Culpa

22.11.18
Estávamos a ouvir a Fiona Apple (sim, metemos nojo, a nossa vida é beber vinho, passear e ouvir música enquanto trabalhamos) e ele diz qualquer coisa sobre ser uma pena que uma moça com tanto talento como a Fiona editar tão pouco. Eu returco que provavelmente tem filhos.
Fez-se aquele silêncio de assunto-quase-complicado e rapidamente mudámos de tema.
Ainda há pouco fui obrigada a admitir, numa conversa de café, que ainda não vivo bem com a escolha de ter ficado com os filhos em casa.
Tenho a certeza que não podia ter feito de outra forma, mas parece que ainda falta saber viver bem com isso. Seja como for, este blog tem centenas de posts sobre este amor condimentado de contradições que nos fazem querer ficar e fugir ao mesmo tempo, não vale a pena voltar ao mesmo.
A minha filha diz que a culpa é de eu ter crescido com uma mãe niilista depressiva (acho melhor não querer saber qual a razão dos problemas dela), eu acho que a culpa é minha, obviamente. Mas isso, segundo um livro de auto-ajuda que li há muito tempo, tem a ver com o facto de eu ser primogénita num seio familiar que aniquilou a minha auto-estima (a sério, não queiram saber).
A culpa é um sentimento muito curioso, por acaso, não nos limita como o medo mas suga-nos a essência.
O que vale é que não me têm faltado ocasiões para decantar e repor o essencial.

Momentos avassaladores

13.11.18

O sofá tem pouco mais de seis de meses e está cheio de manchas, por baixo dele há sempre uma colecção de bolas, carros, restos de bolachas, desenhos e objectos não identificados, o pó resiste, camada a camada, às correntes de ar provocadas pelas corridas deles pela casa, possivelmente haverá vomitados secos da gata em sítios pouco acessíveis à vista, a roupa anda a passear, dentro de sacos, entre casa e a lavandaria e o forno, enfim, precisa muito de umas valentes esfregadelas, mas eu estou aqui a sentir-me a Leeloo, ainda sob o efeito do fim-de-semana.
Eu sei que estou perante uma coisa avassaladora de bonita quando me apetece chorar e, como é fácil de perceber, é raro acontecer. Mas no domingo tive não um, mas dois desses raros momentos. O primeiro a caminho do Alentejo, sob um céu carregado de nuvens que começam a dissipar-se, deixando um pequeno túnel de luz no fim da estrada vazia de carros, no exacto momento em que começa a ouvir-se Rufus Wainwright na rádio (obrigada Inês Meneses). A sério, não consegui conter-me, coisa que, felizmente, consegui mais tarde a provar o primeiro vinho do XXVI Talhas, e a ouvir o produtor falar da adega do avô. Ok, já tinha provado alguns vinhos (sem usar a cuspideira que, aliás, tinha aprendido a usar no dia anterior, no Palácio da Bolsa), quase todos muito, muito bons, mas aquele momento, lá está, foi avassalador.
Há outras formas de resistência, esta é a que eu escolho. Procurar viver momentos assim.

Só vemos o que queremos ver

6.11.18

Estava no café da Ponte, com vista para o rio Gerês, e na mesa à minha frente estava um casal a tomar o pequeno-almoço. Deviam ter uns 60 anos e não falaram um com o outro enquanto lá estive. Dei mais atenção à mulher, porque tudo nela dizia que estava no sítio certo à hora certa, a comer uma torrada com meia de leite. Até quando pegou no telemóvel para fazer um scroll rápido foi exacta. Tudo batia certo, talvez por isso me tenha parecido bonita.
No dia seguinte, quase no fim da minha caminhada, uma mulher começa a dirigir-se na minha direcção e eu vou-me afastando para lhe dar espaço e ela a desviar-se cada vez mais até ficar de frente para mim:
- Desculpe - Olhei para ela e reparei que tinha um sorriso bonito, apesar do diastema, ou talvez por isso mesmo.
- Sabe dizer-me se há algum cabeleireiro aberto, hoje? - Obviamente olhei para o cabelo curto, maravilhosamente penteado apesar do vento e sem vestígios de raízes brancas.
- Hmmm, não faço ideia, mas na Póvoa a uma segunda-feira acho muito difícil - respondi sem conseguir disfarçar a surpresa, acho eu. Ela agradeceu e continuou a andar.
Segui caminho a pensar que esta mulher tinha alguma coisa em comum com a do dia anterior. Apesar de serem completamente diferentes fisicamente tinham, lá está, a mesma exactidão.
Provavelmente a do café era só uma senhora segura de si, que obrigou o marido a sair para tomar o pequeno-almoço, e a segunda uma cabeleireira a tentar perceber se valia a pena montar um negócio na Póvoa para abrir só às segunda-feiras, mas eu vi outra coisa qualquer. Fazemos sempre isso, só vemos o que queremos ver.