Espreitar

27.4.19

Depois do almoço de Páscoa, aqui em casa, a minha avó começou a insistir que queria ir embora. A certa altura começou a chorar que tinha mesmo de ir e insistia com a minha mãe que tinha de a levar ao aeroporto. Ninguém parecia muito surpreendido com esta necessidade, porque parece que é comum ela inventar destinos urgentes, mas eu quis saber por que raio queria ela ir para o aeroporto, quando nunca na vida viajou de avião e duvido mesmo que alguma vez lhe tenha apetecido.
Depois de lhe perguntar várias vezes e de ter acertado nos decibéis, fiquei a saber que estava na hora de ela ir para céu e que para isso tinha de apanhar um avião. Ou seja, a minha avó quer, naturalmente, acautelar o seu lugar no céu quando morrer e acha que se não for ela a tratar disso ninguém o fará por ela.
Gostava de saber mais sobre os mistérios que esta mulher encerra, que mentiras contou a si própria para sobreviver - porque, não nos iludamos, a única forma de sobrevivermos, ou a mais fácil, é mentirmo-nos todos os dias -, quem amou mais do que à própria vida, se é que amou alguém assim, do que mais se arrepende. Se lhe perguntasse assim tal e qual responder-me-ia com mentiras, muito provavelmente, pensado que contava a verdade.
Acho que é por isso que contamos histórias e tentamos representar o sentir humano nas mais diversas manifestações artísticas: Para espreitar o que nos escondemos.

Saber o que somos

16.4.19

Numa pequena road trip que fizemos na semana passada pude constatar aquilo que já sabia: são as pessoas que fazem os sítios. Pode parecer cruel dizer isto quando vimos, ontem, a Notre-Dame a desmoronar no meio de chamas, mas sem pessoas não teríamos a catedral e o nosso choque, na verdade, foi ver mais de 800 anos da história da humanidade a ser destruída à vista de todos.
Os monumentos são obras assombrosas e eu, como toda a gente, não fico indiferente quando os visito. Em muitos deles, Notre-Dame incluída, fico emocionada. Mas é quando estou numa pequena povoação de Bobonaro, sentada no chão a ouvir o Liurai falar sobre tais, ou em Pitões das Júnias, no café, a ouvir a mulher falar sobre as vacas que não vai levar a pastar, não sei se por causa da neve, porque tem muito feno para lhes dar, que as viagens se enchem de significado para mim.
E não, não vou à procura de pessoas quando ando na estrada. Prefiro estar sozinha, mas gosto muito de observar os outros e, se se proporcionar, conversar com eles.
Também pude constatar que continua a custar-me fazer xixi atrás das moitas, mas em caso de necessidade extrema faz-se o que tem de ser feito.
Não é sempre linear o caminho para nos conhecermos melhor, mas quando se começa não há como voltar atrás.
Li recentemente uma entrevista a Steve Paxton, 80 anos, em que lhe era pedido que revelasse uma ou duas coisas entre as mais importantes que aprendeu nos últimos 60 anos. Ele disse que uma das coisas foi que ''na vida trata-se de não nos sentirmos derrotados quando perdemos''. E de chegar ao fim e conhecermo-nos, de sabermos o que somos, o que queremos. ''Acho que isso é possível'', dizia ele, e explicou que conseguiu fazê-lo com disciplina (artes marciais), através da arte (dança) e da técnica (meditação).

46

5.4.19
Apesar de este blog ter tido diferentes abordagens ao longo do tempo, que foram acompanhado, umas vezes melhor, outras pior, as diferentes fases da nossa vida, gosto de acreditar que fui sempre honesta, fiel aos meus sentimentos.
Normalmente, nas redes sociais, mostra-se o lado bom da vida e ainda bem, suponho. Mas quanto fica de fora? É que olhar para a nossa vida, para as nossas escolhas, para tudo o que fizemos e o que nos aconteceu em retrospectiva é uma coisa. Nesse caso, é natural que nos lembremos das coisas maravilhosas que vivemos.
Bem, a acreditar na teoria de Reviver o Passado em Montauk, no fim da vida há duas coisas que importam: As coisas que lamentamos ter feito e não podemos desfazer e as coisas que não fizemos e devíamos ter feito, e que também lamentamos. E essas duas coisas são tudo o que importa.
Seja como for, um blog funciona (ou funcionava) como um diário e na vida de todos os dias acontece de tudo.
Hoje faço 46 anos e não me apetece festejar. Não é novidade, raramente me apetece, mas este ano é particularmente triste.
A minha filha foi-se embora sem dizer adeus.
Não sei o que escolheu contar a si própria para justificar acordar todos os dias sabendo que não vai falar comigo. Eu acordo todos os dias a tentar não desaparecer dentro do buraco negro que se abriu no meu peito. Não se vê, claro, mas é absolutamente real. Tão real que tenho medo de ver engolidos todos os que me rodeiam.
Não vou entrar em detalhes, como será fácil compreender, há privacidades que devem ser respeitadas. Não é à toa que se fala tão pouco de filhos adolescentes.
A Bea, que sempre fez parte deste blog, tem 18 anos (faltam 21 dias). Tem idade para decidir o que quer fazer e viver com essa escolha. Eu não concordar com essa decisão faz parte.
O que eu não esperava era tanta ingratidão (nem acredito que estou a dizer a coisa que sempre mais odiei ouvir da minha mãe) e indiferença.
A minha menina, que nunca foi minha mas que faz parte de mim, não está comigo.
Podia só não estar a viver comigo, isso seria normal e até expectável, mas a minha filha, a minha menina, escolheu não estar comigo, connosco.
Nem sempre as coisas correm bem, por mais que façamos aquilo que achamos que está certo. E se calhar valia a pena falarmos mais sobre isso.
Daqui a uns tempos vou olhar para isto como uma fase terrível, necessária e passageira (dando mais ênfase a um ou outro adjectivo, conforme o que tiver acontecido até lá), mas agora é uma espiral de sofrimento como nunca tinha experimentado.