Ventura

31.1.17

Um dia vou conhecer muitos países, uns mais superficialmente do que outros, e vou poder dizer com alguma segurança, acho eu, onde é que me senti mais feliz, ou infeliz.Vou perceber, rapidamente, que o sítio terá menos a ver com isso do que com o quê e quem levo comigo, mas vou encontrar, de certeza, países com qualquer coisa de primordial que nos faz sentir uma espécie de bem-aventurança.
O Sri Lanka é um desses países.

Sim, fui feliz no Sri Lanka, comecemos já com o chavão. Fui feliz pela razão óbvia: o reencontro com a Bea passados três meses e meio. Fiz um grande esforço para não desabar num pranto de lágrimas assim que a vi sair da porta do aeroporto. Escusado será dizer que o pranto começou muito antes disso, porque se há coisa em que sou boa é a antecipar momentos, mas estávamos num aeroporto, no terminal das chegadas, há lá sítio mais emocionante?
Ela chegou. Eu chorei. O Jaime choramingou. Os irmãos agarraram-se a ela como lapas e foram assim até ao táxi do Sr. Siri.

O Sr. Siri (o som do nome era este, apesar de não existir nenhum parecido numa lista da internet com os 100 nomes mais comuns no Sri Lanka), tinha ido buscar-nos ao hotel nessa manhã. Nós chegámos um dia antes da Bea e por isso ficámos a saber que para entrar no aeroporto é preciso pagar. Estava explicada a quantidade de pessoas na rua à espera de quem chega. Nunca tinha ido buscar uma pessoa ao aeroporto num país onde não vivo. É estranho, porque dá-nos a paradoxal sensação de sermos dali.
Ele, o Sr. Siri, tinha comprado bananas e disse que podíamos comê-las. Os meus filhos que já vão percebendo inglês agarraram-se ao cacho e começaram a devorá-las. Eu fiquei meio sem jeito com aquele comportamento esfomeado mas cruzámo-nos com o amigo sapateiro do nosso taxista, que nos acenou da bicicleta, e as bananas deixaram de ser assunto.
Combinámos que seria ele a levar-nos a Colombo e no dia seguinte telefonámos-lhe para nos levar também a Sigiriya. Fica-se quase amigo dos taxistas, dos condutores de tuk tuk, do pescador das lagostas, do cozinheiro que as preparou para nós, porque há como que uma familiaridade boa entre todos. Por exemplo, sei quantos filhos têm os cingaleses com com quem troquei mais de meia dúzia de palavras. O Sr. Siri tem quatro, três raparigas e um rapaz.

Também fui feliz no Sri Lanka porque sou sempre feliz no meio da Natureza. Deve ser uma coisa que me ficou dos tempos em que levava vacas ao posto e apanhava pinhas na bouça. E no que diz respeito à Natureza no antigo Ceilão não há como não ficar impressionada. Eu vivo numa ilha tropical, estou habituada à abundância de plantas e animais, mas como aquilo nunca tinha visto. São mais de 100 as áreas protegidas deste país e não por acaso, de certeza, a primeira reserva do Mundo foi criada aqui, no século III. Portanto, acho que só por aqui dá para se perceber a minha impressionabilidade. Depois, uma pessoa vai na estrada, ali na zona entre Dambulla e Polonnaruwa, por exemplo, e vê passar os elefantes lá ao fundo, ou abranda para para mirar um par de lagartos gigantes, Water Monitors, na berma, ou fica de boca aberta a olhar para os pássaros nas árvores, enquanto os ovos do pequeno-almoço arrefecem, ou aborrece-se com os macacos que aparecem em todo o lado.
E quando se dá o caso dessa pessoa se encontrar no meio de uma manada de elefantes, no momento em que todos os jipes do safari desligam o motor, acontece magia. Eu até gostava de explicar mas, já se sabe, a magia não se explica.

E há a viagem de comboio mais bonita do mundo. Deve ser um exagero, claro. Mas não parece. Além da viagem em si, porque para andar de comboio nem sequer é preciso um destino, como diz Paul Theroux, há o valor acrescentado da paisagem em looping (a linha faz mesmo um loop depois da estação de Demodara), da ponte com os nove arcos e dos sorrisos deles, dos meus filhos, com as cabeças de fora da janela. Não sei se podia ser noutro comboio qualquer, aquela felicidade, que não naquele a caminho de Badulla.

Ainda por cima, come-se bem no Sri Lanka, por isso as pessoas que são felizes a comer, como eu, são felizes no Sri lanka. O rice and curry é uma mistura de sabores perfeita. A parata com um café cingalês, no cume fresco de Haputale, é um milagre - transformar água e farinha num pão daqueles é como transformar água em vinho.
E depois, a cereja em cima do bolo, ao contrário da maior parte dos países asiáticos há um número bastante considerável de wine shops. Sim, é preciso descer a caves, em muitos casos, e é tudo feito com muito secretismo. Mas, quer dizer, quem é que não gosta de esperar pelo seu gangster, no meio dos caixotes de lixo, rodeada de corvos?

Já está

10.1.17

Ficar muito tempo sem escrever num diário levanta um grande problema: Deve uma pessoa seguir escrevendo, como se não tivesse havido um hiato de tempo? Na verdade, ainda não passou um mês, e não há assim tanta coisa a acontecer num mês, certo? Errado.
A vida numa ilha tropical do sudeste asiático pode ser muito aborrecida, não sei se é por isso que os expatriados bebem tanto, mas ao mesmo tempo parece que está tudo a acontecer. Como se os fragmentos dos dias formassem um todo mais claro. O que até faz sentido, porque os dias passam mais lentos e nesse abrandamento é mais fácil ver a paisagem à volta.
E vejo uma filha quase adulta e um quase recém bebé que vai este ano para a escola primária, que é aquele patamar em que os pais dão por terminada a primeira infância.
Acho que é por isso que este blog deixou de ser o diário desesperado de uma doméstica (sim, é mais giro stay-at-home-mom, mas o glamour nunca foi o meu forte e eu até acho que tentei algumas vezes).
Por isso e porque agora não tenho de limpar a casa, lavar a roupa e secá-la em cima dos aquecedores, limpar a areia dos gatos e levar os miúdos a um jardim para correrem em liberdade. Bem, esta última parte até podia ser uma coisa gira, só que nem por isso. Para mim era uma canseira. Até tinha pesadelos com o mais pequeno a cair daquela girafa do jardim da Estrela.
E até me podem vir dizer que o pior está para vir. Que quando são pequeninos é que é bom. Sim, é bom, de uma forma peculiar, mas também é tremendamente exigente. O que faz com que acredite, talvez erradamente, que a parte difícil está feita. Ou isso, ou comecei a viver naquelas bolhas em que se põe lá dentro o que nos interessa.
É que a bem dizer eu nunca me preocupei tão pouco com a educação deles como no último ano (e até tenho um filho sem vontade nenhuma de aprender o currículo escolar), mas a sensação que tenho é que tudo está a correr bastante bem (sim, eu acabei de escrever isto).
Pois, mas isto não aconteceu durante o mês em que não escrevi aqui, poderão dizer-me. Pois claro que não, isso tem vindo a acontecer.
O que aconteceu no último mês foram as mesmas coisas de sempre. Hoje, por exemplo, acordei tarde, fui mordida por formigas assassinas, porque não reparei que a toalha do banho estava cheia delas outra vez, e depois comi uma panqueca feita no micro-ondas, porque o gás acabou precisamente quando ia começar a fazê-la no fogão.
Mas também aconteceu uma viagem com um reencontro ansioso e uma despedida dramática. Com momentos de contemplação que só as viagens proporcionam e com a sensação (um pouco intensificada pelo fim da leitura do livro "O Grande Bazar Ferroviário", no fim da viagem) de que esta parte da vida já está. Passemos à seguinte.