Cartas de Díli #1

24.4.17
Querida Bea,

      Quando nos separámos pela primeira vez, e eu ainda não sabia que as separações seguintes seriam igualmente dolorosas, decidi que devia escrever-te cartas com uma certa regularidade. Cheguei até a pensar que o ideal, mesmo, era fazer dessas cartas uma crónica mensal num jornal, porque assim não só me obrigaria a escrever, como conseguiria ser uma cronista a sério. Só que, depois de sondar uma ou outra pessoa sobre essa possibilidade, acabei por desistir da ideia.
      Acontece que desta última vez que estivemos juntas voltei a sentir essa vontade, muito por causa da prenda de aniversário que a Inês me deu, sabes? Não me lembro se te cheguei a mostrar (já estás habituada a estes meus lapsos de memória). Então, ela trouxe-me do Brasil um conjunto de cartas escritas por 12 mulheres em diferentes partes do mundo. Chama-se "Queria Ter Ficado Mais Tempo" e é da editora Lote 42. Ainda só li quatro, as de Buenos Aires, Tóquio, Berlim e Istambul, gostei mais desta última. Não sei como serão as outras cartas mas por enquanto a ideia parece-me melhor do que o conteúdo.
      E já que comecei a falar em livros, deixa-me dizer-te que tens toda a razão em relação ao "Burma Chronicles", realmente eu e o Guy Delisle temos muitas coisas em comum neste livro, se calhar foi por isso mesmo que a Luísa o quis oferecer-me. Aquela cena de ele ter grandes ideias sobre lançar uma revolução prostrando-se todos os dias em frente à casa da Aung San Suu Kyi, ou dar arroz todas as manhãs aos monges, e no dia seguinte continuar a fazer as mesmas coisas de sempre; os encontros de pais para as crianças brincarem e a dele ser a única que não tem ama; toda a gente a achar que ele desenha cartoons como hobby; aquilo de estar sempre a pensar como é que as pessoas vão levar todas as tralhas quando regressarem; a noção do quanto se está desconectado da realidade quando a maior preocupação é não se encontrar água tónica da Schweppes em lado nenhum (definitivamente deve ser a preocupação mais comum a todos os expatriados por esse mundo não ocidental fora); a ida a Bangkok com a lista de compras; o deixar de lavar a loiça aos fins-de-semana porque tem empregada (por falar nisso, a Domingas já voltou e deve estar a odiar esta segunda-feira) e por aí fora.
      O livro é mesmo espectacular e mostra bem o universo dos expatriados em geral e dos que trabalham em ONG em particular.
      Enfim, acho que seria mais fácil aproveitar esta experiência se, tal como ele, tivesse uma profissão e não um hobby, mas a verdade é que quem mais desconsidera o meu trabalho sou eu. Nem mesmo o que faço na Timor Aid consigo valorizar. Eu contei-te que estava a colaborar com esta ONG local no catálogo de Tais de Baucau, não contei? É bastante interessante o trabalho que eles fazem, mas eu só tenho de editar os textos em português. O tema não podia ser melhor- tecidos tradicionais, teares e técnicas de tecelagem e tinturaria. Talvez um dia possa ir com eles num trabalho de campo e escrever sobre isso.
      Entretanto, temos a festa de aniversário do Nicolau (como odeio fazer festas de miúdos) e amanhã, se conseguirmos, vamos festejar o 25 de Abril em casa de uns amigos. Depois, fazes tu 16 anos e pela primeira vez na nossa vida não vamos estar juntas no dia do teu aniversário. Já decidi que vou fazer um bolo na mesma e vamos cantar-te os parabéns aqui. Isto se não piorar desta alergia que me atacou assim que cheguei a Díli. A culpa é do ar condicionado mas o jet lag não ajuda nada. Aliás, estamos todos mais para lá do que para cá (esta expressão é bastante intrigante, apercebo-me agora), mas também não me admira com a viagem que fizemos: Porto-Lisboa-Istambul-Hongkong-Bali-Díli.
      Apesar de me custar sair de Portugal apercebo-me que aos poucos vamo-nos instalando, isto é, fazendo de Timor uma segunda casa. Vamos fazer mais uma mudança e tudo. Já estamos aqui há pouco mais de um ano e meio, quer dizer, estava na altura, tendo em conta o corrupio dos últimos anos. Depois, não usei a ida a Portugal para aqueles detalhes mundanos como cortar o cabelo e ir à depilação, deixei isso para fazer no regresso e toda a gente sabe que este é o tipo de coisas que nos faz sentir em casa. Acho eu.
      Na verdade já não sei nada sobre o que significa estar em casa, sobretudo depois de ir ao Bolhão, logo a seguir à nossa despedida em Campanhã, e ver aquela banca da fruta, quem entra pela Sá da Bandeira, a vender mais lichias e fruta dragão do que maçãs e pêras.