Continuar a cantar

13.12.16
A Patti Smith esqueceu-se de uma parte da letra da canção "Hard Rain's A-Gonna Fall", de Bob Dylan, durante a actuação na entrega do Nobel. Ela disse que estava muito nervosa, os meios de comunicação social disseram que estava emocionada, mas nada disso interessa. Interessa o poema, a interpretação, com a falha incluída, ou talvez nem isso.
A mim interessa-me o que lhe terá passado pela cabeça, naqueles milésimos de segundo em que percebeu que não se lembrava do que vinha a seguir. Aquele momento transformado em buraco negro.
É mais ou menos isso, esses buracos negros, que passamos toda a nossa vida a evitar. Os momentos "e agora?"
E é por isso que nem nos passa pela cabeça não ter um emprego, não ter a roupa pendurada no roupeiro, não beber café, não mandar os filhos para escola, mandar os filhos para longe, ou viver sem "a triste comédia de uma reunião de amigos", como tão bem diz Theroux n' "O Grande Bazar Ferroviário".
Mas, pelo que vimos, não é assim tão mau. Atravessa-se o buraco negro, pede-se desculpa e continua-se a cantar.

Querida Mónica

30.11.16
Fotografia possível, com os músicos do projecto Sal de Terra. Não se vê do lado direito o músico português, Paulo Pereira.

Pedi ao Tó Zé para te retribuir o beijinho (posso tratar-te por tu, não posso?) mas depois achei que tinha de vir aqui agradecer-te publicamente.
É que isto de estar a almoçar no Hotel Timor e ser abordada pela Sara para me apresentar um dos músicos do projecto Sal de Terra, que me quer conhecer, porque a mulher dele é fã do meu blog, é uma cena espectacular. A sério, não estou a exagerar. 
Eu estou a almoçar em Díli, num hotel requintado e que não perdeu completamente (nem sei se pretende) o ambiente colonialista. Estou com os meus dois filhos e o Jaime. Estamos com pressa, porque acabamos de chegar de Balibó e o mais novo insiste que quer ir à escola. Como sempre não reparei quem estava no restaurante, não só porque não me interessa, mas também porque vejo mal ao longe e parece-se escusado estar a percorrer a sala com os olhos semicerrados. 
Chegou a minha massada de peixe cheia de coentros (que sabiam a coentros) e o tornedó do Jaime. 
Pouco depois aproxima-se a Sara com o Tó Zé e faz as apresentações e eu, além de incrédula, estava com um carrapito ridículo. Foi tudo tão isto está mesmo a acontecer? que até demorei a perceber que o Isaac estava pendurado em cima do teu marido, como se o conhecesse há anos (ias adorar esta cena, Bea!)
Na verdade, ele é mesmo muito simpático e de fácil conversa mas eu, ao contrário do Isaac, que parecia achar tudo muito natural, não conseguia sair da minha incredulidade. 
Além disso, a espectacularidade deste episódio levou-me ao concerto que os Sal de Terra deram na UNTL (Universidade Nacional de Timor-Leste), nessa tarde, e foi mesmo, mesmo muito bom. 
Obrigada. 
Ah, e agora o Isaac quer toca viola campaniça. 

Carta aberta à Comissão de Festas de Vila Verde

16.11.16
Caros Senhores Responsáveis pela Organização de Todos os Aspectos Relacionados com a Concretização do Presépio do Bairro de Vila Verde,

Eu sei que sou só a malae que vive mesmo, mesmo ao lado do presépio deste bairro e que não percebe nada dos vossos costumes, o que aliás se nota por não ter mencionado todos os nomes das pessoas envolvidas neste processo, no início desta carta, e por isso peço desde já as minhas desculpas, mas no segundo ano consecutivo do advento sinto-me no direito de perguntar se vou ter de levar com a música nestes decibéis até ao final do ano. É que, vejam bem,  estamos a meio de Novembro e viver dentro de uma discoteca durante um mês e meio é, no mínimo, surreal.
Reparem, eu acho bastante libertador expressarmo-nos musicalmente e não ter limites para isso. Acho, inclusive, piada ao karaoke que acontece frequentemente na minha rua, até às duas, quatro, seis da manhã, em qualquer dia semana (desde que não seja todas as semanas). Acho também piada às cantigas que se cantam em grupo ao lado da janela do meu quarto. Algumas são mesmo bonitas e bem cantadas. E até tolero os gritos, porque aprecio mesmo essa característica histriónica dos timorenses (menos quando se põe às voltas de minha casa com os tubos de escape das motas rotos). Mas, quer dizer, para tudo há um limite, digo eu.
Portanto, o que eu gostaria de pedir a V. Excelências, e tendo em conta que não vou dormir até 2017, ao contrário dos restantes vizinhos, acostumados a tudo isto, é se pelo menos posso sugerir músicas. É que uma coisa é não aguentar o ruído, outra coisa é sofrer com má música.

Agradecendo a atenção dispensada, subscrevo-me

Atenciosamente
Carla Fonseca

P.S Mal terminei este texto, às 22h36, a música baixou radicalmente de volume. Se for assim todos os dias da semana ignorem esta carta.

A árvore da montanha

8.11.16

Vulcão Batok, o que fica mesmo ao lado do Bromo, dentro da grande cratera Tengger

Estivemos dez dias a passear por Java e no fim pensei: Vou escrever uma crónica de viagem. Eu podia ter pensado: Acho que me apetece escrever sobre Java, e depois abria o computador e escrevia. Mas não, pensei "crónica de viagem" e logo ali fiquei sem saber o que dizer.
Por acaso não é bem assim, porque eu até sei o que queria dizer. Eu queria dizer que há muitas cebolas à volta do Bromo. Só isso. Dizia: Fui a Java e vi muitas cebolas, campos e campos de cebolas, nas redondezas de um vulcão que deita fumo. E pronto.

É claro que isto assim não seria uma crónica de viagem. As crónicas de viagem são como a canção da Árvore da Montanha que tem um lindo tronco, e esse tronco lindos ramos, e esses ramos lindas folhas, e essas folhas lindos ninhos, e esse ninhos lindos ovos, e esses ovos lindos pássaros.
E a minha crónica podia ter a decoração, com videiras de plástico e guarda-chuvas pendurados, da estação de autocarros de Kota, em Jacarta. E a seguir encadear o Tamansari (Palácio da Água) do arquitecto português que o Sultão de Yogyakarta mandou matar, no século XVIII, para manter secretos os compartimentos de prazer e, depois, discorria sobre os templos de Borobudur e Prambanan e até, quem sabe, sobre o parque infantil de Malang, provavelmente a cidade mais europeia da Indonésia. 

Ou, melhor ainda, fazia o roteiro gastronómico da coisa. Começava pelo início, isto é, por Jacarta e apresentava o Café Batavia. Seria simples, muito antes do frango com molho de limão e do mix de dimsum já estávamos rendidos ao espaço e toda a gente sabe como é simpático comer num sítio bonito. Na segunda paragem, em Yogyakarta, teria de falar da tartin de anchovas, do carpacio de vitela e do kebab de frango do Mediterraneo e depois, em Malang, e por muito que o Inggil me tenha surpreendido, aquele chef special do Melati, era de agradecer a todos os deuses hindus, a Alá, a Deus nosso senhor e por aí fora. Sim, gostamos de comer bem, sempre que possível, da mesma forma que podemos passar oito horas metidos num comboio a comer bakso duvidosos e mi gorens na beira da estrada. Não somos esquisitos.

Também podia (e já vou não sei em quantas crónicas diferentes) falar de coincidências, que é um dos meus temas preferidos.
Em Jacarta, o ponto de partida para conhecer Java, tivemos pouco tempo e o único museu que conseguimos visitar foi o de marionetas Wayang, que parece que tem uma das melhores colecções deste tipo de marionetas.
Apesar de todas as legendas estarem em indonésio foi interessante ver os incríveis detalhes de algumas delas e, além disso, os rapazes divertiram-se bastante. 
No dia seguinte, durante a longa viagem de comboio até Yogyakarta, estava a terminar o livro do Pedro Rosa Mendes, Peregrinação de Emmanuel de Jhesus, e leio uma passagem em que um bispo decide contar a guerra de Bratayuda usando marionetas Wayang. Os personagens são Sanja e Karna. Karna é meio-irmão de Arjuna e luta pelo reino de Kurawa. Sanja pelo Pandawas. Ambos morrem nesta guerra, mas isso não interessa nada, na verdade.
Eu não estava à espera de encontrar uma referência às marionetas Wayang neste livro, apesar da variedade de temas que o autor vai aflorando, desde a arquitectura timorense até à pencak silat, uma arte marcial. E nem fazia ideia que a pequena marioneta em miniatura que trouxe da loja do museu era Abimanyu, o filho de Arjuna. Pois.

Continuando, o que eu queria dizer, se ainda se lembram, era que fui a Java e vi muitas cebolas, campos e campos de cebolas, na redondezas de um vulcão que deita fumo. 
É muito impressionante o Bromo. E tem qualquer coisa de mágico, só pode, porque o meu filho mais novo nunca consegue andar com dores nos pés, e ali trepou pelo vulcão acima como se nada fosse, enquanto eu mal conseguia respirar. Ainda por cima morri de medo. Juro. A cratera tem uma vedação, mas uma pessoa que escorregue (e é muito fácil escorregar naquele piso) passa perfeitamente pelo meio, directamente para dentro do vulcão. E eu acabo de escalar as últimas escadas e que vejo? O Nicolau ali debruçado. Eu senti o coração parar. Por breves e instantes segundos, tenho a certeza, morri de medo.
É muito impressionante, mas eu estava a falar das cebolas, não era?

Portanto, já tínhamos descido os 253 degraus, mais uns poucos de metros da encosta do vulcão, mais os dois quilómetros de caminhada pelo "mar de areia", já tínhamos visto um mini tornado na cratera (o Bromo é um dos três vulcões que existem na grande cratera Tengger), e seguíamos no jipe que nos ia levar ao carro que nos ia levar a Banywangi, e eu via campos de cebolas. Via campos de cebolas e pensava nas mãos das pessoas que as plantaram. Eram mãos como as minhas, mãos que cozem arroz, que dão colo, que seguram nos filhos, que teclam nos telemóveis (64 milhões de indonésios usam o facebook), que lavam a loiça e ensaboam cabeças. E o mais fascinante nisto de viajar é isso mesmo, é perceber, como diz Pat Walsh, citando o Dictionary of Obscure Sorrows de John Koening , "que cada pessoa com quem nos cruzamos está a viver uma vida tão intensa e complexa como a nossa...preenchida com as suas próprias ambições, amigos, rotinas, preocupações e loucuras herdadas"*. 

*tradução livre

Já não sou blogger

13.10.16
O Isaac fez anos e teve uma festa exageradamente grande. Mais do que feliz, o petiz esteve birrento e cansado. Vieram duas amigas de Portugal visitar-nos e viveram aqui em casa mais de uma semana. Antes disso, participei numa road adventure (atentem na chiqueza do nome) e conheci mais uns sítios incríveis aqui em Timor. Esfolei os joelhos, e tudo, e tive um certo medo que acontecessem coisas piores enquanto subíamos rio acima para chegar a uma cascata. Mas chamar-lhe cascata é injusto, aquilo era uma obra de arte.
Agora, imaginem as imagens que eu poderia mostrar com filtros do instagram, ou sem filtros. Imaginem o que eu poderia dizer . Pois. Parece-me que já não sou uma blogger.

Eu faço legos e descasco laranjas

21.9.16


O facebook achou que eu ia gostar de rever aquela foto ali em cima (será que daqui a 300 anos alguém vai saber o que foi o facebook?) e, realmente, tinha razão. Gostei muito. Aliás, fiquei até meia intrigada, porque tenho pensado bastante nesses tempos, e ocorreu-me que se calhar o facebook também lê pensamentos. Ainda por cima aquela fotografia é de Maio de 2011, o Nicolau tinha duas semanas, portanto aparecer-me como uma efeméride de Setembro é estranho (entretanto fui confirmar e, afinal, não é aquela foto, é uma outra em que eu também estou com sling, mas não deixa de ser bizarro, pronto, ou até mais ainda com esta confusão)
Enfim, vem tudo isto a propósito de ter-nos calhado um horário escolar que faz com que tenha sempre um dos dois comigo, o Nicolau de manhã e o Isaac de tarde, e, por isso, tenho a sensação de que os meus anos de caos regressaram, como se pode ver no cenário da outra fotografia, que é o meu local de trabalho.
Bem sei que, como diz o inigualável Mário de Carvalho, "ninguém tem o menor respeito pelo trabalho da escrita" e se até Alexandre Herculano era acusado de não fazer nada, o que posso eu, uma aspirante, esperar? Não posso deixar de transcrever a hilariante passagem do livro "Quem Disser o Contrário É Porque Tem Razão": "Conta-se que a velha criada de Alexandre Herculano, quando um jornalista curioso lhe perguntou o que fazia o mestre desterrado em Vale dos Lobos, respondeu: «Não faz nada. Nadinha. Passa os dias a ler e a escrever»". Maravilhoso.
Ao menos eu posso dizer que faço legos e descasco laranjas e explico como se faz contas de subtrair.

Provinciana

13.9.16
Um domingo destes calhou estar na rua à hora em que a missa acaba e fiquei a ver a enorme quantidade de fieis que saía da igreja de Motael. Observar as pessoas nas suas vidas, uma actividade vulgarmente conhecida por "ver quem passa" é, como se sabe, uma das coisas preferidas dos ociosos.
Estava toda a gente muito bem arranjada, com folhos coloridos e camisas passadas a ferro e vinham em grupos, ou aos pares.  Ao ver as miúdas a caminhar tortas nos seus vestidos sintéticos e sandálias desconfortáveis, vi-me numa noite em Madrid com uma camisola de gola alta de lã vermelha. A camisola também tinha muito de sintético, mas não foi por isso que me lembrei. Foi por causa de um certo provincianismo que emanava de toda aquela cena, tal como há muitos anos atrás da minha camisola de gola alta que, apesar de se adequar muito bem ao clima na rua, tornava-se obsoleta dentro dos bares onde entrávamos. Toda a gente de decotes e manga curta e eu de camisola de gola alta vermelha.
Nas noite frias do Porto, eu adorava ver as pessoas despir luvas e cachecóis e casacos sobre casacos quando entravam em algum sítio e depois aquele ritual de vestir tudo para ir fumar um cigarro era (e ainda é, suponho) uma maravilha.
Mas eu tinha frio sempre que tentava essa coisa de me vestir por camadas. No Inverno eu gostava mesmo era de uma camisola de algodão, justa ao corpo, por baixo de uma camisola quente e aconchegante, porque na maior parte dos Invernos da minha vida estava sempre tanto frio fora como dentro de casa.
Acho que foi quando me mudei para Lisboa que as camisolas interiores deixaram de fazer parte do meu guarda roupa e, no entanto, não terei sido tão provinciana na minha vida como nessa altura.
Pensava nisto tudo ali em frente à igreja e depois continuei o meu caminho e concluí que provavelmente tenho saudades do Inverno.

Em aprendizagens

5.9.16
Ai-lele é o nome timorense da árvore Ceibra pentandra e desta fibra que sai dos frutos. Comprei três sacos dela e metade de um deu para encher uma almofada de 130cm x 50cm.

Endorreia: o uso do gerúndio de forma exagerada num texto.

Riso

29.8.16
Perguntaram-me, durante as férias, como são os timorenses e eu, depois de um ano em Timor, estou perfeitamente à vontade para dizer que não faço ideia. É tão fácil gostar dos timorenses como é difícil defini-los. Sei, pelo pouco que vou observando, que passam da afabilidade à violência, e vice-versa, num piscar de olhos. Sei que adoram festas, sei que ainda há um grande respeito pelos mais velhos, que levam muito a sério as tradições e que a morte é vivida de uma forma muito intensa. O luto é muito mais do que a manifestação de pesar pela pessoa falecida, há uma espécie de entusiasmo à volta do funeral e do aniversário da morte dos familiares.
Enfim, identifico algumas características que na verdade dizem-me alguma coisa sobre este povo, mas não posso ter a veleidade de acreditar que sei como são os timorenses.
E dessas características, uma das que me deixa mais desconcertada é o sorriso que mostram perante o sofrimento, ou uma situação desconfortável. Não é bem um sorriso é mais um riso. Parece-me comum em alguns povos asiáticos, mas o dos timorenses é diferente. Ou talvez seja por eu saber do que se riem, quando sei, obviamente. No outro dia dizia-me o S. que o pai já não falava e eu, sem saber bem o que dizer, saí-me com a pérola "talvez tenha chegado a hora dele" (eu sabia que já estava doente há algum tempo) e o S. riu-se e disse que sim, que tinha chegado a hora dele (morreu ontem).
É desconcertante, mas admirável ao mesmo tempo. Eu gostava de me rir quando conto que vou ao google maps ver a rua onde vive a Bea.

Já que perguntaram

26.8.16
Sim, chamando-se Solange arranjou um namorado. Trabalhavam juntos, num restaurante bem frequentado, daqueles em que as pessoas vão bem vestidas e bebem sangria de frutos vermelhos. Ela na copa, ele a servir às mesas. Os horários de cada um nem sempre facilitavam o namoro, mas eles lá iam encontrando formas de beber uma caipirinha no fim do expediente, ou de dar uma rapadinha na despensa, ao lado da casa de banho, no intervalo da tarde.
Eles davam-se mesmo bem, tinham até grandes planos para o futuro.
Um dia ele faltou a um encontro, o que até nem seria de estranhar, tendo em conta as mudanças de turnos e as idas ao ginásio e os pais dele sempre doentes, mas naquele dia ela ficou muito aborrecida. Era o aniversário deles. Ela tinha comprado um vestido e uns brincos. Só não comprou os sapatos, porque não havia o número dela. Enfim, ele não apareceu e ela telefonou-lhe uma vez, duas vezes, três vezes, 24 vezes e nada. Decidiu ir ter com ele e apercebeu-se que não sabia onde é que ele morava. Perguntou, caminhou em cima dos sapatos que não eram novos mas que ainda assim mereciam melhor tratamento, voltou a perguntar e descobriu porque é que o seu grande amor a deixou pendurada. Era o dia de casamento dele.
E agora que volto a esta história já não sei se foi depois disto que ela decidiu mudar de nome.

Do regresso

22.8.16

Antes de sair de Timor, para passar férias em Portugal, eu espantava algumas pessoas ao dizer que não estava assim tão ansiosa por visitar ao nosso querido país. Aliás, custava-me perceber aqueles "está quase!" trocados entre conterrâneos e acompanhados de sorrisos cúmplices, como se só eles soubessem do que estavam a falar.
Agora sei. Agora sei que vai ter de passar mais um ano, ou dois, até voltar a sentir frio; até voltar a juntar toda a família à volta da mesa; até estar de novo ao vivo com as pessoas de quem gosto tanto; até sentir a angustia perante a prateleira dos iogurtes e dos shampôs, porque uma pessoa já não sabe o que é ter tanta oferta da mesma coisa; até sentir outra vez o sabor dos mexilhões, da pescada e do sarrabulho; até sentir o cheiro daquele mar; até adormecer e acordar rodeada de familiaridade...Não é que não soubesse antes de ir, mas agora sei de outra forma.
Agora sei, também, o que quer dizer o encolher de ombros e o sorriso resignado dos que regressam de férias. Quer dizer: o que eu queria era ter lá ficado.

Poderão dizer-me que isso é exactamente o que sente toda a gente quando termina as férias, e dirão muito bem, mas uma coisa é sair de casa para ir de férias, outra coisa é ir de férias para casa.
Ir de férias para casa é todo um novo conceito para mim. Ele é a Decathlon que passa a ser a loja mais importante, ele é marcar quatro consultas médicas de diferentes especialidades na mesma semana, ele é listas de coisas que precisamos de trazer (e depois apercebo-nos que não trouxemos os casquilhos, nem as tomadas eléctricas), ele é carrinhos cheio de tralha só porque é uma tralha mesmo bonita e aqui não há coisas daquelas bonitas à venda, ele é assinar papeis para resolver burocracias. Enfim todo um mundo novo de veraneio. Uma espécie de interlúdio da vida de todos os dias para viver a vida que tínhamos antes.

E no fim custa regressar. Há um pedaço arrancado de mim que ficou lá (nota: ouvir a Ópera do Malandro) e a insularidade pode ser uma cena fodida, além de que as rotinas, mesmo numa ilha tropical cheia de encantos, não deixam de ser rotinas.
Só que depois chegamos à nossa casa tropical e temos o nosso cão à espera, num contentamento louco. Vemos o pôr-do-sol, corremos os olhos pelo verde Timor, damos um mergulho no mar, bebemos água de coco e acordamos com o som dos pássaros nos ouvidos - eles estão do outro lado da janela do quarto, mas parece que piam como se nos contassem segredos.
Enfim, depois, tudo está como tem de estar.
É um pouco como diz na crónica da Alexandra Lucas Coelho, trocando o nome dos países: Morar em Timor é bom mesmo sendo uma merda.

Solange

17.8.16
Os meus filhos decidiram mudar de nome. Um quer ser chamado de Victor (com o som do "c" a ser considerado) e o outro António. Acho que foi por esta altura que a Beatriz também se virou contra o seu nome próprio, dizia que preferia chamar-se Catarina, se não estou em erro.
Se eu soubesse que ia ser assim tinhas-lhe dado o nome de "Primeiro", "Segundo" e "Terceiro", como é costume em Bali, e depois eles que decidissem o seu próprio nome.
Em Timor também é costume usar-se o nome de estima, em vez do de baptismo, mas não me estou a imaginar a chamar o Nicolau de António e o Isaac de Victor, mesmo sendo nomes que até me agradam.
Lembro-me perfeitamente de me perguntar se eles iriam gostar do nome que escolhemos para eles, porque se para nós fez todo o sentido escolher Isaac (depois do pai ter sonhado que ele ia nascer a rir - é esse o significado do nome), e Nicolau (quando soubemos que ele ia ser um rapaz, no dia de S. Nicolau), isso não significa que eles tenham de achar piada. Da Beatriz, por acaso, não me ocorreu que ela viesse a desgostar do nome escolhido por causa do livro "O Século Primeiro depois de Beatriz", do Amin Maalouf. No entanto, parece que foi o que veio a acontecer.
Seja como for, e apesar de ser um assunto sobre o qual não perdi muito tempo a pensar, parece-me que o nome que recebemos quando nascemos tem sempre uma razão de ser e o melhor que temos a fazer é viver com ele e pronto. Mas há quem não consiga.
Não sei se serão muitas as pessoas que escolhem mudar de nome, sem contarmos as transexuais, mas era engraçado saber os números e os nomes escolhidos. Tenho o pressentimento que nem sempre mudam para melhor, apesar disto não ser propriamente o mesmo que nomear personagens de uma história, já que não há bons e maus nomes, apenas nomes de que se gosta.
Por exemplo, conheço uma pessoa que mudou de nome, já adulta, porque achava que a razão de não conseguir arranjar um namorado era por se chamar Saúde. E que nome é que ela escolheu? Solange.

Meu querido mês de Julho

12.7.16
A viagem a Portugal, com uma visita a Amesterdão, mais uma semana sem carregador do computador foram excelentes pretextos para me manter afastada daqui. Não tenho tido vontade de escrever no blog não sei ao certo porquê. Mas tenho de arranjar uma forma de o fazer, porque há coisas sobre as quais tenho mesmo vontade, ou necessidade, de escrever. Os olhos a lacrimejar na sinagoga portuguesa, em Amesterdão, e um encontro casual com uma amiga no sítio mais improvável da capital holandesa é uma delas. O facto de terem cortado o pescoço do meu cão, em Díli, enquanto a minha mãe me sugeria eutanasiar os meus gatos por causa do pêlo e do vomitado espalhados pela casa, e do tanto que isso diz sobre as duas realidades em que vivo, é outra.
Mas há mais. Haveria muito a dizer sobre os braços magros da minha avó e da pele tão transparente que deixa à mostra a vida a correr-lhe nas veias. Sobre  o reencontro com algumas das minhas amigas, ou o sabor do feijão verde que acompanha as batatas e a pescada cozida. Sobre a temperatura amena do meu país, nesta altura do ano, e a água gelada do mar da Costa Nova. Sobre a coach mental do Éder, a traça pousada no rosto do Ronaldo e as notícias que me chegam de Díli a respeito dos festejos da vitória de Portugal. Sobre o tratado filosófico que é uma viagem pelas estradas nacionais, ou o tão em voga mindfulness que consigo atingir enquanto subo as centenas de degraus do monte da minha aldeia. Sobre o quão mais fácil é viver no mesmo fuso horário que as nossas pessoas.
Talvez um dia destes eu consiga vir aqui escrever sobre isto tudo, ou talvez não escreva e pronto. Precisar de escrever é uma coisa e precisar de público é outra. E nem sempre é fácil distinguir as duas coisas. Acabamos viciados na escrita, na decomposição do nosso sentir, sem termos bem a noção de que o verdadeiro vício é o reconhecimento, mas esse é o drama de todos os exibicionistas, certo? (há quem lhes chame artistas, mas o meu pudor barra modéstia barra insegurança quase doentia não o permite).
Talvez esta fase da minha vida exija um outro tipo de registo, não sei. Vamos indo, vamos vendo. Enquanto isso obrigada a quem está desse lado.

Fazer nada

17.6.16

Admiro profundamente a filosofia cosseriana da preguiça, mas devo dizer que há poucas coisas tão extenuantes como fazer nada. É certo que Cossery não tinha de interromper as suas reflexões para limpar o rabo a um filho e descascar uma laranja a outro, ou varrer os restos de comida espalhados pelo seu quarto da Saint Germain-des-Prés, mas ainda assim sabemos que essa actividade interior é, ou pode ser, muito intensa.
Por isso, muitas vezes eu desejo ter um emprego. Ter um emprego é uma coisa fantástica para se deixar de pensar. Passa-se a ter preocupações, que é diferente. Mas ter um emprego, a fazer coisas importantes, como aumentar o número de visualizações nas redes sociais, ou a testar o interesse dos consumidores em determinado produto, obriga-nos a levantar de manhã e a vestir uma roupa bonita, a fazer qualquer coisa ao cabelo e a pôr batom do cieiro. Obriga-nos a sair de casa e a deixar as crianças em algum lado, ou entregues a alguém que cuide delas. Obriga-nos a fazer coisas muito chatas e a ter reuniões insuportáveis, que depois precisamos de compensar com gin tónicos e umas férias num sítio exótico.
Basicamente, apetece-me ser como Sarag mas, felizmente, só às vezes.

Poesia, vida e morte

14.6.16

Há momentos na vida em que uma pessoa se vê a fazer coisas deveras estranhas, e nem sempre relacionadas com o consumo de álcool. Um exemplo: cantar o hino nacional, no dia 10 de Junho. Bem, isso não é o mais estranho até porque quase posso jurar que já o cantei, ou trauteei, vá, num europeu de futebol e isso, sim, é de deixar os queixos caídos (ou não, há belíssimas prosas sobre essa paixão pelo desporto rei e apesar de a minha ter sido uma pequena chama que se esvaiu, foi um bonito sentimento. Só voltei a gostar da Grécia por causa do Tsípras, mas não misturemos política e futebol, apesar de parecer tudo a mesma coisa).
Mas como eu estava a dizer, antes do parêntesis, o mais estranho não foi cantar o hino, o mais estranho foi cantá-lo com uma certa emoção e tudo. Uma pessoa emigra e é isto!
Quer dizer, na verdade o mais estranho mesmo foi cantar emocionada pela nação valente e imortal, depois de ouvir o Pátria, um hino contra o imperialismo. Mas as nações são isto: Poesia, vida e morte. Às vezes paz, às vezes guerra. Às vezes fome e sede, às vezes fartura, conforme as colheitas, ou os mercados.

Se me tivessem dito

7.6.16
Quando tiveres 43 anos vais estar a viver numa ilha distante. Lá, vão acontecer-te coisas boas e coisas menos boas, como em todo o lado. Vais descobrir que o mundo não tem tamanho, ou tem o tamanho que lhe quiseres dar. Vais tentar aprender uma língua nova. O teu filho do meio vai partir um braço, a tua filha mais velha vai pedir-te para regressar a Portugal e o pai dos teus filhos vai ter experiências menos boas no trabalho. Vais fazer coisas que nunca tinhas feito na vida, como reiki, ballet, snorkeling, todo o terreno e uma tatuagem. Vais sentir-te perdida, muitas vezes, e outras tantas agradecida. Vais comer e beber muito bem e vais apanhar doenças complicadas. Vais conhecer pessoas novas e sentir falta das que deixas para trás. Vais querer ser feliz mas, como sempre, não vais saber como. Vais ver os teu filhos felizes e descobrir que o do meio não gosta muito de aprender as matérias da escola. Vais gostar dessa ilha. Vais gostar de viver lá.
Se me tivessem dito isto há uns anos acharia possível mas ainda bem que só sabemos o futuro depois de o ter vivido.

Os Tobias Catatuas têm uma casa nova

2.6.16

O Isaac e o Nicolau tinham uns animais de peluche que serviam de objecto de conforto, sobretudo o do Isaac. O do mais velho era um cão e o do mais novo um gato. O cão do Isaac viveu várias aventuras e há dois anos ficou perdido num hotel em Bali. Nesse ano, o Pai Natal encontrou-o, quando passou pela Indonésia (deve ter feito um enorme desvio, coitado!), e trouxe-o. O Isaac chorou de alegria agarrado ao cão.
Entretanto, voltamos a perder o cão, e também o gato, num hotel em Same, que fica a 35 Km de Díli, ou seja, a quatro horas de distância, ou mais. Portanto o cão ficou lá para sempre. Quer dizer, o Isaac ainda acredita que ele vai voltar.
Depois disso, passamos numa loja do Timor Plaza com um caixote enorme cheio de bonecos e o Nicolau pediu-nos um. Perante a nossa recusa lembrou-nos que a culpa de terem perdido os outros era nossa. Usou argumentos bastante plausíveis, até, mas toda a gente sabe que não há nada como a culpa para conseguirem coisas que não interessam para nada.
Lá vieram para casa, cada qual com o seu bicho: um leão para o Isaac e um transgénico para o Nicolau. Chamam-se os dois Tobias Catatuas, não faço ideia porquê, e é o Isaac que brinca com os dois, porque o Nicolau, o que queria muito, muito ter um boneco novo, afinal, não quer saber dele para nada. E isso diz mesmo muito sobre a personalidade deles.
Da mesma forma que o processo de construção daquela casa diz muito sobre a minha, mas isso fica para um outro dia.

Nós, as mães normais (num dia normal de 2011)

31.5.16

Temos os espelho sujos; tiramos fotografias desfocadas, porque há mãos pequeninas a pedir-nos colo, e outras escuras, porque as divisões da casa não têm todas a mesma luz. Nós, as mães normais, e grávidas, gostamos de fatos-de-treino (sim, FATOS-DE-TREINO e não me venham com merdas que há uns anos ninguém ousaria sair à noite de chinelos de dedo e de repente as havaianas passaram a fazer parte dos outfits mais cool), mais do que isso, precisamos deles como os piolhos de cabeças humanas. Nós, as mães normais não temos, sempre, lençóis a condizer com edredons e cobertores; toalhas de mesa bordadas e outras coisas que tais. Nós, as mães normais temos pijamas ridículos.
E para mostrar isso mesmo acordei um dia destes (na segunda-feira passada) com a ideia fixa de registar o dia com imagens. A ideia era clicar de hora em hora estivesse eu a fazer o que estivesse, mas essa parte não se revelou fácil, porque me esquecia de confirmar as horas. Por isso, fui fotografando algumas das rotinas diárias sem grande preocupação com o relógio. O dia acabou por se revelar atípico, porque a Bea não esteve em casa (estava excepcionalmente com o pai num dia da semana), o Isaac não fez cocó e o Jaime não trabalhou nessa tarde. Ainda assim decidi que devia publicá-lo, por nós, as mães normais. Podem vê-lo aqui.

P.S Devo só acrescentar que há mães normais que fotografam melhor, nas mesmas condições. E que não se dão a este tipo de exibicionismos.

[Normalmente, quando faço repostagens significa que está na altura de mudar de blog (este não é o primeiro, como algumas pessoas, aí umas seis, se devem lembrar), mas esta apeteceu-me mesmo muito.
Na altura, em 2011, eu era uma pessoa muito mais ressabiada e chateava-me ver blogs de pessoas bonitas com casas maravilhosas e filhos lindos que, mesmo despenteados e com ranho, parecem os anjos de Rubens. O bluebird, que no entanto aprecio, era um desses blogs que costumava mostrar fotografias de cenas "normais" do dia-a-dia.]

Mãe, sou rica!

27.5.16

É muito giro isto de uma pessoa sair da sua zona de conforto e dar por si, por exemplo, a ter aulas de ballet com uma bailarina americana. Ou seja, a ter de comunicar em inglês (eu sei que não parece mas sofro de ansiedade social) e a tentar fazer peliés, développé, passés, chainés relevés, em público.
É muito giro, dizia, e pode dar-se o caso de uma pessoa ver-se rodopiar com a leveza de uma garça, que os cisnes são outro campeonato, e notar que o corpo reconhece a vontade da criança, cedendo ao esforço, à dor, à timidez acabando por se soltar e revelar toda a elegância, toda a beleza que um corpo é capaz de revelar quando dança.
Pode acontecer, acho eu, mas não é o meu caso. Na parede de espelhos não vejo nenhuma garça, vejo um pinguim, como diz a minha filha (se não formos à origem das coisas, a culpa é dela, que disse que não ia sozinha para o ballet de adultos depois de eu lhe oferecer um módulo de aulas). E, como facilmente se depreende, um pinguim não consegue dançar ballet, o máximo que é capaz de fazer é sapateado e isso só nos desenhos animados.
Mas, enfim, está a ser uma bela experiência esta de confirmar que sim, que devia ter feito isto mais cedo, quando era uma "coisa para ricos", como dizia a minha mãe.

Uma emigrante nos trópicos

23.5.16


Agora que me rendi às massagens não deve faltar muito para ser uma verdadeira expatriada, em vez de uma emigrante. Quer dizer, falta dar o grande passo que é arranjar uma ama, mas eu nem sequer sei ter uma empregada, quanto mais uma ama! Serei sempre uma emigrante, portanto.
E como qualquer boa emigrante vou a Portugal no Verão para ver a família e os amigos e para as festas de Nossa Senhora da Saúde. Nessa altura, a ouvir a missa campal nos altifalantes, lembrar-me-ei de Timor. Ou não. Talvez faça contas aos dias que me restam em Portugal, antes do regresso. E se calhar até tiro uma selfie no monumento do emigrante.
Tenho a impressão que esta experiência foi, está a ser, transformadora mas não consigo apreender o alcance dessa transformação.
Como todos os emigrantes, ou expatriados (diz que é mais fino ser-se expatriado), mantemos rotinas que nos são familiares, como fazer refeições o mais parecidas possíveis com as que fazíamos em Portugal; tentamos ter os mesmos padrões de conforto num país onde é normal ter formigas, ratos e cobras dentro de casa; Combinamos almoçaradas com amigos, isto é, conterrâneos, isto é, outros portugueses com quem nos identificamos; e continuamos a achar que precisamos de mais do que dois pares de sapatos, quando nem sequer há estações do ano.
Mesmo assim, é quase impossível sermos os mesmo depois de fazer as malas e ir viver para outro país, sobretudo quando o outro país é tão diferente do de origem. E eu acho que vou perceber melhor o quanto terei mudado quando estiver em Portugal. Ou não.
Aquele professor de Harvard que escreveu "O Caminho da Vida", diz que "somos pessoas diferentes em contextos diferentes", não sei se é verdade, mas não me parece bem contestar Confúcio.

P.S A foto é do Jaime

O clima

12.5.16









 Eu dizia: É espectacular a sensação de se ir viver para um país que acabou de nascer. Há um enorme sentimento de esperança e a sensação de que tudo é possível, porque quando estamos a aprender a andar, tropeçamos e caímos mas antevemos logo ali a possibilidade de correr.
Eu dizia isso, e sentia isso, e depois vim para cá viver. E aqui está sempre muito calor e uma pessoa usa decotes e por isso as migalhas do pão caem dentro do sutiã. Não sei se é por ser eu a fazer o pão que ele fica mais migalhento.
Também dizia: Num país sem tratamento de resíduos temos mesmo de tentar produzir o menos lixo possível e, apesar dos caixotes de cartão que uso para trazer as compras, ou da reutilização de frascos de vidro e de comprar legumes nas bancas em vez de embalados, vejo-me rodeada de plástico por todos os lados. Plástico nosso e plástico dos outros a boiar na praia.
E depois acreditava que esta mudança seria boa para os miúdos, a ideia de terem escola só numa parte do dia e terem espaço para correr, brincar ao ar livre, fazer o que bem lhes apetecer, ou ficar aborrecidos por não terem o que fazer parecia-me quase perfeita, mas por qualquer razão a mãe deles não aparecia neste cenário. A mãe deles estava a fazer qualquer coisa importante.
Só que não. A mãe deles está em casa com o sutiã cheio de migalhas. Mas, pelo menos, neste aspecto não se enganou muito. As crianças aqui podem mesmo ser crianças, incluindo as adolescentes.
Na verdade podem ser crianças aqui ou em qualquer outro lugar, mas o clima é melhor.

Tens cara de quê?

5.5.16

Em tempos, numa das famosas aulas do Mário Cláudio, discutiu-se a semelhança fisionómica entre as pessoas e os animais. Escusado será dizer que a discussão continuou fora da sala de aulas e toda a gente concordou que eu era muito parecida com uma ovelha.
Como acho que as ovelhas, não sendo uma beleza de animal, até nem são mal parecidas de todo fiquei feliz.
Agora, descobri este livro e estou fascinada. Diz o seguinte sobre as pessoas com este tipo de fisionomia: "Men of true courage and heroísm more frequently resemble sheeps, goats, hares, and other timid, inoffensive animals, than lions, tigers and animals of the savage variety".

Colorir

4.5.16
De cada vez que o Isaac traz uma cópia para trabalho de casa tenho tempo de colorir umas quantas páginas deste belíssimo livro que me ofereceram no aniversário.
Se ele continuar tão contrariado nesta coisa dos deveres da escola, acho que vou ter de ir a Bali comprar uns quantos.

Era uma vez

28.4.16
um menino pirata que acreditava ser um super herói. O menino, por acaso, não era grande fã de barcos, porque enjoava imenso. Só era pirata por adorar fazer caças ao tesouro.
Quando não caçava tesouros, nem corria em socorro de alguém, o menino jogava basquetebol. Ninguém percebia muito bem porquê, mas o menino realmente adorava basquetebol. Às vezes as pessoas acordavam às 6h30 da manhã com o som da bola de basquetebol a driblar pela casa. E às vezes o menino pedia, ainda antes de jogar basquetebol pela casa, para dormir com as bolas que tinha.
Um dia 28 de Abril o menino fez 5 anos e uns amigos fizeram-lhe um bolo de gelatina e preparam-lhe uma festa surpresa, com balões e outras decorações. Haviam de ver como estava feliz o menino pirata que acreditava ser um super herói! Estava numa alegria contida, quase nervosa, que é como ficam as pessoas que sabem que estão dentro dos dias especiais.
Fazer cinco anos é uma coisa mesmo muito especial. A mãe do menino até chorou um bocadinho (que por acaso é uma coisa que ela faz com uma certa frequência), porque nos dias especiais também se chora, como quando os meninos saem das mães. E todos os anos eles vão saindo mais um bocadinho. E depois vão ganhar muitas lutas contra os maus.
Vitória, vitória acabou-se a história.

Cresceste

26.4.16

Tens 15 anos. 15 anos. Posso dizê-lo as vezes que quiser que vai parecer-me sempre inverosímil. Tens 15 anos e vais sair da nossa casa.  Eu sei que não vais sair da minha vida, bem vês que isso é impossível. Vais sair de casa, como em tempos saíste de mim. É claro que eu não tenho tanta pressa que saias de casa, como tinha para que saísses de dentro de mim, mas tenho a mesma urgência em ver-te bem e inteira e feliz.
Foram 9 meses que passaram muito devagar e 15 anos que voaram, tal e qual aquele pássaro que está em cima do muro e agora já está naquela árvore.
Tenho-me lembrado dos nossos lanches de laranjas e pão com compota, depois de te ir buscar à creche, de quando me contavas, ainda tão pequenina, os teus sonhos de galinhas com dentes que sabiam falar inglês e dos teus desabafos sobre preferires não existir, já que tinhas de morrer. Tenho-me lembrado do tanto colo que eu te dava, das tantas histórias que te lia e de outras tantas que inventava e tu sempre: "só mais uma história, mamã".
É claro que também me lembro das noites sem dormir e do quanto tu choravas e choravas sem parar, mas isso, bem vês, entre o muro e aquela árvore foi menos de um milésimo de segundo.
Tenho-me lembrado da tua alegria contagiante e das provas que foste superando com tanta coragem. Fizeste-me sentir muitas vezes uma mãe babada e tu sabes o que eu penso das mães babadas. Mas, lá está, contigo foi sempre a primeira vez, foi sempre tudo novo nesta experiência de ser mãe.
E aqui estamos em mais uma etapa natural. Separamo-nos como é suposto que aconteça mais cedo ou mais tarde. Para mim, tu sabes, é sempre cedo demais, mas é bom que seja assim. É bom que seja quando tiver de ser.
Os nossos laços já não são tão orgânicos, feitos de afecto em forma de um cordão. Os nosso laços são, agora, feitos da substância que une uma mãe que vê uma filha crescer, enquanto a prepara, e se prepara a si própria para a ver seguir o seu caminho. Essa substância não se corta com uma tesoura, bem vês, porque é igual às marés e ao nascer do sol e ao pulsar das montanhas.
Mesmo assim vai doer, claro. Mas há toda uma nova vida à tua frente e isso é maravilhoso.
Continuarei, continuaremos, eu e o teu "pai em segundo degrau", a enviar-te pozinhos mágicos deste lado do mundo, para que tenhas sempre bons sonhos.

Há sensações universais 13

21.4.16
"But as long as the corners of the room remained in shadow, she could almost believe it was a painting: a minor effort by a would-be Sickert, in which wallpaper and wardrobe mirror offered the same creepy green. Was that why people went on leaving home to struggle with luggage and exchange rates? Not for the shot at novelty or adventure, profit or escape, but in the hope that their lives would be lifted into art?
The problem was that the mirror always held her, too: untransformed in the foreground of the scene."

Michelle de Kretser, Questions of Travel, Allen&Unwin, 2013

Há coisas que não mudam

15.4.16

Nicolau: A coisa que eu gosto mais em Timor é de fazer plasticina e a que gosto menos é de comer lulas.

Isaac: Eu lembro-me perfeitamente de pedir um telemóvel quando estava a comer as uvas passas, mas as uvas passas também se transformam em cocó, não é?

Ou seja, os meus filhos continuam a ser uns belíssimos broncos (na foto vê-se que estão muito interessados numa peça em exposição no BACC - Bangkok Art Cultural Centre -, da artista Kawita Vatanajyankur, mas isso é porque na obra em questão viam-se melancias a cair e a desfazerem-se no chão).

E eis que o impensável acontece

14.4.16
Um taxista decide pregar a palavra de Deus...em tétum. Eu ainda não aprendi a língua, para grande desgosto meu, mesmo assim percebi que o mundo está acabar, porque Maromak (Deus) está farto de pecados. O homem estava tão empenhado em doutrinar-me, que sacou do tablet para me mostrar uma foto do Papa com uma série de cálculos, cujo resultado era o número 666. Eu não tive outro remédio que não sair do táxi, depois da corrida, a dizer:"Ha'u hatene, (eu sei) Papa falso profeta".
A ver pela quantidade de gente que foi assistir à ordenação do novo Bispo da Diocese de Díli, suspeito que este jovem não tenha muito amigos.

Narrador omnisciente

13.4.16
Uma mulher que corria nas escada do Metro deu um encontrão em alguém. Virou-se, já no cimo das escadas que davam para rua, e vimos-lhe o cabelo muito preto na cara, por causa do vento. Tinha um sorriso magnífico. Era uma juíza que corria para julgar um caso importante. 
Mais à frente, num jardim branco, estava uma criança pequena, semi-nua, a fazer sons com pedras redondas. Repetia uma melodia que eu devia conhecer. 
A vantagem dos sonhos, assim como a de alguns livros, é a existência de um narrador omnisciente.

Já tínhamos saudades de um certo egocentrismo, certo?

4.4.16
Apercebi-me que este blog fez seis anos, há quase duas semanas, e publiquei na página do facebook o primeiro post, comentando que parecia que nada tinha mudado entretanto.
Será mesmo possível que nada tenha mudado, apesar de ter feito tantas coisas diferentes? Por exemplo: tive mais um filho, o terceiro. Apareci numa revista.  Fiz parte de um movimento. Mudei de casa cinco vezes. Festejei o aniversário em cinco cidades diferente: Zurique, Lisboa, Póvoa de Varzim (Láundos), Porto, Setúbal (Arrábida) e estou quase, quase a festejar em Díli. Fiz sete workshops (no primeiro da lista ainda não tinha este blog). Vendi mantas em patchwork feitas por mim (por acaso acho que só foi uma, as outras oferecia-as todas, não sei mesmo ter negócios). Conheci o Wladimir Kaminer e a Olga, a mulher dele, que me deu a entender que eu sabia como dançar, na Russendisko de Lisboa. Fui sozinha a Londres. Fui falar para um Júri, entre eles o Nilton, o humorista, sobre o mundo do trabalho e fiz umas figuras bastante tristes, mas o Júri também, na minha perspectiva. Este blog recebeu uma menção honrosa no prémio Mãe Blogger. Enviei um conto para um concurso literário. Tornei-me dadora de medula óssea. Trabalhei durante quatro meses na biblioteca de uma escola. Criei uma empresa. Apareci na TV. Fechei a empresa (não sei se já tinha dito que não sei ter negócios). Fui cronista do P3. Fiz reportagens bem giras como esta para o Lifecooler e esta para o Hotelândia e mais esta para o Alma de Viajante e também a da FUGAS (quando digo giras refiro-me à experiência de as fazer, não necessariamente ao resultado das mesmas). Fiz novas amigas. Fiz mais de 60 bolos de aniversário. Passeei em oito países. Vim viver para outro continente. Separei-me dos meus gatos. Adoptei um cão. Tornei-me reikiana. E este blog teve mais de um milhão e uma centena de visitas.
Provavelmente é uma questão de foco. Ao longo destes seis anos, além de mãe e blogger, fui empregada por conta de outrem, empresária e freelancer, em metade desse tempo, mas por qualquer razão nunca o valorizei. Bem, esta coisa do auto-conhecimento não tem fim, pois não?

Adenda: apanhei chikungunya, que me fodeu as articulações do corpo todo.

Personalidade

2.4.16
Nos últimos tempos melhorei a forma como me alimentava, diminui drasticamente o consumo de vinho, faço yoga e meditação e tento fazer aquilo de ver o lado bom das coisas.
Com isto, tenho conseguido olhar para mim e para o que me rodeia com outra perspectiva, com menos angústia, sobretudo. Também perdi três quilos e toda a gente sabe o que significa para a auto-estima de uma pessoa conseguir apertar o botão das calças que tinham deixado de servir. No meu caso, mais do que conseguir apertar o botão, tem de haver aquela folga que permite uma pessoa sentar-se sem sentir que os órgãos internos estão a ser vítimas de tortura.
Naturalmente, ao longo deste processo que começou há três meses, mais coisa menos coisa, fui sentindo que estava diferente, que não precisava de comer tanto e, sobretudo, de beber tanto para me sentir bem. Que uma certa paz interior substituía a irritação constante e fui-me apercebendo do desperdício de energia que é a preocupação constante. 
Fui constatando, não sem alguma preocupação, que provavelmente estava a transformar-me noutra pessoa.
Depois, uma amiga perguntou-me se não tinha gostado de Banguecoque e eu disse que sim, que não tinha ficado fascinada, mas que tinha gostado bastante. E ela: "Ah, então as queixas eram só para o estilo!". E eu: "Queixas? mas eu não me queixo, eu até estou uma pessoa mais zen e tudo". E ela: "Sim, estás decididamente a percorrer um caminho, mas ainda não mudaste de personalidade." 

Apontamentos de Banguecoque

30.3.16




Comprei um livro em segunda mão, primeiro por causa da capa e depois por causa do título: "Questions of Travel".
Não gosto de ler, ou não sei ler, noutra língua que não o português, mas senti-me impelida a trazer este livro comigo. Custou 155 bhat (cerca de quatro euros).

Tal como a Laura, uma das personagens do livro, também leio, ou lia, avidamente sobre os sítios que quero visitar, mas ao contrário dela já não me surpreendo com o tédio que significa ser uma turista. E que tédio aquele Grande Palácio Real, com aquelas filas intermináveis de turistas. Turistas asiáticos, ainda por cima. Mas o Buda de Esmeralda é qualquer coisa, sem dúvida, e é preciso vê-lo a qualquer custo (será?). 

O mais surpreendente de Banguecoque foi comer o melhor marisco dos último tempos, no bairro chinês, sentados na berma de uma rua. Os carros passavam rentinhos aos nossos bancos, enquanto devorávamos ameijoas grelhadas, mexilhão com basílico e ostras.

A comida tailandesa é divina. Volto à Tailândia, um dia, só para comer. Aliás, quero viajar assim. Vou comer à Tailândia, vou ver o lago Hillier à Austrália, vou beber cervejas às 3h00 da manhã na Islândia e pelo caminho vou vendo o que acontece. Tenho a certeza que fico a conhecer tanto destes países como as pessoas que seguem à risca as 10 coisas a fazer em cada um destes sítios. 

Gostei muito do nosso hotel pseudo-sustentável e ligeiramente decadente da Rua Khaoson. Tem uma piscina no sexto andar que me pareceu intimidante com todos aqueles casalinhos românticos rodeados de braços, mãos e cocktails por todos os lados. Mas a certa altura os casalinhos foram-se arrumando para os lados para dar espaço às crianças. 

É muito provável que as crianças estejam na pior combinação de idades para viajar. Uma adolescente que passa a vida enfastiada, um rapaz de seis anos que reclama a toda a hora por ter de andar de um lado para o outro e um de quase cinco que emita o irmão. Também pode ser deles e não ter nada a ver com as idades.

O smog ao vivo é perturbador.

Depois de tantas caminhadas em cima de uns pés afectados por artrites (ainda efeitos secundários da chikungunya, que apanhámos há quase um mês), tenho as costas feitas num oito. A sensação de que nunca estou em pleno é muito irritante.

Trouxe tâmaras de Banguecoque e muitas outras coisas. Parece que, além de comer, fomos fazer compras à Tailândia. Isto até poderia ser deprimente se não vivêssemos em Díli, mas assim temos uma certa desculpa. 

Coisas da gaveta

18.3.16

Fiquei a saber que se tratava de uma senhora que se sentiu mal dentro do autocarro. Era o 708, que circula entre o Martim Moniz e o Parque das Nações Norte.
Segui o meu caminho a imaginar o que teria acontecido à mulher. Teria sido um enfarte? Estaria cheia de sacos do supermercado, como estão sempre as mulheres que parecem prestes a ter uma paragem cardíaca, enquanto sobem a rua a arfar? Os números dizem que a maioria das vítimas de enfarte são homens mas a mim parece-me sempre que são as mulheres que andam com o coração prestes a ser esmagado.
Eu também estava com sacos de compras nas mãos e parei em frente a uma montra à procura de vestígios de um quase enfarte no meu reflexo, mas lá estava a minha cara de sempre, sem qualquer interesse. Irritou-me olhar para mim. Acontece-me muitas vezes. Creio não ser a única pessoa no mundo a irritar-se com o seu próprio focinho reflectido num vidro.

Os miúdos estão crescidos

15.3.16

Curioso isto de quase todos os meses me doerem as mamas, de quase todos os dias ter de fazer o almoço e o jantar, de andar com os miúdos para trás e para a frente, e de fazer legos com eles, e jornais com notícias inventadas, e desenhos com caraus e crocodilos, e recortes, centenas de recortes, e ovos mexidos com muitos ovos no chão, e ameaças para se entenderem, e ter dias que passam sem que eu perceba o que fiz com eles, com os dias, e livros que ganham pó à espera que os leia, e a horta por cultivar.
Curioso, dizia, a minha vida continuar a girar à volta das mesmas coisas de sempre e, no entanto, parecer uma vida completamente diferente. 
Os miúdos estão crescidos, é isso. Ou, então, ter alguém que trata da casa e da roupa faz mesmo muita diferença. Também pode ser do clima.

A minha avó

11.3.16
A minha mãe encostou-lhe o telefone ao ouvido e gritou-lhe "DIGA: OLÁ CARLA" e ela disse "Olá Carla" e depois "estás contente?" Tinha a voz um bocadinho entaramelada e parecia cansada, mas era a minha avó. Ela ainda existe.

O pior de estar tão longe

8.3.16
"Olá minha filha, olha, não tenho boas notícias, a tua avó teve uma trombose, deixou de falar. Ela não morreu, mas tu já não vais ver mais a tua avó. A avó que tu conhecias já não existe, filha".

Oh, avó...

Medo

7.3.16
Os meus problemas de Primeiro Mundo não são nada compatíveis com os meus problemas de Terceiro Mundo.
Tivemos de despedir a Ana e obviamente teve de ser o Jaime a tratar desse assunto, porque eu sei que seria incapaz. Fui ao yoga, enquanto ele, coitado, falou com ela.
Agora, temos cá a Domingas. A Domingas é uma querida e eu estou a tentar ensiná-la a cozinhar. Corre tudo bem até chegarmos à parte em que é preciso acender o fogão. Nessa altura fica em pânico e diz, com os fósforos na mão, "Domingas não consegue". A Domingas nunca viu um fogão a gás e, naturalmente, aquilo mete-lhe medo.

Evolução das espécies

4.3.16

                                                              Imagem retirada daqui

Sublinhei no livro que estou a ler: "Eu perguntava-me se era isso que o velho Empédocles da Sicília tinha querido dizer ao afirmar que os primeiros homens foram árvores".
Fiquei com vontade de saber coisas sobre Empédocles, mas não tinha internet para ir ao google.
Entretanto, já com uns quantos gigabytes comprados na Timor Telecom, abro o facebook e dou de caras com o "A Morte de Empédocles", de Hölderlin.
E depois de alguma pesquisa fiquei a saber que Empédocles tem uma teoria da evolução bastante curiosa. "Para ele no princípio havia numerosas partes de homens e animais - pernas, olhos, orelhas - que estavam distribuídas desordenadamente. Através do amor essas partes se juntavam  aleatoriamente formando criaturas disformes que eram inviáveis para sobreviver e pereciam. As espécies que formavam uma boa combinação sobreviviam."

Linguagem desconhecida

3.3.16

O meu telemóvel está a tentar comunicar comigo numa linguagem desconhecida. Eu ia fotografar um cacho de bananas que cresce a olhos vistos no lado certo da árvore (isto dependendo da perspectiva, claro, uma vez que a bananeira está no jardim do vizinho e este cacho cresce dentro do meu quintal), mas as únicas imagens que o meu telefone consegue captar são como a que se vê ali em cima.
Pensei que era por causa dele ter caído ao chão, mas depois desse acidente já conseguiu captar o Isaac vestido de pai, um mudra que nunca tinha visto e o tangram novo do Nicolau.
Por isso, acredito mesmo que o meu telemóvel esteja a ser usado para um tipo de comunicação desconhecida, até porque há coisas bastante fora de série no universo (e no meu telemóvel, como um mudra e um tangram lado a lado)
Se calhar sou eu a tentar comunicar comigo, a partir de um wormhole, como o Matthew McConaughey.

Sustento

26.2.16
Os meus seis meses até que tudo esteja nos eixos para depois arranjar um emprego estão a chegar ao fim. Mas agora, com uma viagem marcada para Banguecoque e outra para Portugal, não sei o que parece chegar a uma entrevista e ir logo avisando que estou cheia de entusiasmo para começar a trabalhar mas, sabe como é, já tenho férias marcadas.
Além disso, tenho a certeza que as investigadoras do ISCTE vão sentir a minha falta quando já não responder a mais questionários e, provavelmente, deixarei de ter notícias das minhas amigas de Portugal, já que, tirando uma ou outra excepção, só sei delas se lhes perguntar como vão as coisas. Elas estão lá com as suas vidas e os seus problemas e eu estou cá com o meu unicórnio branco e algodão doce  e rios de tempo  para o Gmail e Game of Thrones (o final da terceira temporada deu cabo de mim).
"Ao contrário de ti não tenho um marido que me sustente", disseram-me no outro dia. Eu ri-me. E depois fui ao dicionário procurar o significado da palavra sustento. Eu gosto sempre de me sustentar nas palavras quando não tenho mais nada. 

Pode acontecer

23.2.16

Quando numa família de cinco quatro ficam doentes a solução é fazer um esquema de tratamentos. Pelo menos foi assim que a Bea, a resistente (ou a única que dorme num quarto que parece uma arca frigorífica e por isso consegue manter os mosquitos mais à distância), entendeu fazer.
É claro que os tratamentos para uma infecção viral, muito provavelmente causada pela picada de um mosquito  e com uma sintomatologia semelhante à do dengue, são simples: descanso, beber muita água e tomar paracetamol, enquanto se agoniza com dores insuportáveis.
Felizmente, passados três dias, esse número mágico, a vida volta ao corpo, uma pessoa consegue caminhar novamente e fica com a sensação de que vive num sítio onde podem acontecer coisas mesmo muito estranhas.
Pode acontecer de os cães a ganir e os porcos a guinchar já não nos afectarem. Ou pode acontecer ver uma mulher com duas cabeças,  na rua da mesquita, e achar perfeitamente natural (obviamente eram duas mulheres, mas só se via o corpo de uma e, por breves instantes, achei mesmo que se tratava de uma pessoa bicéfala). Ou pode acontecer sair da cama para ir comer ananás. Também pode acontecer cair um kulu e furar o telhado. Ou sair do banho e ser atacada pelas formigas minúsculas metidas no felpo da toalha. Tanto pode, que acaba mesmo por acontecer.

Desequilíbrios

15.2.16

Cheguei a casa, saí do carro e fui abrir o portão. O segurança dormia tão profundamente que nem acordou. Tenho uma certa admiração pelas pessoas que se deitam e adormecem em qualquer lado, sem se preocuparem que um pássaro lhes cague em cima, ou que uma cobra lhes rasteje pelo corpo.
Fui a correr para a casa de banho por causa de um distúrbio intestinal e fiquei a pensar (não levei o telemóvel para fazer scroll down no facebook) que não deixa de ser curioso que o meu corpo entre nesta espécie de falência quando mais cuido dele.
Faz parte do processo de limpeza, parece.
Pensar nisto, escrever isto, quotidianizar isto é aborrecido, mas as melhoras físicas e emocionais são evidentes. 
O segurança está a limpar o suor do rosto, neste momento. Tem um trabalho que talvez lhe permita jantar nos próximos dias, enquanto eu estou preocupada com o equilíbrio dos diferentes planos da existência. 
Comovo-me com o gesto mas volto rapidamente aos meus pensamentos sobre "O Erro de Descartes" que afinal já não me apetece ler, a distância a que estou de uma exposição de arte contemporânea, o "Revenant" que ainda não fui ver, porque só há uma sessão por dia, às 13h00. 
Eu diria que há aqui um claro desfasamento entre o plano mental e os outros. 
Vou comer seis colheres de sopa de iogurte grego com um punhado de framboesas.

Puzzle

10.2.16

Alguém dizia que aqui em Timor, quando as coisas correm bem, corre tudo bem, mas quando correm mal, correm mesmo muito mal. Poder-se-ia pensar que é igual a outros sítios, mas não é bem assim. A dor de cabeça que costuma ser lidar com um pequeno acidente, um mal entendido ou um problema de saúde, por exemplo, aqui pode virar uma grande tragédia.
Também me explicaram que não vale a pena tentar perceber os timorenses, que é como montar um puzzle e ele desfazer-se quando estamos quase a encaixar a última peça. Depois, é preciso montar tudo de novo, só que já não é esse mesmo puzzle, já é outro completamente diferente.
Pois bem, tivemos a oportunidade de o comprovar numa experiência menos boa e fiquei com a certeza de que estou a anos luz de conseguir juntar qualquer puzzle que seja. Terei de me conformar com a ideia de olhar para Timor como se houvesse uma cortina entre nós. 

Querido diário

5.2.16
É sexta-feira, quase hora de almoço. Daqui a pouco mais de meia hora os rapazes chegarão da escola, com as suas fardas de Carnaval, e sentar-nos-emos todos à mesa a comer sopa e arroz de tamboril (não imaginas a felicidade que é uma pessoa chegar à secção de congelados de um supermercado e encontrar tamboril e peixe espada e castanhas!)
Ontem consultei uma nutricionista pela primeira vez na minha vida. É verdade, tenho-me visto em situações muito inesperadas sem compreender exactamente como cheguei até elas. O reiki é um exemplo disso mesmo, mas não sei, ainda, como escrever sobre isso. 
A nutricionista fez-me um plano alimentar do qual excluiu o vinho e eu achei que ao jantar devia beber todo o vinho que conseguisse em jeito de despedida. Como vês sou uma pessoa muito equilibrada. 
Diz que o caminho para uma vida mais feliz passa por uma vida mais saudável. Eu acho difícil perceber como é que se pode ser feliz a comer salada sem temperos, para compensar a quantidade de azeite que a Ana pôs na sopa, mas o mundo está cheio de mistérios, parece. Ainda por cima a sopa também tem batata. Vou ter de arrumar o arroz e comer só o tamboril. Pronto,  já estou cheia de fome.
Enfim, devia estar a escrever sobre outra coisa qualquer.
Por exemplo, as crianças já têm actividades extra-curriculares: natação e judo. Ou seja, já somos desses pais normais que têm de andar com os miúdos de um lado para o outro. O que vale é que aqui é bastante normal ter-se um motorista.
E agora, neste exacto momento, lembrei-me de um post que escrevi no outro dia, isto é, há mais de três anos, sobre a vida que eu quero. Tu queres ver?
Entretanto, vi que os filmes "The Revenent" e "The Danish Girl" estão na salas de cinema e fiquei contente. Não tanto como no supermercado, mas ainda assim contente.

Questionário

29.1.16
Em Janeiro, mesmo que no final, ainda faz sentido olhar para 2015, certo? É que vi este questionário no Menina Limão e apeteceu-me muito copiá-lo.


1. O que é que fizeste em 2015 que nunca tinhas feito antes?
Emigrei.

2. Cumpriste as resoluções de ano novo, e vais fazer mais no próximo ano?
Já não me lembro quais eram. Para este ano pedi três desejos, como se 2016 fosse um Génio da Lâmpada.

3. Alguma das tuas pessoas teve um bebé?
Sim, a M. teve gémeos.

4. Alguma das tuas pessoas morreu?
Não.

5. Que países visitaste?
Singapura, brevemente, e Timor-Leste.

6. O que gostavas de ter em 2016 que não tiveste em 2015?
Uma profissão.

7. Que data de 2015 vai ficar marcada na tua memória, e porquê.
28 de Agosto, o dia em que me despedi da minha família.

8. Qual foi a tua maior conquista do ano?
Levar a minha mãe à psiquiatra.

9. E o maior fracasso?
Uma colaboração que não chegou a ser.

10. Tiveste alguma doença ou ferimento?
Tive uma má experiência com o DIU.

11. Qual foi a melhor compra que fizeste?
Um vestido preto da Máximo Dutti por 3€, na Humana.

12. Houve alguém cujo comportamento mereça ser celebrado?
Assim de repente não estou a ver, mas houve de certeza.

13. Houve alguém cujo comportamento te tenha desiludido?
Sim.

14. No que gastaste a maior parte do teu dinheiro?
Sem contar com as contas da casa, da escola e da comida, gastei mais em vinho.

15. O que te deixou mesmo, mesmo, mesmo animada?
Ver a Ana Cássia Rebelo no Ípsilon
A perspectiva de uma nova vida
O artigo sobre Timor-Leste que escrevi para a FUGAS

16. Que canção de 2015 vais lembrar para sempre?
Talvez "Love Songs for Robots", do Patrick Watson

17. Em comparação com a mesma altura do ano passado estás:
      a) Mais triste ou mais feliz?
Mais feliz, talvez.
      b) Mais magra ou mais gorda?
Mais gorda.
      c) Mais rica ou mais pobre?
Mais rica numas coisas, mais pobre noutras.

18. Que coisa gostavas de ter feito mais?
Gostava de me ter divertido mais.

19. Que coisa gostavas de ter feito menos?
Desesperado.

20. Como vai ser/foi o teu Natal?
Diferente dos últimos Natais.

21. Com quem passaste mais tempo ao telefone?
Com o Jaime.

22. Apaixonaste-te em 2015?
Hmmm, reapaixonei-me uma ou outra vez.

23. Quantas one-nite-stands?
Pffff

24. Qual foi a série preferida das que viste em 2015?
Borgen.

25. Há alguém que detestes hoje, e que não detestavas há um ano?
Não.

26. Qual foi o melhor livro que leste em 2015?
Melhor, tipo, qual o que gostei mais? Não sei se um de contos de Dorothy Parker, ou o "Fiesta" de Hemingway.

27. Qual foi a grande descoberta musical de 2015?
"Budapeste" dos Mão Morta, na versão da miudagem aqui de casa.

28. O que é que desejaste e tiveste?
Que não nos acontecesse nada de muito mau.

29. O que é que desejaste e não tiveste?
Sentir-me bem comigo.

30. Qual foi o filme que mais gostaste dos que viste em 2015?
O País das Maravilhas, de Alice Rohrwacher, mas eu fui tão pouco ao cinema!

31. O que é que fizeste no teu aniversário, e quantos anos fizeste?
Fiz 42 anos. Fui beber um copo de vinho tinto (ok, vários) ao Aduela com os amigos e dormir num Hotel. Sozinha.

32. Diz uma coisa que teria feito o teu ano muito melhor.
Uma viagem. Ah, espera, fiz isso de certa forma. Então, um bom emprego.

33. Como é que descreverias o teu estilo (roupa, etc) de 2015?
Eu não tenho estilo algum. Sou, talvez, a pessoa menos estilosa do mundo.

34. O que é que te manteve sã?
As crianças, o que tem piada, porque de certa forma são também elas que me dão cabo da sanidade.

35. De que figura pública/celebridade gostaste mais este ano?
Não é costume eu gostar de figuras públicas.

36. Que questão política mexeu mais contigo?
As de toda a gente: Os refugiados, a Grécia e o acordo à esquerda, em Portugal.

37. De quem tiveste mais saudades?
 De estar com os meus amigos.

38. Quem é a melhor pessoa que conheceste este ano?
Não sei.

39. Uma boa lição de vida que 2015 deu.
Ainda estou à espera de perceber. 2015 revelou-se bastante enigmático.

40. Um verso de uma canção que seja um bom resumo de 2015.
"Life is it, life is it, it's where it's at
It's getting skinny, getting fat
It's falling deep into a love
it's getting crushed just like abut
Life there's no love, it's getting beat into the ground
It's getting lost and getting found
to growing up and getting round
It's feeling silence, feeling sound
It's feeling lonely, feeling full
It's feeling oh so beautiful!
Yes!"

(Edward Sharp and the Magnetic Zeros, "Life is Hard")

Eu sei viver, só não sei viver todos os dias

28.1.16
Não é que eu esteja sem saber o que fazer todos os dias da minha vida. Não, nada disso. Às vezes, muitas até, eu sei tirar partido desta nova realidade. Como quando abro maracujás, em Janeiro, e os sorvo deliciada, por exemplo. Ou quando como arroz vermelho. Já sei a que horas e em que sítios posso encontrar os carrinhos de mão cheios de pequenos sacos com arroz, milho, feijão e outras leguminosas.
Também acho muita piada estar a aprender tétum com o Cris, apesar de nem sempre me apetecer ter aulas às 8h15 da manhã.
E sei como aproveitar a nova geografia para fazer cenas que nunca me tinham ocorrido na vida: um retiro de Reiki, escolher o destino da próxima viagem a partir de Kuala Lumpur e ter como exercício semanal a subida ao Cristo Rei de uma ilha no Índico.

Num país novo

26.1.16

Às vezes pergunto-me o que vim aqui fazer, aqui, a Timor-Leste, porque nem sempre sei, ou nem sempre me lembro. Vá, já passaram quase cinco meses, posso começar a questionar-me, certo?
Estávamos fartos, como tanta gente da nossa geração, da falta de perspectivas. Fartos de trabalhar para pagar as contas, as nossas e as dos bancos. Fartos da nossa vida de classe média. Queríamos mudar. Precisávamos de uma vida diferente. Foi isso, acho. 
Viemos para um país semelhante, em muitas coisas, a Portugal há 30 anos, só que em vez da CEE, há o Fundo Petrolífero. 
E é estranho isto de se viver num tempo que não é linear (há uns posts dizia que vivia no futuro, daqui a nada estou a perceber um dos maiores mistérios da Física). Mais estranho ainda é viver "melhor" aqui, portanto, em Portugal há 30 anos, do que em Lisboa há seis meses. Quando digo melhor, quero dizer com mais dinheiro e isso vale o que vale para cada um.
E tal como há 30 anos, tenho medo do escuro e dos monstros que a noite costuma trazer. Acho os meus filhos incrivelmente corajosos. Afugentam pesadelos como se fossem bolas de sabão. Já eu sou capaz de transformar bolas de sabão em pesadelos.
Às vezes acordo com o som de uns chinelos a arrastar no alcatrão e um chilreio desconhecido, e lembro-me: estou num país novo. E não sei o que fazer com isso.  

Há sensações universais 12

24.1.16
«Há, de facto, uma canção que poderia ter esse título [O Dia Conseguido]. É Van Morrison quem a canta (...) pescar nas montanhas, retomar a viagem, comprar o jornal de domingo, retomar a viagem, uma pequena refeição, retomar a viagem, o brilho do teu cabelo, a chegada ao anoitecer e o último verso que é qualquer coisa como: "Porque é que os dias não podem todos ser como este"»

Peter Handke, Ensaio sobre o Dia Conseguido, Trad. Maria Alexandra Ambrósio Lopes, Difel, 1994

A rapariga da sombrinha

21.1.16


Praia do Cristo Rei (já não mostrava uma praia há muito tempo)

Cruzei-me com a rapariga que descia do Cristo Rei com um guarda-chuva para se proteger do sol. Talvez fosse uma sombrinha, afinal. Na verdade não sei qual a diferença, a não ser a função.
A rapariga chinesa era, entre as várias dezenas de chineses que passeavam por ali naquele dia, a única com uma sombrinha e por isso chamou-me a atenção. Por isso e porque estava demasiado vestida para este calor, com umas leggings pretas debaixo de um macacão.
Também reparei no rapaz com uma camisa e uns calções amarelos com palmeiras verdes e a máquina fotográfica pendurada no pescoço. Era o retrato perfeito do turista. Tão perfeito que só podia ser uma ironia.
Lembrei-me que um dia destes, quando não houver crocodilos no mar e os resorts começarem a crescer como cogumelos, Timor vai estar cheio de turistas. "Antes crocodilos que turistas, essa espécie do demo", disse-me uma amiga. É engraçado como gostamos tão pouco de turistas, mesmo quando somos um deles. Ficamos chateados por ter de esperar tanto tempo para subir à Sagrada Família e maldizemos a quantidade de anormais que querem ir ao Museu d 'Orsay de todas as vezes que lá tentamos entrar. Como se nós próprios não fossemos um deles. 
Estava já na praia e via ao longe, depois das rochas que a maré baixa descobriu, um outro grupo de chineses que nadava. Do lado de cá da rochas, estavam alguns timorenses e os meus filhos. 
A rapariga da sombrinha chegou e ficou parada no meio do areal. E sem mais nem menos veio-me à memória o filme do Philipe Seymour Hoffman, que retrata tão bem isto de andarmos todos à procura de agradar alguém.

Estranhos prazeres

15.1.16

Depois de um dos rapazes ter feito xixi na nossa cama, já não sei qual deles, porque nessa noite apareceram os dois no nosso quarto, levei o colchão lá para fora para apanhar sol.
[Sinto um estranho prazer a arejar colchões e a corar roupa branca, no pátio]
Quando o trouxe para dentro, e como estava com dificuldades em colocá-lo no sítio, deixei-o momentaneamente no chão da sala. É claro que demorou 30 segundos a ser ocupado por dois seres pulantes que viram ali um belo trampolim. Pus uma música e decidi pular com eles. Saltámos, dançámos e rimo-nos muito.
[Sinto um estranho prazer a dançar com o corpo todo]
Pensei: Porque não faço isto mais vezes? E depois lembrei-me que a Ana, a nossa empregada, tinha saído mais cedo e por isso senti-me mais à vontade. Ter um empregada é mais limitador, do que libertador.

Adenda: alguém me disse que não percebia o que é que a foto tinha a ver com o texto. Ora, eu acho que tem tudo a ver, porque os macacos parecem-me os seres que vivem mais próximos do hedonismo. Além disso, tinha de usar o meu primeiro GIF em algum lado.

Taxi

14.1.16
Já falei algumas vezes do meu ódio de estimação por taxistas. Costumava pensar sempre duas vezes antes de me meter dentro de um taxi, tanto no Porto, como em Lisboa, porque calhavam-me em sorte os mais mal humorados, furiosos, cansados e deprimidos condutores. Havia excepções, claro, mas quando vinha um senhor simpático o taxi avariava.
Depois, vim para Díli e, bem, não sei como descrever a experiência de andar de taxi, por aqui. Primeiro quase todos os taxistas fumam dentro do carro e, obviamente, nem lhes ocorre perguntar se incomoda. Depois, conduzem no máximo a 20 quilómetros à hora para poupar gasolina mas, bom, antes devagar do que depressa. E a música... já perceberam, certo? Pois, está sempre no máximo. Ah, e os taxis, quase todos prontinhos para ir para a sucata, andam enfeitados das mais variadas formas. O de hoje tinha a parte da frente cheia de peluches, por exemplo.
Por isso, fico sempre boquiaberta assim que entro num taxi, aqui, sobretudo quando, depois do espanto, dou por mim a sentir-me alegre. Ao ponto de cantarolar as músicas mais estranhas, como a do "Burrito" (E quando quero ver aquele amor meu/ Eu pego no burrito e lá vou eu), ou uma versão do "Wherever you go, whatever you do", com uns sussurros, não sei se em mandarim, ou bahasa, pelo meio.
Se calhar eu não gosto do bom gosto, como a Adriana Calcanhoto.

O futuro

12.1.16

Ilustração de Reginaldo Prandi no livro "Ifá, o adivinho"

Nunca o futuro me pareceu uma coisa tão irreal e distante como agora. Até aqui eu conseguia imaginar o que seria o meu futuro. Tinha até vários caminhos alternativos: Seria uma jornalista como a Martha Gelhorn e conheceria o mundo. Ou trabalharia na redacção de um jornal e teria uns quantos filhos de um homem inteligente. Ou teria uma casa sustentável no campo, com vacas, árvores de fruto e um estúdio para escrever e fazer potes de barro. Em qualquer dos casos teria um apartamento na cidade e amigos interessantes. E escreveria.
É claro que nunca fui como a Martha Gelhorn e, apesar de ter três filhos de dois homens inteligentes, o trabalho nas redacções por onde passei não foi bem o que tinha imaginado. 
Também não tenho a casa sustentável nem as vacas, mas tenho árvores de fruto e uma máquina de costura. 
Ou seja, eu estou já no futuro, por isso não sei mais o que esperar, a não ser que as crianças cresçam saudáveis e felizes. Será bonito, espero eu, ver que adultos se tornarão, mas isso será a vida deles e não a minha.
Depois, li um artigo sobre o mundo nos próximo 20 anos e fiquei a pensar que, realmente, devo ter muito pouco de futurista. É que, apesar de não saber o que esperar do meu próprio futuro, estou convencida que nos próximos 20 anos, por muito que a tecnologia continue a evoluir, vai ser difícil corrigir os erros que cometemos até agora. É, acho que nos próximos 20 anos a humanidade devia olhar para trás, basicamente. O futuro, portanto, está no passado. Sempre esteve (acho que nem eu percebo exactamente o que estou a dizer).