Dia #48

30.4.20

Sei que há muitas dúvidas sobre o que nos espera, mas essa é basicamente a condição de ser humano, por isso, não, não estou preocupada. Tenho medos (estou sempre a falar disso, do meu medo de tudo) e fico apreensiva com algumas notícias, mas não estou preocupada. Não estou preocupada por nós, quero dizer, e estar aqui a falar da minha preocupação pelos outros seria só um chavão bonito. Aflige-me a situação de muita gente que conheço pessoalmente e de pessoas que não conhecendo sei quem são, mas é só isso. Aflige-me e continuo com a minha vida.
E a minha vida está bem, na minha perspectiva. Ter um negócio que abriu há pouco tempo, sem uma almofada financeira para suportar a quebra face ao investimento, e não descender de uma família com recursos, deveria preocupar-me, mas eu acredito profundamente no que estamos a fazer, em termos profissionais, entenda-se. E quando eu acredito, não preciso de mais nada.
Além do amor e derivados, há pessoas que precisam de sapatos, outras de sexo, ou de carros, ou de todas as mencionadas. Eu preciso de acreditar no que faço (e de vinho, sendo que não desdenho o sexo).
Por isso, fomos apanhar maias (tenho a impressão de conhecer estas plantas como maios, mas não tenho a certeza) para proteger a vinharia e a nossa casa.

Dia #47

29.4.20
Sou quase sempre a última a sair da cama, demoro a acordar e demoro a ter vontade de me levantar. Quando o faço, ultimamente, é para ajudar os miúdos com as aulas. Um deles, o que sempre se queixou da escola, e o que tem tido piores resultados,  está a gostar desta experiência e, até, a gostar de aprender. O outro, o aluno de excelentes, está a odiar e farta-se de chorar, porque não sabemos explicar bem as coisas. Quando voltei a insistir para acompanhar as aulas em videoconferência, com a professora dele (que sabe explicar, pelos vistos), fez o seu esgar de terror e percebi que não valia a pena insistir. Se este miúdo ficou quase três meses em Timor com o pai, enquanto eu estive em Lisboa com a Bea, sem querer falar comigo no telemóvel, haveria de querer ter aulas no computador? Não me parece.
Mas, se mesmo assim não conseguíssemos reparar que são muito diferentes, um tem o cabelo quase até meio das costas, com uma franja abaixo dos olhos, e o outro usa-o rapado.
Apesar das diferenças, hoje montaram a tenda no quarto da irmã, transformado em quarto da PlayStation, e vão dormir juntos, como tem acontecido, às vezes, quando um deles sobe ou desce do beliche.
Por momentos pensei que era o amor ao campismo, mas não. Da última vez, nas ''férias da Páscoa'', puderam levar os telemóveis para a tenda e estavam à espera de poder fazer o mesmo, hoje. Quando perceberam que isso não ia acontecer, quiseram ficar na tenda na mesma, por isso nem tudo vai mal neste nosso reino.

Dia #46

28.4.20

Nesta família nascemos todos em Abril, menos o Isaac. Eu sou a primeira a festejar (a mais velha de todos) e no fim é o Nicolau, o mais novo.
Este dia valeu pela alegria deste pequeno entusiasta e irredutível menino (apesar do almoço escolhido ter sido McDonald's, ainda que largamente compensado pelo bolo oferecido pela Joana).
Obrigada, meu querido Nico!

Dia #45

27.4.20

Eu não sei como está a vossa a casa, a nossa está tão caótica como antes, ou mais. Mas pode ser de mim e não da casa.
A tranquilidade das primeiras semanas começa a dar lugar a um certo desassossego, o que até poderia não ser mau, uma vez que na medida certa é muito útil, mas nestas condições atrapalha bastante.
Bom, fez-me procurar tisanas e concluir uma das partes do casaco (sim, desisti de tricotar a Mungoche e comecei um casaco do livro japonês. Parece que funciono melhor com esquemas), portanto, nem tudo vai mal.
Quer dizer, quando o terminar e verificar que não me serve é possível que comece a chorar como os personagens de banda desenhada japonesa, aqueles que jorram água pelos cantos dos olhos, sabem? Mas posso sempre oferecê-lo a alguém, em vez disso. Ou fazer ambas as coisas.

Dia #44

26.4.20
Faltam dez minutos para terminar o 44.º dia de quarenta e só me apetece dizer que se foda o diário! Não me apetece escrever, não me apetece usar o exercício de escrita automática que aprendi na faculdade, ou os truques do curso de escrita criativa de há uns anos (andei à procura do nome do curso e deparei-me com a quantidade de coisas que fiz para me sentir útil, se calhar já me pagavam para ser consultora de qualquer coisa, digo eu).
Ou seja, não quero saber. Tenho montes* de likes no post do facebook sobre o meu aniversário de mãe pela primeira vez (sim, gostava muito de falar do orgulho e da maravilha que é ser mãe de uma criatura maravilhosa, que sei que é, mas não é o que sinto, assim sendo, vou só sorrir e acenar), por isso está tudo bem.

*obviamente depende do que cada pessoa considera montes, para mim mais de 100 são montes.

Dia #43

25.4.20
Festejar o 25 de Abril em confinamento é capaz de ter ampliado a necessidade de liberdade, porque não me lembro de me ter emocionado tanto no ano passado, ou no anterior, como neste.
Todos os anos compro cravos (tirando quando vivi em Timor) e todos os anos me lembro do que fiz neste dia há 19 anos*, porque foi a véspera do nascimento da Bea: Fui ao cinema com o pai dela, e com um casal amigo. Perdi tempos infinitos a tentar descobrir qual foi o filme (achava que nunca me ia esquecer), mas não consegui. 
Uns anos depois apaixonei-me e tive dois filhos desse amigo (que também não se lembra qual foi o filme), mas isso é outra história.
A História que se comemora hoje é a que começou a mudar o nosso país há 46 anos,  mas este é o diário de um indivíduo (ou uma indivídua se preferirem), que já aprendeu a não esperar mudar o mundo. 

*Acho que acontece com todos os pais haver um A.F e um D.F (antes dos filhos e depois dos filhos) e as datas passarem a contar a partir daí. Talvez por isso o meu poema da liberdade seja o dela.

Dia #42

24.4.20
O Jaime descobriu a Michelle Gurevich, que é o que estou a ouvir neste momento e, por certo, vou continuar por muitos e muitos momentos, tendo em conta o comportamento OCD do melómano cá de casa.
Bom, seja como for, começa a ficar claro que também vamos retirar coisas boas disto tudo, não começa?
Provavelmente ainda falta algum tempo para isto (nem sei quantos problemas cabem nesta palavrinha) passar, mas já se começa a notar um certo frenesim para voltar tudo ao ''normal''.
Por mim, podíamos ficar assim desde que tivesse mais liberdade de movimentos para poder soltar os miúdos na Natureza e encontrar-me com algumas pessoas.
Entretanto, lembrei-me que devia ter apontado pequenas coisas que fui descobrindo com o confinamento, como as cebolas de Barcelos. Há uma mercearia aqui perto de casa que vende fruta e legumes, com a origem da mesma escrita à mão, num pequeno papelão. A salsa, a alface e os limões são do quintal dela, mas isso não está escrito em lado algum.
Então, as cebolas de Barcelos fizeram-me perceber o que significa ao certo este legume ter muitas camadas. Por cada camada normal, há uma película quase transparente e muito fina, que não se deixa picar e cai na panela inteira, ou enrola-se nos dedos.
Não se pode comparar à descoberta da Michelle Gurevich, mas já tinha saudades de fazer coisas destas, de juntar cebolas de Barcelos e uma cantora e compositora canadiana no mesmo post.


Dia #41

23.4.20
É assim, estou a tentar viver o melhor possível com o que tenho (e tenho quase tudo o que preciso), mas isto começa a ficar aborrecido. Aborrecido é melhor do que problemático, mas como ando a dormir pouco (e eu nunca durmo pouco, a não ser quando amamento bebés), quer dizer que vamos ter problemas.
Espero conseguir usar os meus indian clubs, que chegaram hoje, para o bem.

P.S Valeu a festa de aniversário de uma amiga, que distribuiu bolas de berlim pelas nossas casas.

Dia #40

22.4.20

Os miúdos perguntaram, ao jantar, se já tínhamos comido alguma vez uma hóstia e a partir daí surgiu uma conversa entre o engraçado e o perturbador. Isto, precisamente, no 40.º dia de quarentena, ou seja o mesmo número de dias em que Jesus esteve no deserto, segundo as escrituras.
Às tantas, é fácil arranjar uma ligação entre isto tudo - o castigo, a quarentena, o ter acontecido na época pascal, etc. Cada qual, indivíduo ou cultura, tem a sua própria interpretação, mas não é isso que me interessa, agora, porque hoje foi o dia em que os meus filhos não me pareceram tão parvos como habitualmente parecem.
Uma vez que precisámos de ir os dois para a vinharia, eles ficaram em casa sozinhos durante uns 45 minutos. Foi o suficiente para chegar a casa e ver um bolo de iogurte no forno. Ligaram antes a perguntar se o podiam fazer, claro, e quando os autorizei a ligar o forno já estava a caminho de casa, mas não estava nada à espera de encontrar tudo tão orientado. Não havia lixo à vista e a loiça estava na banca coberta com água. Nem a falta de óleo no armário os demoveu, utilizaram o óleo usado para fritar rissóis, que estava na própria garrafa, é um facto, mas para reciclar.
Eu não provei, ainda, mas eles dizem que sabe a bola de Berlim. 

Dia #39

21.4.20
Estamos muito perto do quadragésimo dia de quarentena, talvez por isso a minha mãe me tenha convidado para almoçar no dia 3 de Maio, sem se esquecer de referir que o meu irmão tinha aceitado o convite. Continuo sem perceber a razão de ela achar que eu quero competir com os meus irmãos, mas há-de haver uma justificação, quase de certeza.
Acho que foi isso que me pôs a pensar que está a chegar o momento de voltar tudo ao normal e eu, estranhamente, não fiquei nada aliviada.
Não estou preocupada com a doença, tenho medo de ir parar ao hospital e não haver camas, ventiladores, ou o que mais for preciso e morrer por causa disso, claro, mas nesta fase da pandemia tudo indica que esse risco é menor. Também não receio o sofrimento, porque acho que se aguentei a chikungunya, também aguento o covid-19. E mesmo sabendo que não é bem assim, é um bom descargo de consciência. Quanto ao medo pela minha família é tão habitual que nem o associo a esta pandemia.
Acho que é a sensação, familiar q.b, de não me sentir preparada para sair do casulo e enfrentar o mundo outra vez, ainda por cima, a partir da Póvoa de Varzim. A falta de energia para recomeçar um trabalho que tinha praticamente acabado de começar também tem o seu peso. E, por falar nisso, também há todo um conjunto de regueifas que não sei em que roupa encaixar para conseguir sair de casa relativamente composta.

Dia #38

20.4.20
Não sei como começar a descrever o dia em que assisti a um momento histórico: a tele-escola no século XXI. Acho que vou dizê-lo como habitualmente, isto é, indo directa ao assunto. É louvável o que se está a tentar fazer. Ponto.
Podia ser melhor, e com o tempo é provável que fique; Podia ser diferente, mas esta é a escola pública que temos, sem as adaptações que cada agrupamento vai fazendo, tendo em conta a realidade em que está a trabalhar. Ou seja, agora todos os alunos do país estão na mesma sala - estou a viver uma utopia, apetece-me chorar como as Misses a sacudir as mãos na cara.
Não se preocupem, da mesma forma  que nenhuma Miss conseguiu a paz no mundo, eu sei que os problemas do nosso sistema de ensino não vão ser resolvidos, mas deixem-me regozijar com o único momento em que sinto que a Educação é igual para todos (ou para uma grande maioria, vá).
É claro que gerir as diferentes plataformas da escola de cada um deles mais a tele-escola do terceiro ano, para um, e do quinto para outro, faz-nos parecer chimpanzés num jardim zoológico, mas às tantas é isso que somos (''e sabias que temos 130 células [são 130 tipos, mas depois explico-lhe], que desempenham diferentes funções no corpo humano, mamã''?).
A boa notícia é que só faltam dois meses (?) para acabar o ano lectivo. E temos muito vinho.

Dia #37

19.4.20
Ando a adiar a assinatura digital de um jornal, por um lado por continuar a preferir o papel e por outro por estar à espera que chegue o jornal que me vai convecer. Não é agora que vai surgir um jornal novo, claro, mas talvez demore menos depois desta crise.
Isto tudo para dizer que não li a entrevista ao historiador Manuel Loff, que poderia ser uma das notícias que me converteria a leitora assinante, mas como tenho andado a pensar nisso vou usar só a informação do título e do lead (será que os meninos da Abut, que fizeram um jornal comigo, ainda se lembram do que é o lead?)
Então, tudo indica que o confinamento tem sido bem sucedido em Portugal. Eu sei que nem toda a gente tem essa impressão, porque encontra muitas pessoas na rua, porque conhece alguém que conhece alguém que foi não sei onde e fez não sei o quê, mas parece ser uma realidade que, em comparação com outros países da Europa, os portugueses fizeram o que lhes foi pedido.
É muito provável que as razões sejam ''o medo, o pessimismo e a tristeza dos portugueses'', como referiu o historiador, mas eu estou convencida que esse sucesso se deve à nossa cultura da obediência. Mas eu não sou historiadora, socióloga, nem doutorada em qualquer ciência social, não tenho como saber se os portugueses são obedientes por sentirem medo (lá está), ou se por sentirem que são uma parte importante na resolução do problema.
Vamos fazer de conta que os portugueses são os meus filhos e nós, os pais, os nossos governantes. Ui, pensando melhor, vamos esquecer, isso. Mas já perceberam, certo? O respeitinho-é-muito-bonito-e-eu-gosto está muito bem inculcado nas nossas cabeças.

Dia #36

18.4.20
Estava a olhar para a minha agenda, agora tão vazia, e decidi preenchê-la com programas virtuais interessantes. Aparentemente nada parece interessar-me por aí além, porque as páginas continuam em branco, mas tenho uma marcação para hoje: Ver Mais Sobre Ti, que contou com a colaboração de uma amiga. Vou ver e comer laranjas. Eu sei que não devemos comer laranjas à noite (a laranja de manhã é ouro, à tarde prata e à noite mata, ouvi muitas vezes a minha avó), mas eu gosto de correr riscos!

Dia #35

17.4.20
Hoje de manhã pensei: vou ficar na cama a dormir o dia todo (estou mesmo a ficar idosa, antigamente queria domir semanas, ou meses, quando não sabia o que fazer com a minha vida), mas depois veio o Nicolau perguntar-me se não ia ajudá-lo com a escola e, logo a seguir, veio o Jaime, aflito, perguntar qual era o problema e eu achei que tinha de me levantar.
Saí da cama, igual a uma lontra, com a cabeça a latejar e uma nódoa negra na canela da perna com origem desconhecida (entretanto, lembrei-me que ontem, antes de me deitar, a porta do armário onde temos o balde do lixo soltou-se e bateu-me na perna).
Como gastei demasiada água no duche, fique a pensar se servirá para alguma coisa tomar menos vezes banho, se depois compenso com longas e quentes chuveiradas de água. Ainda considerei definir uma quantidade para gastar semanalmente, com a cabeça sempre a latejar, e ri-me. É por isso que bebo, para deixar de me ouvir.
No resto do dia, e depois de me sentir uma atrasada mental a acompanhar as aulas das crianças, decidi fazer as coisas que me ajudam a não pensar: caminhar, ler e tricotar. Cozinhar, às vezes, também ajuda, mas a utilidade/necessidade da acção estraga o efeito.
Se cada um de nós pudesse fazer só o que lhe apetecesse, lhe fosse conveniente, que tipo de pessoa seríamos? Eu acho que não seria má pessoa, mas gastava muita água.

Dia #34

16.4.20
Perguntei num dos grupos do whatsapp (só tenho dois, já percebi que sou muito pouco popular) se estaria a pirar, por ter desatado a chorar no meio da rua, quando vi um carro da polícia estacionado, com as portas abertas, o altifalante a tocar os ''Parabéns a Você'' e um agente, com máscara, a olhar para uma varanda e a bater palmas. Também bati palmas, claro, e acelerei o passo para não verem os rios de lágrimas a escorrerem para dentro da camisola. Devia ter baixado a gola, em vez de a puxar até ao nariz. Ainda por cima, mais à frente, ouço alguém a gritar o meu nome e ao reconhecer a voz do querido Rocha procurei a janela e lá estava ele a atirar-me beijos do sexto, ou séptimo andar, não contei quantos eram, os andares. Nem os beijos, mas pareceram-me muitos mais beijos que andares.
No grupo disseram-me que a choradeira era justificadíssima, e eu acreditei. É um grupo onde se fala sobre quem tira a camisa das favas para as cozinhar e quem prefere comê-las com camisas. Um grupo fiável, portanto (que saudades destas conversas ao vivo, minha nossa!).
Tenho sempre com quem contar quando tudo começa a parecer demasiado kinky. Isso, sim, é ter sorte.

Dia #34

15.4.20
Li: “Isto, para todos os efeitos, é uma crise. E raramente saímos das crises da mesma forma como entrámos. Acontecem coisas em nós, e na nossa relação com as outras pessoas, que fazem com que tudo mude” Miguel Xavier, psiquiatra e coordenador do plano do Governo para a Saúde Mental durante a pandemia.
Também se diz, mais ou menos, o mesmo das viagens e não tenho a certeza que as pessoas regressem assim tão diferentes, ou talvez regressem um bocadinho diferentes de cada uma das viagens que fazem, até se tornarem outras pessoas. Mas estamos sempre à espera que ao tornarmo-nos pessoas diferentes nos tornemos melhores pessoas. Supostamente crescemos e aprendemos com adversidades e novas experiências, não é?
Calculo que dependa de pessoa para pessoa e que, aos poucos, podemos vir a ser ser cada vez mais e mais a querer/precisar de mudar, como defende o Alter Eco, mas até vermos uma transformação na sociedade vai demorar muito tempo. Não há-de ser daqui a dois, ou três meses (nem daqui a dois, ou três anos) que tudo vai ficar bem.

Entretanto (saudades do Meanwhile de John Colbert), a escola dos miúdos começou hoje, nada a apontar. Foram duas horas a fazer os trabalhos propostos pelos professores, nos horários definidos por nós, com discussões de ideias entre todos. Estou bastante ansisosa para assistir ao #EstudoEmCasa e perceber como vai funcionar este terceiro período. Ansiosa no sentido de expectante e não de quem está a sofrer de ataques de ansiedade. Eu só tenho problemas mentais quando não tenho razões para isso, ou quando já está tudo bem, não sei se já tinham percebido. Até lá, vou aguentando e cantarolando (por favor, Jaime, se ouvires isto, lembra-te que tens uma fotografia com o José Malhoa).

Dia #33

14.4.20

Eu não tenho muito trabalho, mas consigo arranjar coisas que têm mesmo de ser feitas, como é evidente. Não estou a falar das tarefas domésticas, que essas nunca acabam, refiro-me a ter de responder a mensagens, a alimentar as redes sociais da Vinharia e a confirmar stocks, que é o suficiente para me sentar ao computador e ficar horas a ''trabalhar'', ou seja, a estar no whatsapp a conversar com as amigas, a ler os jornais, a rever o tutorial de tricot, a tentar perceber como funcionam as diferentes plataformas usadas pelas escolas dos miúdos, a deliciar-me com as comidas da quarentena no instagram e a ler cenas sobre a influência da lua e dos astros, em geral.
Por isso, às vezes, decido não trabalhar. Faço como os velhos que se sentam à soleira da porta a ver quem passa, só que no meu caso, sento-me no pátio, num banquinho de madeira, por baixo das cordas da roupa estendida, com uma chávena de café na mão, a cadela em cima do vaso de alecrim, e deixo-me estar ali, até alguém começar a gritar, ou ouvir partir alguma coisa.
Se me apetecer vou ler, ou fazer tricot, que é uma forma de ficar menos deprimida, mas também gosto de andar pela casa a reparar no que fazem eles para fugir ao aborrecimento.
Não tinha reparado, por exemplo, como é bonita a Árvore de Março do Nicolau!

Dia #32

13.4.20
Desfiz e recomecei a Mungoche mais uma vez. Só eu para decidir tricotar uma camisola com pontos que nunca tinha experimentado, como o bricoche, malhas abraçadas e aumentos à esquerda e à direita. Quer dizer, só eu para decidir voltar ao tricot com um projecto como uma camisola, quando nunca fiz tal coisa. Mas, além de cachecóis, gorros e mittens, já tricotei uns quantos pares de meias, estas luvas, de um livro japonês, e um xaile, portanto uma camisola não poderá ser muito complicado.
Quero ter uma camisola para daqui a 20 anos dizer, ou pensar: tricotei esta quando aconteceu a pandemia de 2020. Assim como tenho a mochila de campismo que comprei há 25 anos com o dinheiro da herança da minha avó paterna.
Não tenho qualquer problema em deixar coisas para trás, quase tudo o que tínhamos na nossa casa em Timor ficou em Timor, mas podemos sempre arranjar forma de transformar bens essenciais em bens especiais. Uma camisola não é só uma camisola e uma mochila não é só uma mochila. 
O que me (vos) vale é que a escola vai recomeçar e isto vai ser só desabafos, com muitos palavrões à mistura, sem estas tiradas bucolico-nostálgicas.
As crianças estão a precisar de fazer alguma coisa, isso começa a ser muito evidente, ou podem estar a sofrer de uma possessão demoníaca, sei lá. 
Seja como for, começava a parecer-me natural esperar calmamente que tudo ficasse bem. 

Dia #31

12.4.20
Passei grande parte do dia a pensar no que escrever sobre o que significa a Páscoa, para mim. Se tiverem em conta que cheguei a considerar ir para um convento, esta história podia ser muito engraçada de se ler. Mas acabei de ouvir na TV (não consegui evitar, apesar de ter passado uma parte do tempo com os dedos nas orelhas a cantarolar, para não ouvir o Marques Mendes), que os casamentos são um negócio que geram 800 milhões de euros por ano. A sério?!?
Eu sei que não posso estar do lado que despreza os negócios, quando temos um negócio, que ainda por cima pode vir a beneficiar, quem sabe, das festas de casamento, mas 800 milhões?!?! As pessoas não podem só decidir partilhar a sua vida com alguém? E, no caso de fazerem questão de assinar um contrato, não poderão fazê-lo numa cerimónia simples, como a da assinatura da escritura de uma casa (que nem é tão simples quanto isso)?
Eu sei, não é muito romântico, mas têm a vida toda para ser românticos, digo eu, que sempre adorei casamentos e festas em geral!
Enfim, acho que só vim aqui perguntar: Não poderíamos simplificar muito mais a nossa vida?

Dia #30

11.4.20
Ora bem, um mês depois:

1- Fiquei sem telemóvel, porque o parti. Foi sem querer, diga o que se disser
2- E devo estar quase a ficar sem computador, atendendo ao barulho que está a fazer
3- As crianças estão mais felizes em confinamento do que esperava
4- Nestes últimos dias apetece-me ficar na cama o dia todo, ou a embrutecer em frente à televisão
5- Só tivemos um sábado de recolha de vidro, desde que o confinamento começou (é ao primeiro e terceiro de cada mês). Morri de vergonha. Tenho de arranjar uma solução para o vidro.
6 - As batatas estão as crescer
7- A Mungoche nem por isso
8- Não consigo ficar presa ao livro que estou a ler, como fiquei com os outros do Javier Marías. Decidi culpar a tradução 
9- Ao contrário da maioria das pessoas eu achei que ia conseguir emagrecer. Enganei-me, naturalmente
10- Não sei se é normal passar muitos dias sem falar com adultos (sem ser por escrito), à excepção do Jaime, e não achar estranho
11- A Catrina consegue ser muito mais chata do que eu, quando começa a ladrar por tudo e por nada
12- É muito bom perceber que a Vinharia, apesar de estar aberta há pouco tempo, é uma espécie de porto de abrigo, para algumas pessoas
13- Dois aniversários em confinamento, check 
14- Raramente comemos sopa, apesar de termos tupperwares cheios no frigorífico e no congelador
15- Gosto, ou preciso, de pensar que o mundo vai ficar um bocadinho melhor depois disto

Dia #29

10.4.20
É quase meia-noite e só vim aqui por obrigação. Não me apetece escrever e estou a ver o Diabo Veste Prada, dá para ter uma ideia da neura, certo?
Também encomendámos lasanha da Pizza Hut para os miúdos. Batemos no fundo, é o que é!
Mas temos vinho.

Dia #28

9.4.20

Eu não sei se o nosso país está a fazer tudo o que é necessário para combater esta epidemia. Sei, pelo que leio na imprensa e pelo que vou acompanhando nas publicações de pessoas com conhecimentos técnicos (que eu não tenho), que têm sido tomadas medidas eficazes. Mesmo assim, não deixa de ser surpreendente que estejamos a ser um caso de estudo na imprensa internacional.
Obviamente, quero acreditar que somos espectaculares, mesmo sabendo que as pessoas são muito estúpidas. E quero, sobretudo, preocupar-me com o bolo de maçã e canela para cantarmos os parabéns ao Jaime, e garantir que o vinho está fresco, sem querer saber do resto.
Também não percebi como vai funcionar o terceiro período das duas crianças aqui em casa, mas não quero pensar nas outras todas, sem computadores e com pais analfabetos funcionais. Além disso, começo a achar que pode muito bem ser uma preparação para o homeschooling. Daqui a dois anos espero que se orientem sozinhos, um deles, provavelmente, daqui a dois meses. 
Há pessoas a morrer todos os dias, sempre houve, mas agora há pessoas a morrer todos os dias pelo mesmo motivo, e há pessoas a nascer todos os dias e a festejar o dia de nascimento todos os dias. Em Abril, então, é uma multidão! Mas ninguém merece mais do que o Jaime celebrar o dia em que nasceu. Ninguém!
Tchim, Tchim! Parabéns, Jaime.

Dia #27

8.4.20
Todas as minhas sinapses agiram como se hoje fosse segunda-feira. Tive de sair para despachar umas encomendas da Vinharia, mas de resto andei aqui pela casa a pastar. Os miúdos, curiosamente, estiveram activos de uma forma positiva, ou seja, não andaram a gritar (muito) pela casa, nem se trataram mal. Provavelmente, tenho de estar inanimada para eles funcionarem bem.
Ainda assim, ajudei o mais novo a montar a tenda lá fora e estão os dois há umas horas lá dentro a ver youtubers parvos, claro, mas também a ouvir música e a jogar cartas. Dizem que querem dormir na tenda, vamos ver como isso corre.
Hoje de manhã, o Isaac disse que queria tomar banho. Ele nunca quer tomar banho, até entrar na banheira, por isso ia tendo um ataque. Depois percebi que ele queria usar o desodorizante pela primeira vez e como lhe tinha dito que não se pode usar roll on sem tomar banho, tomou a decisão. Depois tive mesmo um ataque: o meu querido filho começou a cheirar mal!!!! Está a chegar a altura de ter pré-adolescentes rapazes em casa.
As minhas sinapses precisam de fazer um reset rapidamente.

Dia #26

7.4.20
Seria muito fácil assumirmos este estilo de vida para sempre - desacelerado, vincadamente doméstico e esteticamente desinteressante -, se se tornasse uma cena hipster. Espera, os hipsters já eram isto, não eram?
Acho mesmo que o drama pós Covid não vai ser a economia, quando muito, talvez os 95% que trabalham passem a ser 94% para continuarem a garantir a riqueza dos 5% mais ricos do país. O drama vai ser redefinir escalões sociais.
Quem vão ser os hipsters se toda a gente já sabe fazer pão? Quem vão ser os hippies se toda a gente se está a marimbar para a roupa por passar a ferro? (ok, se não estão deviam aproveitar) Quais serão os médicos que merecem receber 90€ por uma consulta, quando estão a fazer o mesmo trabalho dos que recebem um salário do SNS? E as escolas? Bem, aqui nem sei por onde começar.
E se de repente os operários, que a par dos médicos são os que mantêm o país a funcionar, determinarem o futuro da mundo ocidental? Eu sei, estou a delirar, mas apetecia-me tanto assistir a esta realidade! Não tem nada a ver com qualquer moral de justiça social, era mesmo por diversão. Afinal, já não vou para nova e não vejo telenovelas (ainda existem?), e os meus filhos até me parecem capazes de se desenrascarem numa fábrica, ou de conduzirem um camião durante 12 horas.

Dia #25

6.4.20
Um dia destes tenho de falar do antigo troço da linha de comboio, entre a Póvoa de Varzim e  Famalicão, que está a ser transformado em ciclovia e caminho pedestre. Também preciso de falar sobre a minha avó, que faz 92 anos, mas hoje só me ocorre confluir para esta ideia de que ''todo o ser humano é ridículo à sua maneira''*.


*do filme O Nosso Último Verão na Escócia

Dia #24

5.4.20

Recebi a minha prenda de aniversário mal acordei e comecei a logo a choramingar ao ler os papelinhos com as mensagens de toda a gente. Parecia que estavam todos ali comigo, apesar de ainda estar na cama. Obrigada a toda(o)s, não sabia, ou tinha esquecido, que pensam tantas coisas boas sobre mim.
Ver o entusiasmo dos miúdos, sobretudo do Nicolau, faz-me querer gostar de festejar o aniversário. Foi ele que fez o bolo, com a ajuda do Isaac, e o Jaime a jardineira do almoço. Escolheu este prato, porque cozinhou-o nas duas últimas gravidezes, para satisfazer os meus desejos (mesmo sem ser apreciador) e eu achei que foram as melhoras jardineiras que alguma vez comi na vida.
A de hoje também estava maravilhosa, mas como não estou grávida não posso dizer que é a melhor de sempre. O palato tem destas coisas. Quanto ao vinho, só posso dizer: UAU!
De resto foi um dia normal, com as coisas boas que já referi e outras menos boas, como na vida em geral. 
O que não deixa de ser curioso é este ser o terceiro ano consecutivo de aniversários estranhos. Aos 45, foi a primeira vez que não festejei com o Jaime, desde que estamos juntos, aos 46 não tinha a Bea comigo e aos 47 temos o Covid-19.
Melhores anos virão, certo?

Dia #23

4.4.20
Devo estar com síndrome véspera de aniversário, ou outra coisa qualquer, porque se tivesse passado o dia na cama estava muito bem, tirando as dores nos ossos. Uma pessoa sabe que está naquele limite de jovem adulto para adulto adulto quando o corpo pede para sair da cama, e a cabeça suplica para nos deixarmos estar.
Foi um dia a gerir (aka a deixar andar) frustrações alheias e próprias, aborrecimentos e dores de crescimento que nem a ida ao quiosque para comprar jornais amenizou.
Os meus filhos pareceram-me pessoas crescidas, no sentido de maduras, o que só pode querer dizer que estou a ficar louca. Se bem que isso implicaria dar razão ao Jaime e assumir que não é ele que está chato, que eu é que estou sem paciência. Portanto, estou muito sã.
E amanhã, pelos visto, temos uma festa!

Dia #22

3.4.20
Não sei bem o que fiz hoje, além de ter chegado a uma parte importante da camisola que estou a tricotar e de ter conseguido fazer pão pita para o falafel, também feito em casa, que tinha congelado há uns tempos.
Não sendo a pessoa mais organizada do mundo e que até nem aprecia rotinas por aí além, tenho o momento das refeições como uma espécie de guia. Tenho de fazer isto e isto até à hora do almoço e mais aquilo e aqueloutro até à hora de jantar. Mesmo em quarentena é o que funciona para mim. E estando mais tempo em casa, sem ter de ir buscar os miúdos à escola, é mais fácil fazer pão e pensar em receitas demoradas.
Também se dá o caso de gostar de comer e beber, claro, por isso é que estou a adorar seguir os menus do Zé e da Inês, no instagram. Como diário da quarentena, parece-me uma ideia assim espectacular!

Dia #21

2.4.20
Hoje foi dia de limpar a casa. Não preciso de dizer mais nada, pois não?
Sim, não arrastei a cama para aspirar, nem limpei o pó, ou lavei a parte de fora das sanitas (cujos autoclismos não funcionam), desde que começou a quarentena. E não tem nada a ver com a falta de tempo, pelos vistos. É a mesma falta de vontade de sempre.
As tarefas domésticas são divididas, obviamente, mas cada qual investe o seu tempo naquilo que acha necessário e fundamental para o bom ambiente familiar. Funciona? Sim, quase sempre.

Dia #20

1.4.20
O Nicolau perguntou-me se eu ainda era jornalista e eu disse que sim. Se ainda tenho a actividade aberta nas finanças, acho que posso dizer que sim, apesar de saber que não sou.
Procuro manter-me informada, como toda a gente, e continuo a confiar em alguns meios de comunicação, mas mesmo estes nunca me pareceram tão obsoletos como me parecem agora. Ou, talvez esteja a questionar tudo em demasia.
Fiz uma máscara facial com aloe vera, mel e açafrão e, quando saí para fazer a caminhada, apanhei flores num descampado. Também escrevi uma carta para a Bea.
Ia começar a fazer o jantar, arroz de marisco, mas acabou o gás. Enquanto espero pela botija, acho que vou beber um copo de vinho.

Cartas da Póvoa #3

1.4.20
Querida Bea,

Ao longo deste ano em que estiveste afastada de nós, pensei várias vezes escrever-te mais uma carta, mas depois nunca sabia o que queria, ou o que devia, dizer.
Agora sei. O que quero dizer, pelo menos. Convenhamos, um ano e um mês é tempo suficiente para pensar no que nos aconteceu.
Eu não sei, ainda, o que aconteceu, da última vez que abordamos o assunto pediste para falarmos noutra altura, nem sei se alguma vez vou saber. O que me fez escrever-te hoje, foi ter acordado a cantar Suede, ''The 2 Of Us''.
É estranho lembrar-me de ti sempre que ouço esta banda, porque nunca a ouvimos juntas e também por não ser uma daquelas pessoas que tem uma banda sonora para tudo. Bem, talvez tenha o David Bowie como banda sonora dos meus anos de liceu, mas não sei se era por precisar disso, ou se por saber que fazia parte.
Acho que foi numa viagem de carro que eu e o Jaime fizemos com os miúdos e ele pôs o ''Dog Man Star'', no leitor de CDs. Quando começou a ''Still Life'', desatei num pranto nunca visto. Eu só conseguia pensar em ti, e em como podia continuar a viver sem te ter na nossa vida, e o Brett Aderson a gritar ''But it's still, still life/But it's still, still life/But it's still, still life''. Enfim, o que vale é que os miúdos acharam que eu estava muito emocionada com a música e ainda hoje me gozam com isso.
Então, hoje acordei a cantar ''Lying in my bed./Watching my mistakes...'' e pensei se também estarias deitada na tua cama a pensar nos teus erros. Quer dizer, a cama onde estás deitada por estes dias é, muito provavelmente, um erro por si só, mas a vida é tua, as escolhas são tuas, como sempre te disse.
Não quero estar, nem tenho estado, a fazer juízos de valor sobre as tuas opções. Só queria fazer parte da tua vida, saber o que sentes, que planos tens para o futuro, sobretudo agora, quando o futuro parece cada vez mais distante.
Mas isso já sabes. O que quero dizer-te é que tenho muita pena que não nos queiras na tua vida, porque estás a perder a oportunidade de passar bons momentos com pessoas realmente espectaculares. Até podias não gostar muito de nós enquanto família, mas, caramba, o que nos divertimos juntos!!!
Agora, ainda antes do Covid-19, temos andado mais preocupados, mais ocupados e estamos mais cansados, mas ainda somos espectaculares. Podes ter a certeza.