Doía-me a cabeça e estava com algum sono, por isso tive de fazer um certo esforço para chegar ao fim do filme, mas fui deitar-me a pensar que devia adormecer a imaginar o meu futuro, como a Alma estava a fazer na última cena e como eu fazia em criança todas as noites.
Eu tinha uma vida paralela, ou vidas paralelas, quando ia dormir (isto depois da fase dos pesadelos e dos medos), mas ontem, quando me deitei e tentei imaginar o meu futuro, fiquei desconcertada. Eu já estava no meu futuro imaginado (parece que isto está sempre a acontecer-me, achar que estou no futuro) e não consegui ver para lá de onde estou agora. E eu até tentei imaginar a sensação de terminar o livro, de fazer trabalhos interessantes e estar em viagem, mas nada.
Isto só pode querer dizer uma de três coisas, ou a três juntas: 1) em criança não fui capaz de me imaginar muito além dos 40 anos, 2) a minha capacidade de imaginar diminuiu drasticamente com a idade, 3) preciso muito menos de fugir da minha realidade.
Em qualquer um dos dois últimos casos parece-me preocupante. Perder a capacidade de imaginar e/ou estar acomodado é uma forma de estar na vida um bocado triste. Mas já é tão violento existir - há crianças a serem violadas em campos de refugiados, ditadores a subir ao poder, andamos a comer plástico, os nossos filhos têm de mostrar conhecimentos na escola, em vez de os aprender, há mais de dois milhões de portugueses na pobreza, e desses quase 11 por cento trabalham, as alterações do clima são cada vez mais evidentes, a minha avó está muito velhinha-, como dizia, já é tão violento existir que é normal procurar algum conforto na sobrevivência.
Seja como for, consegui dormir relativamente bem. Não termos tido nenhum dos rapazes na nossa cama até de madrugada ajudou.
Infantil
17.10.18
Tinha deixado os miúdos na escola, acabado de tomar café e ia a pé para casa. Caminhava ligeira, a sentir as calças apertadas, o sutiã folgado e tremia ligeiramente, porque estava com frio. Vi que estava uma folha cor-de-rosa no chão e pensei: "é uma folha cor-de-rosa, que bonito, devia apanhá-la!" e continuei a andar. Estavam outras folhas no chão, como seria de esperar do Outono, e eu a andar e a pensar que se calhar devia voltar para trás para apanhar a folha, que não devia deixar de o fazer só porque é ridículo voltar para trás só para apanhar uma folha e continuava a andar e a pensar: "quanto mais andar mais longe fico e mais tempo demoro a voltar para trás, ou me viro agora ou deixo ficar a folha".
Dei meia volta, andei, andei e pensei: "queres ver que agora não encontro a merda da folha?" Encontrei, claro.
E sim, podia ter sido um momento de catarse, comigo a resgatar todas as oportunidades que me escaparam, porque não parei, ou não voltei atrás quando deveria. Mas foi só um momento infantil.
E a folha só é cor-de-rosa de um lado.
De volta ao básico
15.10.18
Tenho umas certas saudades da vontade de vir contar coisas da minha vida. Não sei se esta falta de vontade tem a ver com os mergulhos que fui dando nesta onda new age do auto-conhecimento, ou se estou só deprimida. Em qualquer dos casos, talvez não seja errado concluir que o auto-conhecimento tem efeitos secundários negativos.
Se não, nem imaginam o relato que teriam da minha estadia num daqueles hotéis absolutamente cinematográficos, únicos e quase decadentes como são os hotéis das termas. Ainda há hotéis de três estrelas sem uma única peça do Ikea, faziam ideia? e salinhas espalhadas pelos diferentes andares com livros e revistas e outras com mesas de jogos. Sempre adorei mesas de jogos, por serem tão absolutamente inúteis quanto são apreciadas.
Saí de lá a pensar que tinha de enviar uma mensagem a uma amiga que trabalha na Vogue Portugal a dizer que tinham mesmo de fazer um Editorial nas termas. Eu sei que já se anda a tentar, há uns anos, modernizar o conceito chamando-lhes spa e acrescentado nomes chiques aos tratamentos, mas o regresso dos momentos áureos das termas é agora. Parece-me.
Também escreveria sobre Fica no Singelo, a maravilha que é ver corpos a interpretar daquela forma, a mostrar que na essência da dança, seja ela de que tipo for, está sempre a mesma força vital, uma espécie de energia primordial.
E não deixa de ser curioso estar a ver bailarinos a explorar os universos da dança e da música tradicionais portuguesas, uma semana depois de uma breve incursão pelas paisagens das curas termais. É como se me estivessem a gritar aos ouvidos back to basics (estava a ver se encontrava uma expressão em português assim sonante, uma expressão à Mário de Carvalho, mas não me ocorre), só é pena haver tanto ruído à volta.
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