O tempo que faz lá fora

28.2.18

Ontem comecei este post:
Suponho que era uma questão de tempo até este blog se tornar novamente na caixa de lamentos de uma mãe neurótica.
É da chuva de certeza, desta chuva que cai em pingas mortiças a lamentar-se, e deste cinzento do ar.
Hoje, dei por mim a sair da cama e a barafustar baixinho com a pressão da água que sai do chuveiro, com a roupa espalhada no chão, com as crianças que insistem em ignorar-me olimpicamente - aqui já não tão baixinho assim.
Iogurtes ao pequeno-almoço e eu a olhar para eles a pensar, vocês acham isto tudo normal, não é?
Quando saímos não chovia, fomos a pé para a escola a dizer a tabuada. Hoje foi dia da tabuada do 4 e eu a olhar para eles a pensar, as pessoas trabalham, mandam os filhos para a escola e depois eles crescem para trabalhar e mandar os filhos para escola. Podem não ter filhos, é certo, mas em princípio terão de trabalhar. Ou não, o mundo está a mudar. Mas enquanto não muda é assim e acordamos todos os dias para fazer a mesma coisa. E às vezes, muitas vezes, chove e o dia está cinzento. Já não me lembrava que os dias podiam ter esta cor.

Acabei por não publicar o post porque li qualquer coisa sobre a Síria e pareceu-me insultuoso estar a falar do tempo.
Entretanto, hoje, comecei a ler o Expresso Curto escrito pelo Ricardo Marques e pareceu-me que ele começou o texto com uma boa conclusão para o meu: "Há poucas coisas tão simples e tão complicadas como o tempo que faz lá fora numa manhã como esta. É o inverno, e o inverno é assim. É feito de chuva, de neve, de vento forte e de mar bravo, de trovoadas e granizo e frio. Há escolas fechadas, estradas cortadas, acidentes de trânsito e pessoas a quem acontecem coisas más. Muito más. Mas olhamos pela janela como quem olha para o mundo. E aceitamos. Faz parte da vida."
Com a continuação da leitura do Expresso Curto percebe-se que o assunto do tempo é bem mais grave do que pode parecer à primeira vista, mas não era do tempo que eu queria falar.

Caiu uma tristeza em mim

22.2.18
Ontem, não sei se a sonhar se acordada, estava em Díli. Foi tão real a visão da rua da nossa casa, das buganvílias a sair pelas grades, das motas a circular, dos alunos da escola do Farol a comerem no passeio, que me assustei. Abri muito os olhos e pensei que se calhar o Jaime estava finalmente em Timor, depois de uma viagem atribulada, e que eu conseguia ver o que ele via. Não foi nada disso, claro.
Depois, "caiu uma tristeza em mim", foi como lhe descrevi o meu estado, não sei se por estarmos outra vez longe um do outro, se por sentir falta de Timor. 
Com este recomeço em Portugal, e tudo o que isso tem implicado, não tenho pensado muito no que ficou para trás. Penso nas pessoas, no cão, na força daquela natureza que vai ficar para sempre entranhada em mim, mas agora estou aqui. E estou bem. 
Mesmo assim, "caiu uma tristeza em mim", ainda antes do Jaime me descrever como foi entrar em nossa casa com a árvore de Natal por desfazer, porque os miúdos queriam que eu a visse quando chegasse, com os desenhos deles nas paredes, os brinquedos no quarto e as nossas roupas penduradas. 
Gostava mesmo de perceber como é possível termos tantas casas. Casas realmente habitadas por nós, ou partes do nós. Também gostava de perceber a matéria da terceira classe, ou melhor, do terceiro ano, mas não se pode ter tudo, não é? (eu sei que parece mas não é uma pergunta de retórica)
"Caiu uma tristeza em mim" e por isso não fiz nada do que queria, ou precisava de fazer. Bem, fiz o bolo de iogurte com raspa de limão para a lição 100 das turmas deles e não me esqueci de o levar para escola, pus a lavar e estendi dezenas de máquinas de roupa para aproveitar o sol e fiz quiche para não deitar fora os cogumelos murchos. Mas ainda não fui assistir a uma mesa do Correntes d' Escrita, não mudei o header do blog, não dei seguimento às histórias começadas.
As tristezas podem cair ou ficar lá onde costumam estar que eu, pelos vistos, não deixo de fazer listas.

O sítio das coisas preciosas

14.2.18
Há uns anos escrevi um conto que se chamava "O sítio das coisas preciosas" (e eu que achava que até tinha jeito para títulos!). Lembrei-me dele porque em conversa com uma amiga da Bea, que vive na mesma casa desde que nasceu, apercebi-me que até sair de casa também vivi sempre na mesma, excepto quando foi deitada abaixo para ser construída uma melhor.
Depois comecei a contar as casas onde já viveram os meus filhos e desisti a meio. Virei costas à angústia que vinha instalar-se e ouvi a poupa que frequentava o quintal da casa provisória onde vivemos até a outra ficar pronta.
Lembro-me desse período, que durou uns dois anos, nem isso, como um dos mais felizes da minha infância, mas não foi essa a casa que incluí no tal conto.
Não há como saber o que levarão eles da infância, pois não?

"Na casa havia escadas. As escadas de fora e as de dentro. As de fora, em cimento, davam para um pequeno patamar com três portas: a da sala, a da cozinha e a da retrete. As de dentro, em madeira, ligavam a cozinha ao coberto. Todos os que viviam na casa tinham caído nas escadas de dentro. Nunca ninguém se aleijou.
A casa tinha uma sala, dois quartos e a cozinha, em cima. Em baixo, o coberto com os teares e os farrapos.
Havia sempre caruma, porque era preciso acender o lume para aquecer água e cozinhar.
Caruma e pinhas.
Havia também os copos da cristaleira e as cobertas de pôr à janela quando passa a procissão.
E havia canteiros com flores: dálias, malmequeres e cravos. As flores eram para o cemitério.
Havia a pá para tirar a borralha.
E um secador do cabelo. Não havia banheira, porque nem sequer existia um quarto de banho, mas havia um secador de cabelo. Ela detestava que a mãe lhe secasse o cabelo com o secador, porque lhe queimava as orelhas. Isto antes de lhe cortar o cabelo curto.
Em casa havia ainda muitos baldes, bacias e cântaros.
E um pipo com vinho dentro, que saía por uma torneirinha. Às vezes não tinha vinho.
Ao lado da casa estava o anexo, onde viviam a tia e as primas. Em cima do anexo secava o milho.
Um dia chegaram os camiões e os caterpillars e outros que não sabia o nome para deitarem a casa abaixo.
Ela chorou. A mãe disse que era para construírem uma casa melhor, mas ela não queria uma casa melhor. Queria aquela."

Contaminação

8.2.18
Em boa verdade não sou assim tão boa a mudar de vida. A mudar de casa, de país, de cidade e de rotinas sim, mas isso é mais acrescentar do que mudar, acho eu.

Podia era estar sempre como estou agora, com o Jaime em casa grande parte dos dias, os dois sentados frente a frente, cada qual no seu computador. "Já viste que o Álvaro Lapa vai estar em Serralves"?- pergunta ele. "A sério, quando?"- pergunto eu e depois mandamos sms à Bea e depois segue cada qual com os seus afazeres, não sem antes ir buscar o catálogo de uma outra exposição, a do Alvess, que vimos nesse museu, em 2008, e que nos pareceu espectacular.
E a vida parece perfeita até a rádio passar a música errada, ou o Jaime espirrar. Além de fotofobia, parece que sofro de misofonia.

Quanto aos afazeres dele não sei, os meus ficaram adiados mais um pouco, porque a seguir lembrei-me da exposição "Em viagem 70-76" de Robert Rauschenberg, que vi em 2007 e sei a data de cor, porque nesse ano fiz algumas reportagens giras no Museu de Serralves e porque logo a seguir a ter visto Rauschenberg no Porto encontrei-o em Nápoles, no Museu de Capodimonte. Não sei se foi esta coincidência, ou se a exposição em Itália era mesmo espectacular, sei é que nunca mais me esqueci daquele "Parsons Live Plants Ammonia", entre as cenas de consumismo do século XVII de Joachim Beuckelaer.

Eu fui à procura das obras no google, porque não me lembro se tirei fotos, provavelmente não era permitido, e eu sou muito bem mandada nos museus, mas mesmo que tenha tirado perdi-as.
A pesquisa não foi tão fácil como pode parecer, e foi muito mais demorada do que seria desejável, mas ajudou-me a perceber uma coisa. A contaminação que a curadoria desta exposição procurou é a mesma que quero para a minha vida. E isto não é assim tão filosófico-artístico como parece.
É só a constatação óbvia de que é tão melhor quando as pessoas têm tempo. Para estar, conversar, trocar ideias. Para se contaminarem umas às outras.

Da inutilidade

6.2.18
O meu computador chegou de Timor. Veio numa caixa de cartão sem a bateria e faço esta referência porque emocionei-me a desembrulhá-lo. Assim desmembrado, no meio de cartões e esferovite, era o retrato de um velho companheiro que passou certos tormentos para aqui chegar. Quase lhe perguntei: Então, meu velho, como está Timor? Já sabemos que uma coisa não é como uma pessoa que acorda num sítio e no dia seguinte acorda noutro sem que o corpo perceba como foi ali parar, mas pareceu-me cansado e feliz por me ver. Afinal, passámos muitas horas juntos, guardou uma infinidade de ideias e desabafos. Assistiu, talvez, a mais desesperos do que qualquer pessoa.

Chegou e a desculpa completamente esfarrapada que tinha arranjado para deixar o blog em suspenso deixou de existir.
Liguei-o e no meio das várias fotos espalhadas pelo ambiente de trabalho estava o diagrama do Ikigai que está ali em cima (ainda sem as minhas intervenções). Foi pouco antes de regressar a Portugal que li sobre este conceito japonês e quando olhei para o diagrama, e para tudo o que deixei no ambiente de trabalho, lembrei-me que quando desliguei o computador não fazia ideia que não ia regressar a Timor.

Sabia que a nossa vida nos trópicos tinha data de validade mas esta decisão foi tomada no seguimento de acontecimentos inesperados que foram surgindo quase em catadupa. E agora é começar tudo outra vez.
Um dia pode ser que descubra qual o meu Ikigai, para já sei que sou boa nesta coisa de mudar de vida.