Mãe

19.3.18
A minha avó, que continua agarrada à vida com unhas e dentes, ainda que as unhas estejam nuns dedos com osteoartrite e os dentes numa prótese acrílica, chama pela mãe quando delira.
É quase sempre antes do sol nascer, esse momento da madrugada que nos põe entre mundos, que se ouve a minha avó: Ó mãe, ó mãe, mãeeee.
Cresce uma aflição ouvi-la e depois a ver a filha, a minha mãe, a responder-lhe ao chamamento.
É dia do pai, eu sei, mas a minha vida tem sido feita de mães. 

Cartas da Póvoa #1

5.3.18
Jaime,

Comecei por escrever "Querido Jaime" mas depois soou-me estranho. Serei assim tão pouco afectuosa, ao ponto de não me lembrar de te chamar querido, alguma vez? Bom, talvez seja melhor não responderes a esta pergunta.
Quando comecei esta coisa das cartas para encurtar a distância entre mim e a Bea estava longe de imaginar que estava a pouco tempo de ficar mais próxima dela e mais distante de ti. 
Mas eis-nos aqui às voltas com mais um Cisne Negro. Confesso que depois do impacto deste acontecimento imprevisível, estou ansiosa pela "explicação que o faz parecer menos aleatório e mais previsível do que aquilo que é na realidade". Já vais avançado na leitura do livro, ou nem por isso?
É das poucas coisas que gosto em mim, a de continuar a acreditar piamente que os livros têm todas as respostas. 
Faz hoje precisamente duas semanas que saíste daqui e ainda não conseguimos descobrir a hora certa para nos encontramos na pontas dos dedos. E isto quase que podia ser sensual se não metesse telemóveis e conversas desencontradas mas, bom, ele há gostos para tudo...
Parece que estás longe há imenso tempo e, no entanto, ainda não passou tempo suficiente para me sentir familiarizada com a tua ausência.
O que mais me custa é não saber o que estás a pensar, a sentir, o que te faz rir, o que te exaspera, o que te enternece. Ou seja, o que me custa na tua ausência é a falta da tua presença. Não gozes, a gramática nem sempre está preparada para o que queremos dizer.
Às vezes, muitas vezes, consigo estar um bocadinho contigo nas coisas que me escreves mas tens escrito pouco, contado pouco.
No outro dia, depois do Correntes d' Escrita, dei por mim a pensar no monte de banalidades que teria partilhado contigo. Sabias que o João Tordo é gago? E o Valério Romão, sabes, que escreve sobre família é um gajo, pareceu-me, que apreciaria jantar cá em casa. Não mais do que nós apreciaríamos jantar com ele, obviamente. A Isabela é diferente do que imaginava e o texto que o Sandro William Junqueira leu surpreendeu-me.
Sobre o evento só te disse que tinha gostado muito e não me demorei no assunto, mas se estivesses aqui provavelmente tinha inventado uma relação entre os cactos da Isabela, o escaravelho do Valério, as mulheres do Mû Mbana e o Mar da Ana Margarida de Carvalho. Contei-te que a audiência do Cine-Teatro Garret começou a cantar espontaneamente "O mar enrola na areia"? Os poveiros se não existissem tinham de ser inventados (e nunca esta expressão fez tanto sentido)!
Os miúdos estão bem, parece-me que cisnes negros são uma coisa muito mais natural para eles. Eu é que continuo às voltas com as escolhas e as decisões que tomamos a pensar neles, mas o Nicolau tem dado umas pistas com aquela do "nós só queremos ter uma mãe feliz!" e  a outra, "o problema é nós não sabermos que coisas te vão chatear".
Na semana passada fiz uma massa de frango que terias apreciado, apesar de ser uma especialidade tua. Hoje vou cozinhar amêijoas, mas daquelas congeladas que já vêm sem casca. Deve resultar bem num arroz malandro.