explicar aos miúdos a diferença entre ácido e azedo, a minha capacidade para explanar está uma desgraça. 

Acepipes

19.8.20

Eu sei que concordei com o Javier Marías (no post anterior) sobre não ser preciso andarmos tão sedentos de experienciar coisas, porque estar vivo é suficiente. Mas há que saber/conseguir viver, digo eu, e parece-me que ultimamente não tenho sabido. 

Por razões que nem sempre consigo explicar gosto de culpar a Póvoa por isso, pela minha falta de vontade, ou incapacidade, de viver melhor. Melhor comigo mesma, claro. E, no entanto, não me lembro de ter tantos momentos de ''confortabilidade''*, no meio de uma existência quase amorfa. Acontecem quando menos espero, como hoje a lavar um prato de acepipes. É uma palavra bonita, acepipes.


*Há uns tempos estava a fazer festas ao Isaac, enquanto víamos um programa qualquer na televisão, e ele revelou-me, enlevado, que estava a sentir uma onda de confortabilidade a subir-lhe pelas costas e a inundar a cabeça. Ri-me e disse-lhe que sabia exactamente o que queria dizer. A partir daí, a palavra entrou no nosso léxico. Assim como amaciante (do cabelo) e guzas (em vez da exclamação 'estás a gozar'!)

Ainda ontem

11.8.20

Os miúdos foram passar três dias com a irmã, quando nos reencontramos ela perguntou-me se eu ainda escrevia no blog (a sério? bom, na verdade, é melhor que não o leia) e eu pensei que ela ia contar-me o que tinham feito para depois eu escrever sobre isso, ou só dizer qualquer coisa acerca da necessidade de tantas pessoas escreverem sobre parentalidade. Quando lhe respondi que sim, mas que escrevo cada vez menos, ela fez um esgar estupefacto e perguntou: ''Como consegues? É impossível usar o cérebro com eles por perto. É impossível completar um raciocínio!'' .

Sim, é verdade. Quer dizer, não é impossível, mas é realmente difícil, até porque mesmo quando não estão por perto, com as  gritarias, as solicitações constantes e os ruídos dos diferentes dispositivos electrónicos, estão sempre presentes. Como uma pedra no rim. Temos umas horas até ir buscá-los, preparar-lhes as refeições, tratar das roupas, ouvir-lhes os queixumes, mas muitas dessas horas são passadas a adiar o que queremos ou temos de escrever, porque como acabaremos por ter de interromper, mais vale nem começar. Acho que este filme fala sobre isso, mas ainda não o consegui ver.

As crianças são o melhor do mundo, como se sabe, mas também conseguem ser bastante insuportáveis. As minhas, pelo menos. E depois vão à vida delas e nós ficamos sem perceber muito bem como é que isso aconteceu, quando ainda ontem andavam a moer-nos o juízo. 

O Javier Marías tem razão (ele deve estar extasiado por eu lhe dar razão), não precisamos de andar tão angustiados a tentar somar experiências, ''porque no final de qualquer vida mais ou menos longa, por monótona que tenha sido, e anódina, e cinzenta, e sem sobressaltos, haverá sempre demasiadas recordações e demasiadas contradições, demasiadas renúncias e omissões e mudanças, muitas marcha-atrás, muito arriar bandeiras, e também demasiadas deslealdades, isso é garantido.''

Está tudo bem, por enquanto

7.8.20
Tenho tentando manter-me informada sobre o que se passa no mundo através dos meios de informação credíveis, mas vou espreitando outros, claro. Também fiquei comovida com o homem sentado do lado de fora da janela, do quarto do hospital, onde a mãe estava internada com Covid. Também vejo alguns vídeos da explosão em Beirute, mas depois vou ler sobre nitrato de amónio. 
Ocorreu-me, agora, que não tenho lido sobre os refugiados, acho que é por não me chegar nada sobre o assunto nas newesletter que recebo, ou ao mural do facebook. 
Mesmo assim, mesmo filtrando a pouca informação que vou consumindo, não consigo livrar-me da sensação de que o planeta está a fazer uma espécie de purga e, ao contrário do que dizem todas as religiões, não há eleitos. 
Sempre que passo pela fila para a recolha de alimentos, ao lado de minha casa, procuro não pensar na sorte de uns e de outros, ou se o rapaz que martela pedras da calçada é feliz. 
Já não me chateia que as obras na minha rua não terminem. Está tudo bem, por enquanto. Por enquanto, temos mais uma garrafa de vinho para abrir, temos os croissants com queijo da Riba Mar, o cheiro dos nossos corpos nos lençóis lavados, tomate com queijo feta e queijo da Quinta da Pegadinha, os abraços e o riso dos nossos filhos, o jantar sempre à mesma hora, as caminhadas à beira mar, a música na Juke Box, o tricot no saco a tiracolo e os biscoitos de Valongo com café de Timor. 

As pessoas fixes

1.8.20
Tenho a sensação que devia ler os 10 anos deste blog e escrever sobre isso. Dava um romance, claro, mas aposto que resolvia o assunto em seis mil caracteres. Sou muito sucinta.
Devia escrever mais, como estão sempre a dizer-me, mas esta mania de fazer só o que me apetece...isso e ser sucinta.
Por este andar resumo os próximos 10 anos a três mil caracteres. Devia obrigar-me a registar, ainda que o mundo precise muito pouco de mais opiniões, desabafos e partilhas do quotidiano, mas é como me diziam há uns anos quando me questionava sobre se devia ter mais filhos quando havia tantas pessoas no mundo. ''É preciso que as pessoas fixes tenham filhos, porque se forem só os outros estamos tramados''. Foi o Frederico, não era meu amigo, mal o conhecia, e disse-me isto há mais de 15 de anos. Tive mais dois filhos uns anos depois dessa conversa, mas nunca mais me tinha lembrado dela, até agora. 
Apetece-me cada vez menos escrever aqui, como se nota, mas não podem ser só os outros, os ''não fixes'', a escrever sobre o que lhes apetece, ou sobre o que acham que os outros querem ler. 
Durante o confinamento, ou parte dele, tinha de enviar uma selfie para um dos grupos de amigxs do whatsapp, todos os dias às 15:00h. Já não estamos em confinamento, mas continuamos o exercício (esta foi a minha foto de hoje). Acho que sabe bem saber o que estão a fazer as pessoas fixes.

Substituídos pelo incaracterístico horror

16.7.20

Aquela edição de Os Pescadores foi feita pela Biblioteca Municipal Rocha Peixoto e está à venda na vinharia, desde o último Correntes D'Escritas. E aquele vinho, o Tubarão, é feito a partir das uvas das masseiras (está esgotado, antes que perguntem). Pescadores e agricultores, os poveiros que foram estragados e substituídos ''pela fealdade e pelo incaracterístico horror'', representados num livro e num vinho.
Eu achava que já tinha lido Os Pescadores, como poderia não ter lido? Mas não. Mal li as primeiras páginas soube que era a primeira vez, porque fiquei fascinada com a forma como Raul Brandão vê as pessoas e as paisagens.  
Além disso, não deixa de ser incrível como há 100 anos o escritor já descrevia uma realidade tão actual: ''Como temos o condão de estragar tudo, empobrecemos as populações da beira-mar, para enriquecer meia dúzia de felizes. Cultivar o mar é uma coisa - é o ofício de pescadores; explorar o mar é outra coisa - é o ofício de industriais''.

Posso chorar?

5.7.20
Depois da telescola, um dos grandes desafios enquanto pais tem sido gerir a histeria do Isaac com os jogos online (um deles, claro, há outros, muitos outros, como seria de esperar numa família com três filhos).
Num desses momentos em que ele está a arrancar cabelos e a chorar porque a internet não funciona, ou o telemóvel bloqueou, perguntei-lhe calmamente (sem me descabelar, ameaçar que nunca mais o deixava jogar aquele jogo, ou mandá-lo para a cama indiferente aos gritos de dor, como se o estivesse a torturar) -  Achas mesmo que chorar dessa forma resolve alguma coisa?
- (depois de longa pausa a acalmar-se para conseguir falar) Se eu morrer tu não vais chorar?
- Sabes que sim, vou chorar muito.
- E isso vai trazer-me de volta?
- Não
- E vais deixar de chorar?
- Não
- Então, posso chorar mesmo sabendo que não resolvo nada?

Uma lulik

1.7.20

Às vezes, um gesto, um som, ou qualquer outra coisa leva-me a determinados momentos do passado que julgava esquecidos. Chego a duvidar que tenham existido e penso se não serão imaginação minha. Aconteceu ontem, depois de jantar, enquanto conversava com o Jaime e rabiscava num guardanapo.
Faço isso, parece, de ir rabiscando, passando uns riscos por cima de outros, começar a ver formas e explorá-las. Foi assim que acabei a desenhar uma uma lulik no meio de uma chuva que caía na vertical, num guardanapo (deitei-o fora, por isso não posso mostrar o desenho).
Foi quando vi o desenho que regressei a 2002, ao curso de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Lá estava eu sentada na secretária a rabiscar no caderno enquanto o Joaquim Fidalgo falava, quando a minha colega do lado, uma búlgara de cabelo curto, sussurrou: ''such a nice drawing''.

Acabaram as aulas

26.6.20
Hoje termina, oficialmente, o ano lectivo (na verdade, já o tinha dado por terminado há mais de uma semana) e nunca umas férias escolares foram tão desejadas pelos pais como estas. Ninguém sabe o que vai fazer com as crianças nos próximos dois meses, mas que importa? A escola acabou! YEEEEEEEEEEEEEEEEAH!

Ensinar educação

22.6.20
Numa conversa, na vinharia, com uma pessoa que tem uma daquelas histórias de vida que dá vontade de escrever um livro, lembrei-me da minha vontade de fugir com o circo de cada vez que a tenda era montada no terreiro. À medida que a conversa decorria voltei a pensar no assunto que tem ocupado algumas partes dos meus dias, e noites (apesar do anti-histamínico que me põe a dormir como uma pedra).
Algumas das pessoas mais interessantes que tenho conhecido tiveram uma infância pouco convencional, sem pais muito preocupados com a melhor forma de educar, com as técnicas mais eficazes para adormecer e alimentar as suas crias, ou com diagnósticos de PHDA, Dislexia e Discalculia. Os pais faziam o que sabiam e o que podiam sem perder muito tempo a pensar no assunto. 
Agora pensamos, questionamos e atormentamo-nos muito com a educação dos filhos. Um dia destes, na minha caminhada, não consegui evitar sorrir quando uma menina pequena, talvez com 5 anos, ao perceber que o cachorro a obedecia, perguntou à mãe: ''Foste tu que lhe ensinaste educação?''
Não há pais que não queiram o melhor para os seus filhos (bom, haverá alguns com patologias que os incapacitam de ter essa aspiração), mas é bastante óbvio que o mundo está cheio de pessoas que confundem o que é melhor para si próprios com o que é melhor para os seus filhos. Provavelmente, sou uma delas.
Por isso, queria voltar a pensar em mim mais como pessoa do que como mãe. Um mãe é sempre uma pessoa, uma pessoa nem sempre é uma mãe. E queria continuar a ser capaz de não ceder a pressões sociais para fazer o que é suposto. Se eu viver a minha vida como me apetecer, que não é mais do que aproveitar o melhor de estar aqui, é garantido que os meus filhos serão bem educados, apesar de eu não ter fugido com o circo. 

Fazer listas

19.6.20
Passaram quase seis semanas desde o último post do diário da quarentena e quando me ponho a pensar nisso parece que não aconteceu nada durante esse tempo e parece que aconteceu tudo. As pessoas saíram para a rua, revi amigos e familiares presencialmente, festejei dois aniversários, fui a dois velórios e um funeral, provei um Pet Nat, um arinto e um rosé, que me encheram as medidas (literalmente), cortei o cabelo (''uma mulher que corta o cabelo é uma mulher que quer mudar de vida'', como alguém diz neste filme, se bem me lembro), espalhei ideias em vários papéis e perdi-os, desisti da dieta, recomecei-a e desisti novamente, aprendi mantras, recebi a notícia de um cancro num familiar, tricotei um bocadinho, comecei a ver a série ''La casa de papel'' em família, que tem dado azo a conversas engraçadas, fui respirando com mais ou menos dificuldades, fiz vários piqueniques, entrevistei três pessoas ligadas ao Varzim Sport Clube e não li um único livro. 
Fazer listas é sempre a melhor forma de retomar o que quer que seja, incluindo o blog. 

Dia #60

11.5.20
Primeiro dia da dieta cumprido (até agora, ainda faltam umas duas horas para ir dormir), mas tirando uma visita de estudo às igrejas românicas de Rio Mau e Rates, que decidimos fazer por causa da matéria que o Isaac está a dar na disciplina de História, foi um dia bastante improdutivo.
Ontem tivémos o primeiro almoço com familiares e mesmo que se evitem beijos e outros contactos é impossível manter-se a distância em convívios destes. Também pude confirmar, com a minha irmã e o meu irmão, que trabalham na indústria, que pouca coisa mudou em termos laborais nas redondezas. As fábricas continuam abertas e os operários a trabalhar normalmente, agora de máscara.
Chegámos à conclusão que provavelmente já fomos infectados com o vírus sem revelar sintomas, ou temos tido sorte. Também temos tido cuidado, bastante cuidado, mas sabemos que isso só por si não é garantia de nada.
Por isso adoptámos a máxima ''Não deixem de ser felizes'' e procuramos cumpri-la. Em dieta é muito difícil, devo dizer!
O diário fica por aqui, mas o Covid-19, certamente, ainda vai ter bastantes entradas neste blog.
Saúde e boa sorte. Tchim Tchim!

Dia #59

10.5.20
Está decidido. Amanhã começo a dieta.

Dia #57

9.5.20
Como foi preciso fazer uma entrega de vinho, tarefa do Jaime uma vez que eu não conduzo, tive de ir para a loja enquanto ele esteve fora. Durante o percurso, de cerca de 10 minutos de casa à vinharia, debaixo de uma chuva torrencial, primeiro, e chuviscos depois, ia a pensar nas vantagens, e desvantagens, de sermos um casal a trabalhar juntos. Não tenho qualquer dúvida que o nosso negócio ganha na mesma proporção que a nossa vida pessoal perde, mas não deve ser difícil encontrar um meio termo qualquer. A ver vamos.
Depois, foi preciso inserir no site as novidades para serem incluídas na newsletter e, apesar de não haver uma periodicidade fixa, decidi que isso tinha de ficar pronto hoje. Ou seja, as crianças passaram o dia na Netflix a ver o Flash. Deve faltar um dia, ou dois, para eu começar a odiar a Netflix, apesar do Seinfeld.

Dia #56

8.5.20
O número de casos positivos com Covid-19 aumentou, quanto querem apostar em como poucas pessoas ouviram/leram que foram feitos mais testes e, portanto, é normal que isso tenha acontecido? Apesar de precisarmos de ter bodes expiatórios para tudo, ainda vai demorar a perceber que medidas foram eficazes no combate a esta pandemia e que erros podiam ter sido evitados. Já se sabe que os prognósticos são sempre eficazes depois do jogo, ou, dito de uma forma mais erudita, após a ocorrência de um acontecimento altamente improvável é arquitectada uma explicação que o faz parecer menos aleatório e mais previsível do que é na realidade.
Enfim, não me interessa nada disso, já temos Netflix, que é a modernização do gesto de tapar os ouvidos e cantar para não ouvir o que se passa à volta. 

Dia #55

7.5.20
Faltam cinco dias para acabar o diário da quarentena, porque a partir da próxima semana vamos alternar dias de trabalho na vinharia. Até aqui fiquei em teletrabalho e o Jaime na loja, sendo que ele não deixou de trabalhar em casa e eu de ir à loja sempre que necessário, mas a partir de agora vou ter de cumprir horários e vestir-me para sair.
Obviamente, vou levar a minha máscara da Pescada para usar no atendimento ao público, mas espero não ter de usá-la na rua. Se tiver é mau sinal.
Em duas ou três semanas, passámos do princípio de que só os profissionais de saúde devem usar máscaras para vamos fabricar máscaras e salvar o mundo.
Esta semana fomos buscar comida a um restaurante que ofereceu nada mais nada menos do que uma máscara em tecido, com o belo do arco-iris a dizer ''vai ficar tudo bem''. Eu acredito que vai ficar tudo bem, para uns, para outros nem tanto.
Sabemos que o distanciamento social, lavar as mãos e não tossir/espirrar para cima das pessoas são cuidados que temos de ter nos próximos tempos (que devíamos ter desde sempre, aliás, menos o distanciamento social, uma vez que precisamos muito de abraços), mas daí até a nossa sobrevivência depender do uso de máscaras, parece-me um exagero. Mas é uma opinião baseada unicamente no bom senso, sem qualquer fundamentação científica (que não será difícil encontrar se formos à procura dela), posso estar completamente errada.
E opiniões há muitas, como os chapéus, mas não agradeçam às pessoas por sairem de casa para irem trabalhar e garantirem que o país continua a funcionar, para depois olharem-nas de soslaio por quererem aproveitar o sol. O trabalho não pode ser a razão mais importante para correr riscos!

Dia #54

6.5.20
Focar-me nas coisas boas deste dia: Bacalhau com grão-de-bico e o vinho a acompanhar, o ar de alegria e surpresa do Isaac quando ''acerta'' numa resposta da ficha de Ciências, os minutos de leitura na cama com o sol a bater nas pernas, o arroz de favas, o cheiro das laranjas a serem descascadas, o Nicolau a contar os Kartos do Petróleo, as fotografias bonitas partilhadas no whatsApp, a roupa guardada, o chá de limonete do jardim da Raquel, o Quaresma, o dia quase a acabar com a espessura certa.

Dia #53

5.5.20
Comecei a pensar de que formas posso voltar a outro ''normal'', porque recomeçar no ponto em que estávamos antes ''disto'' parece-me andar para trás. Depois recebi uma mensagem da ARS Norte a dizer que podia falar com um psicólogo e fiquei a pensar se andariam a espiar-me.
Há pequenas coisas que começam a tomar proporções desmedidas: Os latidos da cadela sempre que passa alguém (e está sempre a passar gente por causa das obras nas ruas adjacentes); as janelas pop-up a interromperem-me (e eu já andei a chafurdar nas definições do computador para desligar esta merda, mas nada); o tamanho das minhas mamas (podia engordar sem ficar com estes airbags, não podia?); carregar o telemóvel (que só serve de veículo para o whatsapp no computador) posicionando milimetricamente o carregador, com um lápis a elevar o fio; as cadeiras da sala que começaram a descamar com tanto uso; o ter sempre de desligar alguma coisa para ligar a torradeira/varinha mágica/microondas/moinho do café, etc.
Claramente tenho desvalorizado o poder libertador do trabalho.
Mas tenho um vaso com a planta das fitas que a vizinha me deixou no muro.   

Dia #52

4.5.20
Este foi o dia mais surreal do confinamento. Saí para comprar pão e a cidade estava diferente, com mais pessoas na rua, mais carros e lojas abertas, como se estivesse tudo a voltar ao normal, até chegar à padaria e ter sido impedida de entrar por não estar a usar máscara. Não me lembrei que era obrigatório e voltei a casa para a ir buscar. Não tinha usado máscara até hoje e senti-me no cenário de um filme de ficção científica, daqueles apocalípticos em que as pessoas andam todas crispadas. Ou, então, era eu a projectar-me nos outros.
São demasiados dias a lidar com as nossas merdas e com as merdas das pessoas que mais gostamos no mundo. E nós gostamos mesmo muito uns dos outros e de passar tempo juntos, mas eu agora precisava de ter um espaço da casa só para mim, com um computador só meu. Podia ser muito pequeno, com uma janelinha de nada, desde que fosse à prova de som. Eu estava lá meio dia e depois saía e os meus filhos não me pareceriam dois animais selvagens e o Jaime um avatar.

Dia #51

3.5.20
Tenho a impressão que em confinamento dá-se mais importância a certas efemérides como o Dia da Mãe.
Também me sinto um bocado doente, hoje.

Dia #50

2.5.20
Saio para caminhar, devia dizer para um passeio higiénico, quase todos os dias num percurso, habitualmente vazio, que ao fim-de-semana enche-se de gente. Das duas uma, ou a grande maioria das pessoas continua a trabalhar e aproveita este dois dias para relaxar. Ou estão tão arreigadas a certos hábitos que os tentam manter para se sentirem normais.

Depois de ajudar o Nicolau, ou entre uma coisa e outra, a fazer uns cupcakes, que deveriam ser de baunilha mas saíram de limão, vi um filme que me fez sentir saudades de viver em Lisboa. A bem da verdade, a conversa com a Carla, agora a viver na nossa capital (não era segredo, pois não?) também deve ter contribuído.
No filme, a mãe tinha um blog e no fim chegou a uma conclusão semelhante à(s) minha(s). Arranjar pontos de comparação entre mim e a Uma Thurman é demasiado, eu sei, mas deixem-me divagar, por favor.

Depois de escrever sobre as mães blasé, caiu-me a ficha ao aperceber-me que tenho uma filha blasé, numa conversa sobre maquilhagem. Disse ela: ''Por acaso é uma coisa que tenho pena de não ter experimentado quando era mais nova''. Ela tem 19 anos.

Dia #49

1.5.20
Estava a escrever um texto bonitinho, que até fazia sentido e tudo, mas apaguei-o. Se querem saber era sobre este confinamento me recordar os tempos em que estava confinada com dois bebés e uma pequena em casa e em como me sinto igual sem metade da piada.
É certo que não se pode comparar uma pandemia a pós-partos, puerpérios e bebés fofinhos (mesmo que guinchem, nos ponham as mamas a escorrer sangue e não nos deixem dormir), mas isolamento é isolamento. Por isso, sempre admirei aquelas mães blasé que não deixando de ser mães parecem que não são. Adoro-as!! Podia dizer que as admiro, mas isso implicaria achar que se esforçam para ser assim, quando não é o caso. Por isso, só podem ser adoradas.
É verdade que é preciso uma aldeia para educar uma criança, mas nunca houve tantas facilidades como agora (as creches acessíveis a uma grande parte da população é uma realidade recente), as mães blasé podiam, e deviam, ser uma tendência.  Mas as creches existem para as mães e pais poderem ir trabalhar e pagar as contas e depois chegarem a casa e fazer tudo o resto (quando não podem pagar a uma empregada doméstica). E, como ao fim-de-semana têm de inventar coisas giras para fazer com as crianças, sobra pouco tempo para fazer o que lhes interessa.
Nestes dois meses é capaz de haver muito mais pessoas a reverem-se nesta realidade, por não terem para onde mandar os filhos, por isso é capaz de ser mais fácil compreederem que já há algum tempo não sei como festejar o Dia do Trabalhador, porque nunca trabalhei tanto como quando não tive um emprego.

Dia #48

30.4.20

Sei que há muitas dúvidas sobre o que nos espera, mas essa é basicamente a condição de ser humano, por isso, não, não estou preocupada. Tenho medos (estou sempre a falar disso, do meu medo de tudo) e fico apreensiva com algumas notícias, mas não estou preocupada. Não estou preocupada por nós, quero dizer, e estar aqui a falar da minha preocupação pelos outros seria só um chavão bonito. Aflige-me a situação de muita gente que conheço pessoalmente e de pessoas que não conhecendo sei quem são, mas é só isso. Aflige-me e continuo com a minha vida.
E a minha vida está bem, na minha perspectiva. Ter um negócio que abriu há pouco tempo, sem uma almofada financeira para suportar a quebra face ao investimento, e não descender de uma família com recursos, deveria preocupar-me, mas eu acredito profundamente no que estamos a fazer, em termos profissionais, entenda-se. E quando eu acredito, não preciso de mais nada.
Além do amor e derivados, há pessoas que precisam de sapatos, outras de sexo, ou de carros, ou de todas as mencionadas. Eu preciso de acreditar no que faço (e de vinho, sendo que não desdenho o sexo).
Por isso, fomos apanhar maias (tenho a impressão de conhecer estas plantas como maios, mas não tenho a certeza) para proteger a vinharia e a nossa casa.

Dia #47

29.4.20
Sou quase sempre a última a sair da cama, demoro a acordar e demoro a ter vontade de me levantar. Quando o faço, ultimamente, é para ajudar os miúdos com as aulas. Um deles, o que sempre se queixou da escola, e o que tem tido piores resultados,  está a gostar desta experiência e, até, a gostar de aprender. O outro, o aluno de excelentes, está a odiar e farta-se de chorar, porque não sabemos explicar bem as coisas. Quando voltei a insistir para acompanhar as aulas em videoconferência, com a professora dele (que sabe explicar, pelos vistos), fez o seu esgar de terror e percebi que não valia a pena insistir. Se este miúdo ficou quase três meses em Timor com o pai, enquanto eu estive em Lisboa com a Bea, sem querer falar comigo no telemóvel, haveria de querer ter aulas no computador? Não me parece.
Mas, se mesmo assim não conseguíssemos reparar que são muito diferentes, um tem o cabelo quase até meio das costas, com uma franja abaixo dos olhos, e o outro usa-o rapado.
Apesar das diferenças, hoje montaram a tenda no quarto da irmã, transformado em quarto da PlayStation, e vão dormir juntos, como tem acontecido, às vezes, quando um deles sobe ou desce do beliche.
Por momentos pensei que era o amor ao campismo, mas não. Da última vez, nas ''férias da Páscoa'', puderam levar os telemóveis para a tenda e estavam à espera de poder fazer o mesmo, hoje. Quando perceberam que isso não ia acontecer, quiseram ficar na tenda na mesma, por isso nem tudo vai mal neste nosso reino.

Dia #46

28.4.20

Nesta família nascemos todos em Abril, menos o Isaac. Eu sou a primeira a festejar (a mais velha de todos) e no fim é o Nicolau, o mais novo.
Este dia valeu pela alegria deste pequeno entusiasta e irredutível menino (apesar do almoço escolhido ter sido McDonald's, ainda que largamente compensado pelo bolo oferecido pela Joana).
Obrigada, meu querido Nico!

Dia #45

27.4.20

Eu não sei como está a vossa a casa, a nossa está tão caótica como antes, ou mais. Mas pode ser de mim e não da casa.
A tranquilidade das primeiras semanas começa a dar lugar a um certo desassossego, o que até poderia não ser mau, uma vez que na medida certa é muito útil, mas nestas condições atrapalha bastante.
Bom, fez-me procurar tisanas e concluir uma das partes do casaco (sim, desisti de tricotar a Mungoche e comecei um casaco do livro japonês. Parece que funciono melhor com esquemas), portanto, nem tudo vai mal.
Quer dizer, quando o terminar e verificar que não me serve é possível que comece a chorar como os personagens de banda desenhada japonesa, aqueles que jorram água pelos cantos dos olhos, sabem? Mas posso sempre oferecê-lo a alguém, em vez disso. Ou fazer ambas as coisas.

Dia #44

26.4.20
Faltam dez minutos para terminar o 44.º dia de quarenta e só me apetece dizer que se foda o diário! Não me apetece escrever, não me apetece usar o exercício de escrita automática que aprendi na faculdade, ou os truques do curso de escrita criativa de há uns anos (andei à procura do nome do curso e deparei-me com a quantidade de coisas que fiz para me sentir útil, se calhar já me pagavam para ser consultora de qualquer coisa, digo eu).
Ou seja, não quero saber. Tenho montes* de likes no post do facebook sobre o meu aniversário de mãe pela primeira vez (sim, gostava muito de falar do orgulho e da maravilha que é ser mãe de uma criatura maravilhosa, que sei que é, mas não é o que sinto, assim sendo, vou só sorrir e acenar), por isso está tudo bem.

*obviamente depende do que cada pessoa considera montes, para mim mais de 100 são montes.

Dia #43

25.4.20
Festejar o 25 de Abril em confinamento é capaz de ter ampliado a necessidade de liberdade, porque não me lembro de me ter emocionado tanto no ano passado, ou no anterior, como neste.
Todos os anos compro cravos (tirando quando vivi em Timor) e todos os anos me lembro do que fiz neste dia há 19 anos*, porque foi a véspera do nascimento da Bea: Fui ao cinema com o pai dela, e com um casal amigo. Perdi tempos infinitos a tentar descobrir qual foi o filme (achava que nunca me ia esquecer), mas não consegui. 
Uns anos depois apaixonei-me e tive dois filhos desse amigo (que também não se lembra qual foi o filme), mas isso é outra história.
A História que se comemora hoje é a que começou a mudar o nosso país há 46 anos,  mas este é o diário de um indivíduo (ou uma indivídua se preferirem), que já aprendeu a não esperar mudar o mundo. 

*Acho que acontece com todos os pais haver um A.F e um D.F (antes dos filhos e depois dos filhos) e as datas passarem a contar a partir daí. Talvez por isso o meu poema da liberdade seja o dela.

Dia #42

24.4.20
O Jaime descobriu a Michelle Gurevich, que é o que estou a ouvir neste momento e, por certo, vou continuar por muitos e muitos momentos, tendo em conta o comportamento OCD do melómano cá de casa.
Bom, seja como for, começa a ficar claro que também vamos retirar coisas boas disto tudo, não começa?
Provavelmente ainda falta algum tempo para isto (nem sei quantos problemas cabem nesta palavrinha) passar, mas já se começa a notar um certo frenesim para voltar tudo ao ''normal''.
Por mim, podíamos ficar assim desde que tivesse mais liberdade de movimentos para poder soltar os miúdos na Natureza e encontrar-me com algumas pessoas.
Entretanto, lembrei-me que devia ter apontado pequenas coisas que fui descobrindo com o confinamento, como as cebolas de Barcelos. Há uma mercearia aqui perto de casa que vende fruta e legumes, com a origem da mesma escrita à mão, num pequeno papelão. A salsa, a alface e os limões são do quintal dela, mas isso não está escrito em lado algum.
Então, as cebolas de Barcelos fizeram-me perceber o que significa ao certo este legume ter muitas camadas. Por cada camada normal, há uma película quase transparente e muito fina, que não se deixa picar e cai na panela inteira, ou enrola-se nos dedos.
Não se pode comparar à descoberta da Michelle Gurevich, mas já tinha saudades de fazer coisas destas, de juntar cebolas de Barcelos e uma cantora e compositora canadiana no mesmo post.


Dia #41

23.4.20
É assim, estou a tentar viver o melhor possível com o que tenho (e tenho quase tudo o que preciso), mas isto começa a ficar aborrecido. Aborrecido é melhor do que problemático, mas como ando a dormir pouco (e eu nunca durmo pouco, a não ser quando amamento bebés), quer dizer que vamos ter problemas.
Espero conseguir usar os meus indian clubs, que chegaram hoje, para o bem.

P.S Valeu a festa de aniversário de uma amiga, que distribuiu bolas de berlim pelas nossas casas.

Dia #40

22.4.20

Os miúdos perguntaram, ao jantar, se já tínhamos comido alguma vez uma hóstia e a partir daí surgiu uma conversa entre o engraçado e o perturbador. Isto, precisamente, no 40.º dia de quarentena, ou seja o mesmo número de dias em que Jesus esteve no deserto, segundo as escrituras.
Às tantas, é fácil arranjar uma ligação entre isto tudo - o castigo, a quarentena, o ter acontecido na época pascal, etc. Cada qual, indivíduo ou cultura, tem a sua própria interpretação, mas não é isso que me interessa, agora, porque hoje foi o dia em que os meus filhos não me pareceram tão parvos como habitualmente parecem.
Uma vez que precisámos de ir os dois para a vinharia, eles ficaram em casa sozinhos durante uns 45 minutos. Foi o suficiente para chegar a casa e ver um bolo de iogurte no forno. Ligaram antes a perguntar se o podiam fazer, claro, e quando os autorizei a ligar o forno já estava a caminho de casa, mas não estava nada à espera de encontrar tudo tão orientado. Não havia lixo à vista e a loiça estava na banca coberta com água. Nem a falta de óleo no armário os demoveu, utilizaram o óleo usado para fritar rissóis, que estava na própria garrafa, é um facto, mas para reciclar.
Eu não provei, ainda, mas eles dizem que sabe a bola de Berlim. 

Dia #39

21.4.20
Estamos muito perto do quadragésimo dia de quarentena, talvez por isso a minha mãe me tenha convidado para almoçar no dia 3 de Maio, sem se esquecer de referir que o meu irmão tinha aceitado o convite. Continuo sem perceber a razão de ela achar que eu quero competir com os meus irmãos, mas há-de haver uma justificação, quase de certeza.
Acho que foi isso que me pôs a pensar que está a chegar o momento de voltar tudo ao normal e eu, estranhamente, não fiquei nada aliviada.
Não estou preocupada com a doença, tenho medo de ir parar ao hospital e não haver camas, ventiladores, ou o que mais for preciso e morrer por causa disso, claro, mas nesta fase da pandemia tudo indica que esse risco é menor. Também não receio o sofrimento, porque acho que se aguentei a chikungunya, também aguento o covid-19. E mesmo sabendo que não é bem assim, é um bom descargo de consciência. Quanto ao medo pela minha família é tão habitual que nem o associo a esta pandemia.
Acho que é a sensação, familiar q.b, de não me sentir preparada para sair do casulo e enfrentar o mundo outra vez, ainda por cima, a partir da Póvoa de Varzim. A falta de energia para recomeçar um trabalho que tinha praticamente acabado de começar também tem o seu peso. E, por falar nisso, também há todo um conjunto de regueifas que não sei em que roupa encaixar para conseguir sair de casa relativamente composta.

Dia #38

20.4.20
Não sei como começar a descrever o dia em que assisti a um momento histórico: a tele-escola no século XXI. Acho que vou dizê-lo como habitualmente, isto é, indo directa ao assunto. É louvável o que se está a tentar fazer. Ponto.
Podia ser melhor, e com o tempo é provável que fique; Podia ser diferente, mas esta é a escola pública que temos, sem as adaptações que cada agrupamento vai fazendo, tendo em conta a realidade em que está a trabalhar. Ou seja, agora todos os alunos do país estão na mesma sala - estou a viver uma utopia, apetece-me chorar como as Misses a sacudir as mãos na cara.
Não se preocupem, da mesma forma  que nenhuma Miss conseguiu a paz no mundo, eu sei que os problemas do nosso sistema de ensino não vão ser resolvidos, mas deixem-me regozijar com o único momento em que sinto que a Educação é igual para todos (ou para uma grande maioria, vá).
É claro que gerir as diferentes plataformas da escola de cada um deles mais a tele-escola do terceiro ano, para um, e do quinto para outro, faz-nos parecer chimpanzés num jardim zoológico, mas às tantas é isso que somos (''e sabias que temos 130 células [são 130 tipos, mas depois explico-lhe], que desempenham diferentes funções no corpo humano, mamã''?).
A boa notícia é que só faltam dois meses (?) para acabar o ano lectivo. E temos muito vinho.

Dia #37

19.4.20
Ando a adiar a assinatura digital de um jornal, por um lado por continuar a preferir o papel e por outro por estar à espera que chegue o jornal que me vai convecer. Não é agora que vai surgir um jornal novo, claro, mas talvez demore menos depois desta crise.
Isto tudo para dizer que não li a entrevista ao historiador Manuel Loff, que poderia ser uma das notícias que me converteria a leitora assinante, mas como tenho andado a pensar nisso vou usar só a informação do título e do lead (será que os meninos da Abut, que fizeram um jornal comigo, ainda se lembram do que é o lead?)
Então, tudo indica que o confinamento tem sido bem sucedido em Portugal. Eu sei que nem toda a gente tem essa impressão, porque encontra muitas pessoas na rua, porque conhece alguém que conhece alguém que foi não sei onde e fez não sei o quê, mas parece ser uma realidade que, em comparação com outros países da Europa, os portugueses fizeram o que lhes foi pedido.
É muito provável que as razões sejam ''o medo, o pessimismo e a tristeza dos portugueses'', como referiu o historiador, mas eu estou convencida que esse sucesso se deve à nossa cultura da obediência. Mas eu não sou historiadora, socióloga, nem doutorada em qualquer ciência social, não tenho como saber se os portugueses são obedientes por sentirem medo (lá está), ou se por sentirem que são uma parte importante na resolução do problema.
Vamos fazer de conta que os portugueses são os meus filhos e nós, os pais, os nossos governantes. Ui, pensando melhor, vamos esquecer, isso. Mas já perceberam, certo? O respeitinho-é-muito-bonito-e-eu-gosto está muito bem inculcado nas nossas cabeças.

Dia #36

18.4.20
Estava a olhar para a minha agenda, agora tão vazia, e decidi preenchê-la com programas virtuais interessantes. Aparentemente nada parece interessar-me por aí além, porque as páginas continuam em branco, mas tenho uma marcação para hoje: Ver Mais Sobre Ti, que contou com a colaboração de uma amiga. Vou ver e comer laranjas. Eu sei que não devemos comer laranjas à noite (a laranja de manhã é ouro, à tarde prata e à noite mata, ouvi muitas vezes a minha avó), mas eu gosto de correr riscos!

Dia #35

17.4.20
Hoje de manhã pensei: vou ficar na cama a dormir o dia todo (estou mesmo a ficar idosa, antigamente queria domir semanas, ou meses, quando não sabia o que fazer com a minha vida), mas depois veio o Nicolau perguntar-me se não ia ajudá-lo com a escola e, logo a seguir, veio o Jaime, aflito, perguntar qual era o problema e eu achei que tinha de me levantar.
Saí da cama, igual a uma lontra, com a cabeça a latejar e uma nódoa negra na canela da perna com origem desconhecida (entretanto, lembrei-me que ontem, antes de me deitar, a porta do armário onde temos o balde do lixo soltou-se e bateu-me na perna).
Como gastei demasiada água no duche, fique a pensar se servirá para alguma coisa tomar menos vezes banho, se depois compenso com longas e quentes chuveiradas de água. Ainda considerei definir uma quantidade para gastar semanalmente, com a cabeça sempre a latejar, e ri-me. É por isso que bebo, para deixar de me ouvir.
No resto do dia, e depois de me sentir uma atrasada mental a acompanhar as aulas das crianças, decidi fazer as coisas que me ajudam a não pensar: caminhar, ler e tricotar. Cozinhar, às vezes, também ajuda, mas a utilidade/necessidade da acção estraga o efeito.
Se cada um de nós pudesse fazer só o que lhe apetecesse, lhe fosse conveniente, que tipo de pessoa seríamos? Eu acho que não seria má pessoa, mas gastava muita água.

Dia #34

16.4.20
Perguntei num dos grupos do whatsapp (só tenho dois, já percebi que sou muito pouco popular) se estaria a pirar, por ter desatado a chorar no meio da rua, quando vi um carro da polícia estacionado, com as portas abertas, o altifalante a tocar os ''Parabéns a Você'' e um agente, com máscara, a olhar para uma varanda e a bater palmas. Também bati palmas, claro, e acelerei o passo para não verem os rios de lágrimas a escorrerem para dentro da camisola. Devia ter baixado a gola, em vez de a puxar até ao nariz. Ainda por cima, mais à frente, ouço alguém a gritar o meu nome e ao reconhecer a voz do querido Rocha procurei a janela e lá estava ele a atirar-me beijos do sexto, ou séptimo andar, não contei quantos eram, os andares. Nem os beijos, mas pareceram-me muitos mais beijos que andares.
No grupo disseram-me que a choradeira era justificadíssima, e eu acreditei. É um grupo onde se fala sobre quem tira a camisa das favas para as cozinhar e quem prefere comê-las com camisas. Um grupo fiável, portanto (que saudades destas conversas ao vivo, minha nossa!).
Tenho sempre com quem contar quando tudo começa a parecer demasiado kinky. Isso, sim, é ter sorte.

Dia #34

15.4.20
Li: “Isto, para todos os efeitos, é uma crise. E raramente saímos das crises da mesma forma como entrámos. Acontecem coisas em nós, e na nossa relação com as outras pessoas, que fazem com que tudo mude” Miguel Xavier, psiquiatra e coordenador do plano do Governo para a Saúde Mental durante a pandemia.
Também se diz, mais ou menos, o mesmo das viagens e não tenho a certeza que as pessoas regressem assim tão diferentes, ou talvez regressem um bocadinho diferentes de cada uma das viagens que fazem, até se tornarem outras pessoas. Mas estamos sempre à espera que ao tornarmo-nos pessoas diferentes nos tornemos melhores pessoas. Supostamente crescemos e aprendemos com adversidades e novas experiências, não é?
Calculo que dependa de pessoa para pessoa e que, aos poucos, podemos vir a ser ser cada vez mais e mais a querer/precisar de mudar, como defende o Alter Eco, mas até vermos uma transformação na sociedade vai demorar muito tempo. Não há-de ser daqui a dois, ou três meses (nem daqui a dois, ou três anos) que tudo vai ficar bem.

Entretanto (saudades do Meanwhile de John Colbert), a escola dos miúdos começou hoje, nada a apontar. Foram duas horas a fazer os trabalhos propostos pelos professores, nos horários definidos por nós, com discussões de ideias entre todos. Estou bastante ansisosa para assistir ao #EstudoEmCasa e perceber como vai funcionar este terceiro período. Ansiosa no sentido de expectante e não de quem está a sofrer de ataques de ansiedade. Eu só tenho problemas mentais quando não tenho razões para isso, ou quando já está tudo bem, não sei se já tinham percebido. Até lá, vou aguentando e cantarolando (por favor, Jaime, se ouvires isto, lembra-te que tens uma fotografia com o José Malhoa).

Dia #33

14.4.20

Eu não tenho muito trabalho, mas consigo arranjar coisas que têm mesmo de ser feitas, como é evidente. Não estou a falar das tarefas domésticas, que essas nunca acabam, refiro-me a ter de responder a mensagens, a alimentar as redes sociais da Vinharia e a confirmar stocks, que é o suficiente para me sentar ao computador e ficar horas a ''trabalhar'', ou seja, a estar no whatsapp a conversar com as amigas, a ler os jornais, a rever o tutorial de tricot, a tentar perceber como funcionam as diferentes plataformas usadas pelas escolas dos miúdos, a deliciar-me com as comidas da quarentena no instagram e a ler cenas sobre a influência da lua e dos astros, em geral.
Por isso, às vezes, decido não trabalhar. Faço como os velhos que se sentam à soleira da porta a ver quem passa, só que no meu caso, sento-me no pátio, num banquinho de madeira, por baixo das cordas da roupa estendida, com uma chávena de café na mão, a cadela em cima do vaso de alecrim, e deixo-me estar ali, até alguém começar a gritar, ou ouvir partir alguma coisa.
Se me apetecer vou ler, ou fazer tricot, que é uma forma de ficar menos deprimida, mas também gosto de andar pela casa a reparar no que fazem eles para fugir ao aborrecimento.
Não tinha reparado, por exemplo, como é bonita a Árvore de Março do Nicolau!

Dia #32

13.4.20
Desfiz e recomecei a Mungoche mais uma vez. Só eu para decidir tricotar uma camisola com pontos que nunca tinha experimentado, como o bricoche, malhas abraçadas e aumentos à esquerda e à direita. Quer dizer, só eu para decidir voltar ao tricot com um projecto como uma camisola, quando nunca fiz tal coisa. Mas, além de cachecóis, gorros e mittens, já tricotei uns quantos pares de meias, estas luvas, de um livro japonês, e um xaile, portanto uma camisola não poderá ser muito complicado.
Quero ter uma camisola para daqui a 20 anos dizer, ou pensar: tricotei esta quando aconteceu a pandemia de 2020. Assim como tenho a mochila de campismo que comprei há 25 anos com o dinheiro da herança da minha avó paterna.
Não tenho qualquer problema em deixar coisas para trás, quase tudo o que tínhamos na nossa casa em Timor ficou em Timor, mas podemos sempre arranjar forma de transformar bens essenciais em bens especiais. Uma camisola não é só uma camisola e uma mochila não é só uma mochila. 
O que me (vos) vale é que a escola vai recomeçar e isto vai ser só desabafos, com muitos palavrões à mistura, sem estas tiradas bucolico-nostálgicas.
As crianças estão a precisar de fazer alguma coisa, isso começa a ser muito evidente, ou podem estar a sofrer de uma possessão demoníaca, sei lá. 
Seja como for, começava a parecer-me natural esperar calmamente que tudo ficasse bem. 

Dia #31

12.4.20
Passei grande parte do dia a pensar no que escrever sobre o que significa a Páscoa, para mim. Se tiverem em conta que cheguei a considerar ir para um convento, esta história podia ser muito engraçada de se ler. Mas acabei de ouvir na TV (não consegui evitar, apesar de ter passado uma parte do tempo com os dedos nas orelhas a cantarolar, para não ouvir o Marques Mendes), que os casamentos são um negócio que geram 800 milhões de euros por ano. A sério?!?
Eu sei que não posso estar do lado que despreza os negócios, quando temos um negócio, que ainda por cima pode vir a beneficiar, quem sabe, das festas de casamento, mas 800 milhões?!?! As pessoas não podem só decidir partilhar a sua vida com alguém? E, no caso de fazerem questão de assinar um contrato, não poderão fazê-lo numa cerimónia simples, como a da assinatura da escritura de uma casa (que nem é tão simples quanto isso)?
Eu sei, não é muito romântico, mas têm a vida toda para ser românticos, digo eu, que sempre adorei casamentos e festas em geral!
Enfim, acho que só vim aqui perguntar: Não poderíamos simplificar muito mais a nossa vida?

Dia #30

11.4.20
Ora bem, um mês depois:

1- Fiquei sem telemóvel, porque o parti. Foi sem querer, diga o que se disser
2- E devo estar quase a ficar sem computador, atendendo ao barulho que está a fazer
3- As crianças estão mais felizes em confinamento do que esperava
4- Nestes últimos dias apetece-me ficar na cama o dia todo, ou a embrutecer em frente à televisão
5- Só tivemos um sábado de recolha de vidro, desde que o confinamento começou (é ao primeiro e terceiro de cada mês). Morri de vergonha. Tenho de arranjar uma solução para o vidro.
6 - As batatas estão as crescer
7- A Mungoche nem por isso
8- Não consigo ficar presa ao livro que estou a ler, como fiquei com os outros do Javier Marías. Decidi culpar a tradução 
9- Ao contrário da maioria das pessoas eu achei que ia conseguir emagrecer. Enganei-me, naturalmente
10- Não sei se é normal passar muitos dias sem falar com adultos (sem ser por escrito), à excepção do Jaime, e não achar estranho
11- A Catrina consegue ser muito mais chata do que eu, quando começa a ladrar por tudo e por nada
12- É muito bom perceber que a Vinharia, apesar de estar aberta há pouco tempo, é uma espécie de porto de abrigo, para algumas pessoas
13- Dois aniversários em confinamento, check 
14- Raramente comemos sopa, apesar de termos tupperwares cheios no frigorífico e no congelador
15- Gosto, ou preciso, de pensar que o mundo vai ficar um bocadinho melhor depois disto

Dia #29

10.4.20
É quase meia-noite e só vim aqui por obrigação. Não me apetece escrever e estou a ver o Diabo Veste Prada, dá para ter uma ideia da neura, certo?
Também encomendámos lasanha da Pizza Hut para os miúdos. Batemos no fundo, é o que é!
Mas temos vinho.

Dia #28

9.4.20

Eu não sei se o nosso país está a fazer tudo o que é necessário para combater esta epidemia. Sei, pelo que leio na imprensa e pelo que vou acompanhando nas publicações de pessoas com conhecimentos técnicos (que eu não tenho), que têm sido tomadas medidas eficazes. Mesmo assim, não deixa de ser surpreendente que estejamos a ser um caso de estudo na imprensa internacional.
Obviamente, quero acreditar que somos espectaculares, mesmo sabendo que as pessoas são muito estúpidas. E quero, sobretudo, preocupar-me com o bolo de maçã e canela para cantarmos os parabéns ao Jaime, e garantir que o vinho está fresco, sem querer saber do resto.
Também não percebi como vai funcionar o terceiro período das duas crianças aqui em casa, mas não quero pensar nas outras todas, sem computadores e com pais analfabetos funcionais. Além disso, começo a achar que pode muito bem ser uma preparação para o homeschooling. Daqui a dois anos espero que se orientem sozinhos, um deles, provavelmente, daqui a dois meses. 
Há pessoas a morrer todos os dias, sempre houve, mas agora há pessoas a morrer todos os dias pelo mesmo motivo, e há pessoas a nascer todos os dias e a festejar o dia de nascimento todos os dias. Em Abril, então, é uma multidão! Mas ninguém merece mais do que o Jaime celebrar o dia em que nasceu. Ninguém!
Tchim, Tchim! Parabéns, Jaime.

Dia #27

8.4.20
Todas as minhas sinapses agiram como se hoje fosse segunda-feira. Tive de sair para despachar umas encomendas da Vinharia, mas de resto andei aqui pela casa a pastar. Os miúdos, curiosamente, estiveram activos de uma forma positiva, ou seja, não andaram a gritar (muito) pela casa, nem se trataram mal. Provavelmente, tenho de estar inanimada para eles funcionarem bem.
Ainda assim, ajudei o mais novo a montar a tenda lá fora e estão os dois há umas horas lá dentro a ver youtubers parvos, claro, mas também a ouvir música e a jogar cartas. Dizem que querem dormir na tenda, vamos ver como isso corre.
Hoje de manhã, o Isaac disse que queria tomar banho. Ele nunca quer tomar banho, até entrar na banheira, por isso ia tendo um ataque. Depois percebi que ele queria usar o desodorizante pela primeira vez e como lhe tinha dito que não se pode usar roll on sem tomar banho, tomou a decisão. Depois tive mesmo um ataque: o meu querido filho começou a cheirar mal!!!! Está a chegar a altura de ter pré-adolescentes rapazes em casa.
As minhas sinapses precisam de fazer um reset rapidamente.

Dia #26

7.4.20
Seria muito fácil assumirmos este estilo de vida para sempre - desacelerado, vincadamente doméstico e esteticamente desinteressante -, se se tornasse uma cena hipster. Espera, os hipsters já eram isto, não eram?
Acho mesmo que o drama pós Covid não vai ser a economia, quando muito, talvez os 95% que trabalham passem a ser 94% para continuarem a garantir a riqueza dos 5% mais ricos do país. O drama vai ser redefinir escalões sociais.
Quem vão ser os hipsters se toda a gente já sabe fazer pão? Quem vão ser os hippies se toda a gente se está a marimbar para a roupa por passar a ferro? (ok, se não estão deviam aproveitar) Quais serão os médicos que merecem receber 90€ por uma consulta, quando estão a fazer o mesmo trabalho dos que recebem um salário do SNS? E as escolas? Bem, aqui nem sei por onde começar.
E se de repente os operários, que a par dos médicos são os que mantêm o país a funcionar, determinarem o futuro da mundo ocidental? Eu sei, estou a delirar, mas apetecia-me tanto assistir a esta realidade! Não tem nada a ver com qualquer moral de justiça social, era mesmo por diversão. Afinal, já não vou para nova e não vejo telenovelas (ainda existem?), e os meus filhos até me parecem capazes de se desenrascarem numa fábrica, ou de conduzirem um camião durante 12 horas.

Dia #25

6.4.20
Um dia destes tenho de falar do antigo troço da linha de comboio, entre a Póvoa de Varzim e  Famalicão, que está a ser transformado em ciclovia e caminho pedestre. Também preciso de falar sobre a minha avó, que faz 92 anos, mas hoje só me ocorre confluir para esta ideia de que ''todo o ser humano é ridículo à sua maneira''*.


*do filme O Nosso Último Verão na Escócia

Dia #24

5.4.20

Recebi a minha prenda de aniversário mal acordei e comecei a logo a choramingar ao ler os papelinhos com as mensagens de toda a gente. Parecia que estavam todos ali comigo, apesar de ainda estar na cama. Obrigada a toda(o)s, não sabia, ou tinha esquecido, que pensam tantas coisas boas sobre mim.
Ver o entusiasmo dos miúdos, sobretudo do Nicolau, faz-me querer gostar de festejar o aniversário. Foi ele que fez o bolo, com a ajuda do Isaac, e o Jaime a jardineira do almoço. Escolheu este prato, porque cozinhou-o nas duas últimas gravidezes, para satisfazer os meus desejos (mesmo sem ser apreciador) e eu achei que foram as melhoras jardineiras que alguma vez comi na vida.
A de hoje também estava maravilhosa, mas como não estou grávida não posso dizer que é a melhor de sempre. O palato tem destas coisas. Quanto ao vinho, só posso dizer: UAU!
De resto foi um dia normal, com as coisas boas que já referi e outras menos boas, como na vida em geral. 
O que não deixa de ser curioso é este ser o terceiro ano consecutivo de aniversários estranhos. Aos 45, foi a primeira vez que não festejei com o Jaime, desde que estamos juntos, aos 46 não tinha a Bea comigo e aos 47 temos o Covid-19.
Melhores anos virão, certo?

Dia #23

4.4.20
Devo estar com síndrome véspera de aniversário, ou outra coisa qualquer, porque se tivesse passado o dia na cama estava muito bem, tirando as dores nos ossos. Uma pessoa sabe que está naquele limite de jovem adulto para adulto adulto quando o corpo pede para sair da cama, e a cabeça suplica para nos deixarmos estar.
Foi um dia a gerir (aka a deixar andar) frustrações alheias e próprias, aborrecimentos e dores de crescimento que nem a ida ao quiosque para comprar jornais amenizou.
Os meus filhos pareceram-me pessoas crescidas, no sentido de maduras, o que só pode querer dizer que estou a ficar louca. Se bem que isso implicaria dar razão ao Jaime e assumir que não é ele que está chato, que eu é que estou sem paciência. Portanto, estou muito sã.
E amanhã, pelos visto, temos uma festa!

Dia #22

3.4.20
Não sei bem o que fiz hoje, além de ter chegado a uma parte importante da camisola que estou a tricotar e de ter conseguido fazer pão pita para o falafel, também feito em casa, que tinha congelado há uns tempos.
Não sendo a pessoa mais organizada do mundo e que até nem aprecia rotinas por aí além, tenho o momento das refeições como uma espécie de guia. Tenho de fazer isto e isto até à hora do almoço e mais aquilo e aqueloutro até à hora de jantar. Mesmo em quarentena é o que funciona para mim. E estando mais tempo em casa, sem ter de ir buscar os miúdos à escola, é mais fácil fazer pão e pensar em receitas demoradas.
Também se dá o caso de gostar de comer e beber, claro, por isso é que estou a adorar seguir os menus do Zé e da Inês, no instagram. Como diário da quarentena, parece-me uma ideia assim espectacular!

Dia #21

2.4.20
Hoje foi dia de limpar a casa. Não preciso de dizer mais nada, pois não?
Sim, não arrastei a cama para aspirar, nem limpei o pó, ou lavei a parte de fora das sanitas (cujos autoclismos não funcionam), desde que começou a quarentena. E não tem nada a ver com a falta de tempo, pelos vistos. É a mesma falta de vontade de sempre.
As tarefas domésticas são divididas, obviamente, mas cada qual investe o seu tempo naquilo que acha necessário e fundamental para o bom ambiente familiar. Funciona? Sim, quase sempre.

Dia #20

1.4.20
O Nicolau perguntou-me se eu ainda era jornalista e eu disse que sim. Se ainda tenho a actividade aberta nas finanças, acho que posso dizer que sim, apesar de saber que não sou.
Procuro manter-me informada, como toda a gente, e continuo a confiar em alguns meios de comunicação, mas mesmo estes nunca me pareceram tão obsoletos como me parecem agora. Ou, talvez esteja a questionar tudo em demasia.
Fiz uma máscara facial com aloe vera, mel e açafrão e, quando saí para fazer a caminhada, apanhei flores num descampado. Também escrevi uma carta para a Bea.
Ia começar a fazer o jantar, arroz de marisco, mas acabou o gás. Enquanto espero pela botija, acho que vou beber um copo de vinho.

Cartas da Póvoa #3

1.4.20
Querida Bea,

Ao longo deste ano em que estiveste afastada de nós, pensei várias vezes escrever-te mais uma carta, mas depois nunca sabia o que queria, ou o que devia, dizer.
Agora sei. O que quero dizer, pelo menos. Convenhamos, um ano e um mês é tempo suficiente para pensar no que nos aconteceu.
Eu não sei, ainda, o que aconteceu, da última vez que abordamos o assunto pediste para falarmos noutra altura, nem sei se alguma vez vou saber. O que me fez escrever-te hoje, foi ter acordado a cantar Suede, ''The 2 Of Us''.
É estranho lembrar-me de ti sempre que ouço esta banda, porque nunca a ouvimos juntas e também por não ser uma daquelas pessoas que tem uma banda sonora para tudo. Bem, talvez tenha o David Bowie como banda sonora dos meus anos de liceu, mas não sei se era por precisar disso, ou se por saber que fazia parte.
Acho que foi numa viagem de carro que eu e o Jaime fizemos com os miúdos e ele pôs o ''Dog Man Star'', no leitor de CDs. Quando começou a ''Still Life'', desatei num pranto nunca visto. Eu só conseguia pensar em ti, e em como podia continuar a viver sem te ter na nossa vida, e o Brett Aderson a gritar ''But it's still, still life/But it's still, still life/But it's still, still life''. Enfim, o que vale é que os miúdos acharam que eu estava muito emocionada com a música e ainda hoje me gozam com isso.
Então, hoje acordei a cantar ''Lying in my bed./Watching my mistakes...'' e pensei se também estarias deitada na tua cama a pensar nos teus erros. Quer dizer, a cama onde estás deitada por estes dias é, muito provavelmente, um erro por si só, mas a vida é tua, as escolhas são tuas, como sempre te disse.
Não quero estar, nem tenho estado, a fazer juízos de valor sobre as tuas opções. Só queria fazer parte da tua vida, saber o que sentes, que planos tens para o futuro, sobretudo agora, quando o futuro parece cada vez mais distante.
Mas isso já sabes. O que quero dizer-te é que tenho muita pena que não nos queiras na tua vida, porque estás a perder a oportunidade de passar bons momentos com pessoas realmente espectaculares. Até podias não gostar muito de nós enquanto família, mas, caramba, o que nos divertimos juntos!!!
Agora, ainda antes do Covid-19, temos andado mais preocupados, mais ocupados e estamos mais cansados, mas ainda somos espectaculares. Podes ter a certeza.

Dia #19

31.3.20

Fui levar umas coisas a casa da minha mãe e não foi o drama que estava à espera. Sem beijos, nem aproximações desnecessárias, tudo com muita naturalidade. Na verdade, nunca fomos muito de manifestações de afecto e talvez não sejamos tão próximas como pensava, ou gostava, não sei. Não quis ir ao quarto ver a minha avó, que já não anda há um par de anos, nem fala há uns meses.
Depois do almoço estivemos a trabalhar nas burocracias da vinharia, que é a parte menos divertida do negócio. Bom, limpar os vidros daquela montra e lavar o chão também não é propriamente entusiasmante, mas é mais tolerável. Quer dizer, depende dos dias!
Como queremos evitar que as crianças passem muito tempo a olhar para ecrãs, o Jaime foi buscar a caixa de ferramentas, que é assim uma mania que me ultrapassa, este fascínio por ferramentas. Temos coisas que acho que nunca foram usadas, só porque o Jaime achava giras, ou úteis, sei lá eu. Enfim, eles também não ficam indiferentes àquela parafernália e, portanto, foi uma bela tarde de marteladas e objectos a serem lixados.
O que me valeu foi ter tido o melhor momento da quarentena, até agora: o pão com doce de kiwi da Dora e a infusão da felicidade que ela enviou pelo Jaime, aquando da entrega da encomenda de vinho.
Nunca pensei que uma infusão pudesse saber-me tão bem como um copo de vinho! E aquele doce, então, nem sei o que dizer.

P.S acabei de ter a primeira conversa online, desde que isto começou, com uma amiga de longa data e foi tão bom (isto hoje está a ser um dia em grande)!! Para muita gente pode ser estranho, mas eu não gosto particularmente de falar com pessoas no computador, ou no telefone. Mesmo nos dois anos em que vivi em Timor devo ter feito duas chamadas skype. Parece que até isso a quarentena está a mudar!

Dia #18

30.3.20
Tenho a sensação que passei o dia entre o computador e o sofá, com os miúdos a andar, ou a gritar, por aqui. Não foi inteiramente assim, mas sabemos que é mais importante a forma como interpretamos os factos, do que o factos em si.
Depois de ter tratado das encomendas, que o Jaime foi entregar ao Porto (confirma-se que foi melhor ter ficado, é unânime que não teria conseguido evitar chorar), deixei-os comer a massa com pesto no sofá, enquanto comi uma sandes de salmão fumado; joguei Ping Pong na mesa de jantar; recomecei a camisola que desfiz ontem; tratei de ferimentos e ajudei a preparar lanches.
Ainda assim parece que passei o dia entre o computador e o sofá, com os miúdos a andar, ou a gritar, por aqui.
Até quando as segunda-feiras vão ser segundas-feiras?

Dia #17

29.3.20
Por causa dos miúdos terem andado a brincar com a roupa de recém-nascidos sonhei que aquele body do Isaac estava a ser usado como pano do pó, para grande desgosto do Jaime.
Decidi plantar batatas num vaso e cebolinho noutro e apeteceu-me muito voltar a ter um jardim. Podemos sempre mudarmo-nos para o Porto, já que o nosso apartamento tem quintal, e fechar esse capítulo de uma vez por todas!
Os miúdos começam a acusar o aborrecimento de estarem fechados em casa, a minha esperança é que se fartem dos ecrãs de uma vez por todas e comecem a fazer outras coisas. Nem que seja dar banho a todos os peluches e fazer provas cegas de comidas, quando ninguém quer comer.
Amanhã temos entregas de vinho no Porto e algumas amigas aproveitaram para fazer encomendas. Fiquei encantada com a possibilidade de rever pessoas que adoro, mas depois lembrei-me da distância social e achei melhor evitar fazer figuras tristes.
Não interessa, ''vamos ficar todos bem'', como diz no desenho com um arco-íris pendurado na varanda que se vê da fila para o supermercado. E acreditar nisso é tudo o que importa, agora.

Dia #16

28.3.20
Ao sábado a vinharia está aberta e como o Jaime teve de sair para fazer entregas e recolher um frigorífico usado, eu fiquei lá.
Atendi quatro pessoas de manhã e todas cumpriram as regras de segurança, mas não pude deixar de notar que há quem tenha vontade de conversar, ou mais vontade do que habitualmente.
Soube-me bem pentear o cabelo e vestir uma roupa para ir trabalhar, apesar de sentir-me ligeiramente nervosa. Por isso, achei melhor levar comigo a Mungoche, poucas coisas relaxam-me tanto como tricotar.
O Jaime está sempre a dizer que quando isto acabar - a quarentena e suas consequências - vai estar tudo pior. Eu quero acreditar que vai estar melhor em muitos aspectos, ou nos que interessam, pelo menos. Mas, claramente, sou uma pessoa com fé.
Os rapazes ficaram sozinhos, antes e depois do almoço, e quando cheguei convenci-os a preparar um lanche no nosso pequeno pátio. Comeram rápido, discutiram a selecção musical e voltaram para os ecrãs.
O mais novo é o que se aborrece mais facilmente. Passa a vida a dar banho ao Panda. Eu percebo completamente o bem estar que um banho pode trazer (se não fossem as alterações climáticas era capaz de usar e abusar desta terapia), mas isto de dar banho a alguém (ou coisa) é outro nível, que eu ainda não atingi. Quer dizer, eu gostava de lhes dar banho quando eram bebés, porque a seguir adormeciam e eu podia desligar durante umas horas, mas não é isso que acontece neste caso.
Daqui a uma semana faço 47 anos e só me lembrei disso, porque o nosso obsessivo compulsivo dos banhos ao Panda, que faz anos daqui a um mês, não fala de outra coisa, isto é, do seu aniversário. Nesta casa (ou neste núcleo de família) fazemos anos todos no mesmo mês, menos o Isaac, e apesar de Abril ter sido um mês atípico nos últimos dois anos, este ano ultrapassa tudo.
Mas ainda estamos em Março e é preciso viver um dia de cada vez.

Dia #15

27.3.20
Nós estamos a enfrentar uma pandemia. É um facto. Temos de ficar em casa para nos protegermos e proteger os outros. Outro facto. Há quem diga, até, que estamos em guerra. Isso já é capaz de ser uma interpretação livre, apesar de haver muitos velhinhos a viver em lares em que, provavelmente, se sentem entrincheirados. E sabemos que há pessoas mais responsáveis do que outras e mais preocupadas com o colectivo do que o individual. Não é de agora.
O hashtag ''stayhome'' é muito bonito, mas quantos de nós têm de sair de casa para trabalhar? Honestamente, choca-me mais o julgamento sumário de tudo e de todos, do que ver velhinhos na rua, como se estivesse tudo normal, ou ver os homens das obras a almoçar juntos numa sombra. E quantas pessoas que se orgulham de ficar em casa utilizaram os serviços das que não ficam, porque estão a trabalhar?
Sim, já sabemos que sair para trabalhar é uma coisa, para passear é outra (espero tanto que esta crise venha reformular a organização do trabalho!). Mas não podemos achar que ficar em casa, com todas as mordomias que o nosso nível de vida e a tecnologia permitem, faça de nós melhores pessoas do que as que têm de sair (se calhar aquilo de não romantizar a quarentena era sobre isto. Eu costumava ser mais perspicaz...).
Sim, já sei, há as que têm de sair e as que saem porque sim e, muitas vezes, também fico perplexa com o número de pessoas na rua. Pior, porque raio saem tantas ao domingo? Será que há muita mais gente com a mesma rotina de trabalho do que supomos? Como não são nossas amigas no facebook, não temos como saber.

Bom, reflexões do dia à parte, tive um belo momento a observar os meus rapazes a ''brincar às bonecas'' com os seus peluches preferidos. Estiveram horas, isto é, uns 40 minutos, a vestir o panda e o cão com as roupas deles de recém-nascidos (finalmente tiveram uma utilidade!) e foi bonito de ser ver. Também comeram 1kg de laranjas, além das refeições normais, e o último dia de aulas foi adiado para segunda-feira.