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Mãe à distância

3.2.17
Muita gente tem-me perguntado sobre como é estar longe da Bea. Não tenho a certeza se sei responder.
Sei que viver longe dela, não vê-la todos os dias, não saber só de olhar como lhe correu o dia, não a ouvir atropelar-se nas palavras ou nos mutismos seleccionados, é mais fácil do que a ideia de estar longe dela. Ou seja, custa-me mais pensar nisso, do que viver isso. 
Além disso, eu sabia, desde os tempos em que eles medravam na mesma proporção em que eu definhava, que este dia haveria de chegar. O dia em que saem de casa. E esse dia é estranho, doloroso, brutal mesmo, mas esse dia chega sempre, ou espera-se que chegue.
Costuma ser aos poucos, porque eles vão mas vêm passar o fim-de-semana a casa, isto é, vêm lavar a roupa e comer refeições cozinhadas. No nosso caso foi assim de repente e por isso acho que ficámos numa espécie de limbo nas semanas seguintes.
Agora, quatro meses depois, já não temos a escova dos dentes dela no quarto-de-banho e já me habituei a tirar quatro pratos do armário.
As comunicações eram difíceis no início, ela falava muito pouco connosco e quando nos queixávamos disso ela argumentava que andava aflita a mudar de vida, a fazer novos amigos, a encaixar-se numa nova rotina. O fuso horário não ajuda nada e ainda por cima eu odeio o skype. Aquilo enerva-me, os miúdos ficam histéricos a falar ao mesmo tempo, a fazer palhaçadas para impressionar a irmã, etc. Não se consegue verdadeiramente conversar assim, nem com a internet a falhar.
Preferimos usar o messenger sempre que nos apetece, e tem funcionado. Às vezes estamos as duas acordadas e ficamos a conversar, outras respondemos uma à outra com horas de diferença.
Eu sei que ela está bem, apesar de nem sempre ser fácil, mas sobre isso não posso falar, porque seria entrar na intimidade de outra pessoa.
Posso dizer que a sinto muito crescida, entusiasmada com a escola e preocupada com o futuro. Sei quase nada do seu dia-a-dia e isso deixa-me, às vezes, profundamente nostálgica, mas ela tem quase 16 anos, mesmo que vivesse aqui em casa eu acabaria por saber pouco do que se passa na vida dela. Bem, aqui em Díli, por acaso, seria difícil não saber dada a dimensão da cidade, mas que me interessava tê-la debaixo de olho e, talvez, mais controlada pelo meio envolvente se vivia infeliz?
Eu lembro-me bem de quando tinha 16 anos e de como a minha mãe e avó tinham pouca importância para mim. Era bom saber que elas existiam e estavam lá para o que fosse preciso, claro, mas os meus amigos é que eram a minha família.
Portanto, não estou à espera que sejamos o centro da vida dela, nesta fase, mas era importante estar mais perto fisicamente nem que fosse só para levar com a ingratidão da adolescência nas bentas.
Enquanto isso não acontece vou-lhe seguindo os passos com os meios que disponho: os e-mails do pai, o google maps, o facebook e por aí fora.
Ela chama-me stalker e eu não me importo.

Ventura

31.1.17

Um dia vou conhecer muitos países, uns mais superficialmente do que outros, e vou poder dizer com alguma segurança, acho eu, onde é que me senti mais feliz, ou infeliz.Vou perceber, rapidamente, que o sítio terá menos a ver com isso do que com o quê e quem levo comigo, mas vou encontrar, de certeza, países com qualquer coisa de primordial que nos faz sentir uma espécie de bem-aventurança.
O Sri Lanka é um desses países.

Sim, fui feliz no Sri Lanka, comecemos já com o chavão. Fui feliz pela razão óbvia: o reencontro com a Bea passados três meses e meio. Fiz um grande esforço para não desabar num pranto de lágrimas assim que a vi sair da porta do aeroporto. Escusado será dizer que o pranto começou muito antes disso, porque se há coisa em que sou boa é a antecipar momentos, mas estávamos num aeroporto, no terminal das chegadas, há lá sítio mais emocionante?
Ela chegou. Eu chorei. O Jaime choramingou. Os irmãos agarraram-se a ela como lapas e foram assim até ao táxi do Sr. Siri.

O Sr. Siri (o som do nome era este, apesar de não existir nenhum parecido numa lista da internet com os 100 nomes mais comuns no Sri Lanka), tinha ido buscar-nos ao hotel nessa manhã. Nós chegámos um dia antes da Bea e por isso ficámos a saber que para entrar no aeroporto é preciso pagar. Estava explicada a quantidade de pessoas na rua à espera de quem chega. Nunca tinha ido buscar uma pessoa ao aeroporto num país onde não vivo. É estranho, porque dá-nos a paradoxal sensação de sermos dali.
Ele, o Sr. Siri, tinha comprado bananas e disse que podíamos comê-las. Os meus filhos que já vão percebendo inglês agarraram-se ao cacho e começaram a devorá-las. Eu fiquei meio sem jeito com aquele comportamento esfomeado mas cruzámo-nos com o amigo sapateiro do nosso taxista, que nos acenou da bicicleta, e as bananas deixaram de ser assunto.
Combinámos que seria ele a levar-nos a Colombo e no dia seguinte telefonámos-lhe para nos levar também a Sigiriya. Fica-se quase amigo dos taxistas, dos condutores de tuk tuk, do pescador das lagostas, do cozinheiro que as preparou para nós, porque há como que uma familiaridade boa entre todos. Por exemplo, sei quantos filhos têm os cingaleses com com quem troquei mais de meia dúzia de palavras. O Sr. Siri tem quatro, três raparigas e um rapaz.

Também fui feliz no Sri Lanka porque sou sempre feliz no meio da Natureza. Deve ser uma coisa que me ficou dos tempos em que levava vacas ao posto e apanhava pinhas na bouça. E no que diz respeito à Natureza no antigo Ceilão não há como não ficar impressionada. Eu vivo numa ilha tropical, estou habituada à abundância de plantas e animais, mas como aquilo nunca tinha visto. São mais de 100 as áreas protegidas deste país e não por acaso, de certeza, a primeira reserva do Mundo foi criada aqui, no século III. Portanto, acho que só por aqui dá para se perceber a minha impressionabilidade. Depois, uma pessoa vai na estrada, ali na zona entre Dambulla e Polonnaruwa, por exemplo, e vê passar os elefantes lá ao fundo, ou abranda para para mirar um par de lagartos gigantes, Water Monitors, na berma, ou fica de boca aberta a olhar para os pássaros nas árvores, enquanto os ovos do pequeno-almoço arrefecem, ou aborrece-se com os macacos que aparecem em todo o lado.
E quando se dá o caso dessa pessoa se encontrar no meio de uma manada de elefantes, no momento em que todos os jipes do safari desligam o motor, acontece magia. Eu até gostava de explicar mas, já se sabe, a magia não se explica.

E há a viagem de comboio mais bonita do mundo. Deve ser um exagero, claro. Mas não parece. Além da viagem em si, porque para andar de comboio nem sequer é preciso um destino, como diz Paul Theroux, há o valor acrescentado da paisagem em looping (a linha faz mesmo um loop depois da estação de Demodara), da ponte com os nove arcos e dos sorrisos deles, dos meus filhos, com as cabeças de fora da janela. Não sei se podia ser noutro comboio qualquer, aquela felicidade, que não naquele a caminho de Badulla.

Ainda por cima, come-se bem no Sri Lanka, por isso as pessoas que são felizes a comer, como eu, são felizes no Sri lanka. O rice and curry é uma mistura de sabores perfeita. A parata com um café cingalês, no cume fresco de Haputale, é um milagre - transformar água e farinha num pão daqueles é como transformar água em vinho.
E depois, a cereja em cima do bolo, ao contrário da maior parte dos países asiáticos há um número bastante considerável de wine shops. Sim, é preciso descer a caves, em muitos casos, e é tudo feito com muito secretismo. Mas, quer dizer, quem é que não gosta de esperar pelo seu gangster, no meio dos caixotes de lixo, rodeada de corvos?

Continuar a cantar

13.12.16
A Patti Smith esqueceu-se de uma parte da letra da canção "Hard Rain's A-Gonna Fall", de Bob Dylan, durante a actuação na entrega do Nobel. Ela disse que estava muito nervosa, os meios de comunicação social disseram que estava emocionada, mas nada disso interessa. Interessa o poema, a interpretação, com a falha incluída, ou talvez nem isso.
A mim interessa-me o que lhe terá passado pela cabeça, naqueles milésimos de segundo em que percebeu que não se lembrava do que vinha a seguir. Aquele momento transformado em buraco negro.
É mais ou menos isso, esses buracos negros, que passamos toda a nossa vida a evitar. Os momentos "e agora?"
E é por isso que nem nos passa pela cabeça não ter um emprego, não ter a roupa pendurada no roupeiro, não beber café, não mandar os filhos para escola, mandar os filhos para longe, ou viver sem "a triste comédia de uma reunião de amigos", como tão bem diz Theroux n' "O Grande Bazar Ferroviário".
Mas, pelo que vimos, não é assim tão mau. Atravessa-se o buraco negro, pede-se desculpa e continua-se a cantar.

Riso

29.8.16
Perguntaram-me, durante as férias, como são os timorenses e eu, depois de um ano em Timor, estou perfeitamente à vontade para dizer que não faço ideia. É tão fácil gostar dos timorenses como é difícil defini-los. Sei, pelo pouco que vou observando, que passam da afabilidade à violência, e vice-versa, num piscar de olhos. Sei que adoram festas, sei que ainda há um grande respeito pelos mais velhos, que levam muito a sério as tradições e que a morte é vivida de uma forma muito intensa. O luto é muito mais do que a manifestação de pesar pela pessoa falecida, há uma espécie de entusiasmo à volta do funeral e do aniversário da morte dos familiares.
Enfim, identifico algumas características que na verdade dizem-me alguma coisa sobre este povo, mas não posso ter a veleidade de acreditar que sei como são os timorenses.
E dessas características, uma das que me deixa mais desconcertada é o sorriso que mostram perante o sofrimento, ou uma situação desconfortável. Não é bem um sorriso é mais um riso. Parece-me comum em alguns povos asiáticos, mas o dos timorenses é diferente. Ou talvez seja por eu saber do que se riem, quando sei, obviamente. No outro dia dizia-me o S. que o pai já não falava e eu, sem saber bem o que dizer, saí-me com a pérola "talvez tenha chegado a hora dele" (eu sabia que já estava doente há algum tempo) e o S. riu-se e disse que sim, que tinha chegado a hora dele (morreu ontem).
É desconcertante, mas admirável ao mesmo tempo. Eu gostava de me rir quando conto que vou ao google maps ver a rua onde vive a Bea.

Do regresso

22.8.16

Antes de sair de Timor, para passar férias em Portugal, eu espantava algumas pessoas ao dizer que não estava assim tão ansiosa por visitar ao nosso querido país. Aliás, custava-me perceber aqueles "está quase!" trocados entre conterrâneos e acompanhados de sorrisos cúmplices, como se só eles soubessem do que estavam a falar.
Agora sei. Agora sei que vai ter de passar mais um ano, ou dois, até voltar a sentir frio; até voltar a juntar toda a família à volta da mesa; até estar de novo ao vivo com as pessoas de quem gosto tanto; até sentir a angustia perante a prateleira dos iogurtes e dos shampôs, porque uma pessoa já não sabe o que é ter tanta oferta da mesma coisa; até sentir outra vez o sabor dos mexilhões, da pescada e do sarrabulho; até sentir o cheiro daquele mar; até adormecer e acordar rodeada de familiaridade...Não é que não soubesse antes de ir, mas agora sei de outra forma.
Agora sei, também, o que quer dizer o encolher de ombros e o sorriso resignado dos que regressam de férias. Quer dizer: o que eu queria era ter lá ficado.

Poderão dizer-me que isso é exactamente o que sente toda a gente quando termina as férias, e dirão muito bem, mas uma coisa é sair de casa para ir de férias, outra coisa é ir de férias para casa.
Ir de férias para casa é todo um novo conceito para mim. Ele é a Decathlon que passa a ser a loja mais importante, ele é marcar quatro consultas médicas de diferentes especialidades na mesma semana, ele é listas de coisas que precisamos de trazer (e depois apercebo-nos que não trouxemos os casquilhos, nem as tomadas eléctricas), ele é carrinhos cheio de tralha só porque é uma tralha mesmo bonita e aqui não há coisas daquelas bonitas à venda, ele é assinar papeis para resolver burocracias. Enfim todo um mundo novo de veraneio. Uma espécie de interlúdio da vida de todos os dias para viver a vida que tínhamos antes.

E no fim custa regressar. Há um pedaço arrancado de mim que ficou lá (nota: ouvir a Ópera do Malandro) e a insularidade pode ser uma cena fodida, além de que as rotinas, mesmo numa ilha tropical cheia de encantos, não deixam de ser rotinas.
Só que depois chegamos à nossa casa tropical e temos o nosso cão à espera, num contentamento louco. Vemos o pôr-do-sol, corremos os olhos pelo verde Timor, damos um mergulho no mar, bebemos água de coco e acordamos com o som dos pássaros nos ouvidos - eles estão do outro lado da janela do quarto, mas parece que piam como se nos contassem segredos.
Enfim, depois, tudo está como tem de estar.
É um pouco como diz na crónica da Alexandra Lucas Coelho, trocando o nome dos países: Morar em Timor é bom mesmo sendo uma merda.