Uma mãe é a antítese do eu criador*

30.7.21

Quando, há uns anos, ouvi falar sobre mães artistas comecei a pensar em escritoras mães e a tentar encontrar alguma relação entre a escrita e a maternidade. A tentação é sempre pensar em mulheres escritoras, mas ser mulher e ser mãe são coisas diferentes, obviamente. Só que para encontrar mães escritoras temos de procurar mulheres escritoras, como já o fiz em tempos.

A minha busca tornou-se um problema, porque a maternidade nunca foi, tenho ideia, um tema muito presente na literatura, quando muito fez parte das artes plásticas, sobretudo da arte sacra. Lembro-me de na altura estar intrigada com Doris Lessing, como escritora e como mãe e, desde sempre, com Marguerite Duras.

Mas como o mundo é redondo (ou seja, o planeta Terra, que é o mundo que conhecemos e, ainda assim, bastante mal) acabei por encontrar aquilo que procurava ao ler sobre ''La Mejor Madre del Mundo'' de Luria Labari: “Sou uma mãe amadora e já estou acabada: escrevo pelas costas das minhas filhas, como se elas não fossem o suficiente (...). As artistas com talento são filhas, sempre filhas de suas mães, por mais que tenham descendência. As boas escritoras escrevem sobre serem filhas ou sobre qualquer assunto onde seu ponto de vista possa ser o centro do mundo (…). Já uma mãe é o satélite de outro ser mais importante. Uma mãe é a antítese do eu criador”.

*Ou a desculpa perfeita para não criar


Fogo e água

22.7.21

Era mais fácil quando o meu mundo era a minha casa, os meus dias giravam à volta das crianças e os assuntos que prendiam a minha atenção eram os mesmos de toda a gente. Eu disse que era mais fácil, quando sei que não, não era. Mas antes, parece agora, era tudo melhor. 

A diferença, talvez, era partilhar da opinião, sobre vários assuntos, de pessoas que admirava. Nesta altura parece-me que isso não acontece tão facilmente.  Não consigo ficar indignada com as pessoas que não sabem usar máscaras, mas não me passa pela cabeça não usar quando necessário/obrigatório; não me apetece dizer muito bem do processo de vacinação exemplar (em Aver-o-Mar, Póvoa de Varzim), quando o que me marcou foi sentir que naquele cenário parecíamos cobaias de uma experiência estatal; Ou perguntar-me a razão de não sabermos o que come Berardo na cadeia (ainda está preso?). E os testes, ou certificados para entrarmos em restaurantes? Também podia só estar perturbada com o tempo que a EDP me está a fazer perder, com uma questão básica, proporcional ao tempo que a médica de família não perde comigo.

Mas, neste preciso momento, só me apetece ficar aqui no sofá a pensar em bolas de sabão e fogo de artifício. O fogo e a água transformados em poesia. Podíamos fazer isso com a maior parte da nossa vida, transformá-la em poesia, não podíamos?

As crianças é que sabem

1.7.21

Os miúdos inventaram um jogo. Todos os dias, ao jantar, temos de pontuar o nosso dia de um a dez e explicar porquê. Escusado será dizer que os adultos andam sempre ali pelo cinco, seis e eles sempre pelo oito, nove. Tão bom ser criança, não é? O curioso não é eles terem sempre dias bons, é eles partirem de cima. Os dias têm tudo para valer o dez, mas depois há uma ou outra coisinha que estraga isso. Nós é ao contrário, partimos sempre do um, o dia só pode ter sido uma merda para estarmos tão cansados, contrariados e mal dispostos, só quando começamos a pensar no que correu bem é que percebemos que temos razões para começar a subir na pontuação. 

Se eu fizesse como eles, o meu dia ontem tinha sido um 9,5, porque consegui fazer tudo o que era preciso, apesar da falta de motivação e aborrecimento. Não é tanto olhar para o copo meio cheio, ou meio vazio, é mais bebê-lo.

Dia-a-dia

26.6.21

Por falar em vida real, ultimamente não me sai da cabeça um episódio da Quinta Dimensão. Já perdi horas à procura dele numa lista de episódios, mas não encontrei. O mais provável é que fosse da outra série, Os Limites do Terror.

Nesse episódio os tripulantes de uma nave espacial estavam a servir de hospedeiros a um ser alienígena. Vemos os corpos humanos embrulhados numa espécie de casulo e um dos tripulantes a dar conta do que está a acontecer e a tentar trazer a nave de volta para Terra. Depois de muitas peripécias e analepses na história, percebemos que para os humanos serem melhores hospedeiros recebem do seu parasita doses elevadas de dopamina e outras substâncias responsáveis pelo bem-estar. Por isso, nenhum deles tem verdadeira noção do que lhes está a acontecer, designadamente o tripulante que durante todo o filme está a tentar salvar a nave e que afinal, ficamos a saber no fim, é um dos hospedeiros como os restantes. Estão todos presos em casulos e cada qual está a viver a sua mentira. 

Que é o que me parece, muitas vezes, que acontece à minha volta. Toda a gente a viver as suas mentiras, sem se importarem com o facto de estarmos todos condenados. 

Medida imprópria

24.6.21

Gosto de ler diários. É um registo que me agrada mesmo muito (algumas pessoas devem lembrar-se da minha obsessão com o diário da Virginia Woolf) por me interessar a vida real das pessoas, seja lá o que isso for. De tal forma que dei por mim a gostar de ler o meu próprio diário, o que mantive durante uns tempos na versão papel.

segunda-feira, 2 de Julho 2018

''As crianças estão de férias. É impressionante o quanto tempo nos ocupam. Não que faça alguma coisa que interesse quando elas estão na escola. Os meus níveis de auto-estima estão novamente abaixo do razoável. Sendo a razoabilidade uma medida imprória no que toca ao amor, mesmo o amor próprio. Amanhã vamos para a praia.''

Fomos felizes

31.5.21

As pessoas podem escolher ser felizes, ou cumpridoras. Claro que há quem seja feliz a cumprir com as suas obrigações, mas não confundamos realização com felicidade.

Perante a impossibilidade de ser feliz, escolho fazer a minha a parte para manter a engrenagem oleada. Não me traz felicidade, mas a sensação de dever cumprido é parecida com felicidade, não é? Depois, tiramos fotografias e contamos histórias e podemos dizer que fomos felizes. 

Sororidade

20.5.21

Por motivos que não interessam, ou por não me apetecer partilhar, fui parar à urgência de um hospital, como acompanhante. Lá dentro estavam dezenas e dezenas e dezenas de doentes sozinhos, cada qual a gerir as suas dores, medos e angústias, por isso deduzi que no meu caso devia ser necessário entrar para ir comunicando o que tinha acontecido aos diferentes especialistas que estavam a acompanhar o caso.

Não é fácil estar numa urgência hospitalar carregada de preocupações e ver tantas pessoas deitadas em macas e outras tantas em cadeiras de rodas, umas a gemer, outras a dormitar e quase todas com aquela interrogação - O que Vai Ser de Mim? - nos olhos. É impossível não pensar como será estar na pele daqueles profissionais de saúde a gerir tanta coisa ao mesmo tempo - ''Não temos especialistas de neurologia disponíveis, hoje tivemos imensos casos de AVC''.

Escusado será dizer que a faixa etária daquele grupo de pessoas devia estar acima dos 70 anos, por isso é natural que tenha reparado na Isabel. Não sei se era da minha idade, ou mais nova. Estava deitada numa maca e levantava-se muitas vezes, o que fazia com que a bata descesse pelo ombro e ficasse com uma mama de fora. Havia sempre alguém que se levantava e ia perguntar-lhe o que se passava e compunha-lhe a bata. Parecia-me tão carregado de carinho aquele gesto vindo de outras mulheres mais velhas, a ajeitar a bata para a rapariga não ficar descomposta. Logo eu que não sou dada a composturas! Mas não há situação de maior fragilidade do que aquela, a do doente à mercê dos outros. Ela não respondia a perguntas, quase não falava, só dizia ''Não aguento mais, não aguento mais''.

O Sr. João, deitado na maca com a bata meio vestida e de fralda, também queria levantar-se e sair dali. Tentou algumas vezes. Ninguém lhe compôs a bata. Como se diz sororidade no masculino?

Decorrer do ano

8.4.21


No dia em que abriram as esplanadas festejei os meus 48 anos numa mesa na praia, a comer goraz e percebes e a beber vinho toda a tarde (ali na foto ainda estava na sangria). 

A meio da noite, acordei com o barulho dos meus batimentos cardíacos e sentei-me a tentar respirar. Quando consegui normalizar a respiração e acalmar o coração voltei a deitar-me e tentei perceber de onde viria tamanha aflição. ''Será por fazer anos?'', pensei. É claro que os pensamentos nunca se apresentam assim, com um encadeamento lógico, em vez disso atabalhoam-se e uma pessoa já não sabe se está a pensar o mesmo pensamento, ou vários diferentes ao mesmo tempo.

Bom, o que pensei, no meio de tudo, foi: ''costuma-se dizer que a nossa vida sofre uma mudança de sete em sete anos, será que estou a começar um novo ciclo?'' Depois, comecei a debitar a tabuada dos sete e apercebi-me que não precisava de me preocupar, porque 7x7=49 (estava a meio da noite e tinha passado a tarde toda a beber, ok?).

Portanto, a mudança de ciclo, a acontecer, será só para o ano. Mas, depois, pus-me a rever todas as mudanças que tinham ocorrido na minha vida nos anos múltiplos de sete. Então, aos sete mudei de escola, porque a professora da primeira classe foi colocada noutra e convenceu alguns alunos, ou os pais deles, a mudarem-se com ela. Aos 14 interrompi os estudos e fui trabalhar para uma fábrica, porque o meu pai tinha morrido no ano precedente. Aos 21 entrei na faculdade, mas já tinha tentado antes, sem sucesso, por isso o ano anterior serviu para juntar dinheiro e pagar uma universidade privada. Aos 28 fui mãe pela primeira vez, mas engravidei com 27 anos. Aos 35 fui viver com o Jaime, mas separei-me, bom também me separei nesse ano, mas toda a gente sabe que os divórcios não acontecem de um momento para o outro. Aos 42 fui viver para Timor-Leste, mas tinha lá estado de férias, adivinham quando? No ano anterior, claro. 

Portanto, aguardo com ansiedade (e ataques pelo meio) o decorrer deste ano.

Metamorfose

29.3.21

Constatações ao 11.⁰ dia de isolamento profilático:

1- A minha mãe está chocada com a quantidade de papel higiénico que gastamos. Eu também, na verdade. Afinal, as pessoas que acabaram com o o stock de papel higiénico no início disto tudo sabiam o que estavam a fazer.

2-Nestes 11 dias só encomendámos duas refeições, um cozido à portuguesa para o almoço de domingo e McDonald's (teve de ser).

3- Mas para isso, para cozinhar tantas refeições em casa, contamos com a boa vontade de umas quantas pessoas, a minha mãe para as compras do supermercado, uma amiga para o talho, a querida vizinha que nos traz o pão todos os dias e a senhora da frutaria que vem entregar os legumes, fruta e ovos caseiros.

4- Lembro-me muitas vezes do livro A Metamorfose, porque acho que me está a acontecer o mesmo. Quer dizer, não pareço um insecto, acho eu, mas é como se o meu corpo estivesse desligado do cérebro, a ganhar vida própria e a moldar-se em diferentes formas. A minha cabeça, por exemplo, é tal e qual um S.

A apontar expressões das crianças desde 2006

25.3.21

Estou em casa com os miúdos desde que começou o confinamento, ou seja, há dois meses, por isso não sinto que o isolamento profilático tenha alterado a minha vida, apesar de agora ter o Jaime em casa todo o dia, não me limitar a beber ao jantar (qualquer relação causa e efeito há-de ser forçada, quero acreditar) e não sair para caminhar.

Tirando o teste positivo do Nicolau, a restante família testou negativo para o SARS-CoV-2 e não deixa de ser estranho estarmos todos fechados em casa, aparentemente, de boa saúde. Mas não me esqueço dos nervos miúdinhos a abrir o pdf na aplicação do hospital para ver o resultado. Não me esqueço da alegria ao sentir, diariamente, a temperatura normal na testa do Nicolau.  Não me esqueço das mortes provocadas pelo vírus. Não me esqueço do alívio que foi enterrar a minha avó sem Covid no caixão.

Entretanto, apesar de me parecer tudo igual aos últimos dois meses, pus-me a abrir caixas guardadas em sítios recônditos. E, além de centenas de cartas manuscritas; cartões de visita de restaurantes, médicos e pessoas de quem não me lembro; bilhetes de avião e contas de cafés de Paris; o bilhete do festival de Vilar de Mouros, de 1996, e do comboio que apanhei para regressar ao Porto, encontrei vários cadernos e agendas com apontamentos.

E estas viagens no tempo são sempre muito curiosas, mas não vou discorrer sobre isso, agora. Das várias coisas que achei piada, retive duas definições da Bea que, na altura, decidi apontar: "cabelo apalpado" e "chão cremeloso".


Falta de ar

22.3.21


Faz hoje um ano que brindámos com os vizinhos e nessa altura não me ocorreu que dali a um ano ainda poderíamos estar em confinamento e muito menos que o vírus se fizesse convidado para entrar aqui em casa.

É isso mesmo. Quando a Primavera começou a dar o ar da sua graça e a primeira fase do desconfinamento teve início, ligaram da escola a dizer que tínhamos de ir buscar o Nicolau, porque havia um caso positivo na turma. No dia seguinte chegaram os códigos para marcar o teste e ontem ligaram a dar a resultado: Positivo.

Há tanto tempo a lidar com esta pandemia, a saber de tantos casos e mesmo assim a não conseguir deixar de ficar chocada com uma notícia destas. Agora não sei se esta falta de ar é Covid, ou ansiedade. 

Na dúvida, Beba-se

19.3.21

Estava a vaguear perto da estante e cruzei-me com o livro Amor e Ódio. Fiquei espantada por não me lembrar que o tinha - acontece-me cada vez mais, isso e não me lembrar do que li - e abri-o numa página à sorte: 

L

''Je suis certain que la journée ne sera pas comme elle a comencé, parce que dés que le soleil tombe, je bois, dizia Gainsbourg à Rock & Folk em Abril de 1979. Este gato-bravo opera uma ligeira distorção da Katalepsis estóica. Na dúvida não suspende o juízo: bebe.

Pode não parecer, mas saber como vamos acabar o dia devia ser motivo de grande ansiedade. Um erro de percepção faz com que os humanos se preocupem apenas com o dia seguinte. Julgam que o que estão a viver está garantido, apenas os interessando o que ainda não respiraram. Mal.

O nosso dia é um reino emprestado e devemos cuidar dele como de um tesouro. Beber ao começo da noite, como Gainsbourg, pode ser uma homenagem, mas também uma abdicação. Na dúvida, beba-se.''


Ironias

15.3.21
Recomeçou o ritual de acordar e ir para a escola. Ir mesmo, vestir e sair de casa em vez de pôr um casaco por cima do pijama e ir para outro quarto. Infelizmente, esse ritual só começou para o mais novo, que era precisamente o que preferia continuar em casa. O mais velho, que não vê a hora de poder voltar à escola, tem de esperar mais três semanas. Portanto, estamos metade a desconfinar e outra metade confinada. 

Ponto da situação

9.3.21

Faço parte do grupo de pessoas que viveram bem com o primeiro confinamento e que no segundo se está a passar. Não assim ao ponto de querer bater em pessoas (em muitas pessoas, pronto), ou rasgar todas as fitas autocolantes dos bancos dos jardins e marginais, mas, ainda assim, com vontade de tomar inibidores selectivos da recaptação da serotonina para ver se lavo o cabelo mais vezes e troco de roupa de vez em quando.

No mesmo dia vi os filmes Os Amantes e Histórias das Mulheres do Meu País. Curiosamente, tinha lido no dia anterior sobre o documentário da Rosanna Arquette Searching for Debra Winger e fiquei com vontade de saber mais acerca da actriz que nos pôs a chorar baba e ranho no Laços de Ternura. Porque,  como dizia Clara Queiroz no filme da Raquel Freire, as mulheres não são diferentes dos homens, mas têm uma história diferente. 

Encontrámos a Catrina abandonada e trouxemo-la para casa no dia 20 de Novembro de 2019 (acabei de confirmar com o Nicolau, que tem a data na ponta da língua), sobretudo por não termos conseguido dizer não a tantas súplicas, lágrimas e promessas. Escusado será dizer que é raro serem eles a levar a cadela à rua. Normalmente vai o Jaime de manhã e eu ao final do dia. Com o Jaime ela vai sem trela, comigo não. A ideia de ela se distrair e ser apanhada por um carro na estrada, deixa-me em pânico. O Jaime diz que ela não é parva e que obedece, mas já aconteceu estar num jardim sem trela e ela desaparecer a correr atrás de um cão e ignonar os meus chamados. Não vale a pena, não consigo evitar pensar em tudo o que pode correr mal. Com os miúdos é a mesma coisa. Ninguém imagina o que sofro cada vez que vou andar de bicicleta com eles e ainda hoje não sei como sobrevivi aos parques infantis, quando ia sozinha com os dois, ainda muito pequenos. A diferença é que com eles eu sei como é importante dar-lhes autonomia e disfarço. Suo muito e fico com vontade de vomitar, mas deixo andar, porque é preciso. Bom, menos quando me parece que estão quase a cair de precipícios e aí guincho que nem uma louca. Aconteceu nas Fisgas do Ermelo, no Caramulinho e no Miradouro do Cervo, só para dar alguns exemplos. Com a cadela não vejo necessidade de stressar, vai de trela, não tenho nada para lhe ensinar. 

Estamos todos em contagem decrescente para saber se as aulas presenciais recomeçam para a semana. Há uma vaga hipótese de as escolas abrirem para o ensino básico, além das creches e pré-escolar. Continuo admirada com a resilência de professores e alunos, mas não deixa de ser óbvio que isto é muito mau para todos.

Todos os meus planos de tentar ter uma alimentação saudável e organizar cenas foram por água abaixo.

Às vezes sonho que estou no estrangeiro, no meio de pessoas sem máscara. Um dia estava numa rua de Dehli com milhares de pessoas a respirarem umas para cima das outras, no outro a beber copos em Tóquio (nunca estive em nenhuma destas cidades).

Jardim do Morro

25.2.21

Diálogo hipotético entre mim e a minha mãe ao 42.º dia de confinamento: 

Mãe - Não, nunca penses nisso, eu não tenho essa vontade comigo. Eu não sou capaz de me matar.

Filha - Mas já pensaste nisso.

Mãe - Não, isso que estás a pensar não foi bem assim. Nós saímos de casa para ir à missa da Misericórdia.

Filha -  E foi só na camioneta que decidiste comprar um bilhete sem destino?

Mãe - Não sei, acho que sim. A minha ideia era ir ter com a Celeste e mostrar-lhe os meus três filhos para ela ver o que estava a destruir.

Filha - Ela também tinha dois filhos, devia saber.

Mãe - Sim, mas era uma miúda. Tinha sido mãe com 16 anos. Eu estava consumida pelos ciúmes, que queres? Mas nunca pensei matar-me. Só quando estávamos a atravessar a ponte D. Luís é que me ocorreu que podia atirar-me com vocês. Mas fazia como? atirava um de cada vez e depois eu?

Filha- Mas, já que estávamos no Porto, não fomos à casa da Celeste, porquê?

Mãe - Porque antes de ir apanhar o Taxi para casa dela, vocês viram um parque logo a seguir à ponte (jardim do Morro) e eu não consegui tirar-vos de lá. Estavam tão felizes! adormeci no banco e só acordei quando me vieram dizer que tinham fome.

Filha - Tínhamos quantos anos? 

Mãe - Ora bem, o teu irmão mais novo ainda não tinha nascido, por isso devias ter 9, a tua irmã 8 e o teu irmão ia fazer 6. Mas eles dizem que se lembram desse dia como um passeio muito feliz!

Filha - Sim, eu também. Achei estranho mas gostei muito desse dia. 

Pequenas coisas

19.2.21

Sou sempre a última a sair da cama. Ouço o Nicolau nas aulas, o Isaac a acordar ruidosamente (tal como continuará pelo dia fora), o Jaime na cozinha a fazer sumo e café, ou a tirar a louça da máquina, ruidosamente, e penso no que tenho para fazer. Quando acontece, como hoje, de ter de ir a algum sítio, neste caso ao dentista, significa que tenho de lavar o cabelo e pensar no que vestir. E assim, ir ao dentista, uma consulta só para confirmar que está tudo bem, passa a ser a coisa mais importante que tens para fazer. E já que te vestiste e lavaste o cabelo passas no teu trabalho, a caminho de casa, e ajudas a fazer reposição de stock na vinharia, consideras lavar os vidros da montra, mas vai chover no fim-de-semana, é melhor deixar para depois, e confirmas encomendas. Depois guardas umas wafer da Paupério para os miúdos e uma garrafa de vinho para ti e regressas a casa.

Mas, normalmente, quando acordo e penso no que tenho para fazer são só pequenas coisas - as refeições, talvez secar roupa no aquecedor, ou na lavandaria, fazer uma caminhada, mandar mensagem à Catarina por causa da psicóloga e estar aqui em casa para o que acontecer. Claro que há a humidade dos tectos para lavar, o site para actualizar, os TPC dos miúdos para controlar e mil coisas para ler e escrever, mas isso não é urgente. 

E é urgente o quê, afinal? Viro-me para o outro lado e penso no poema de Eugénio de Andrade, mas não sei de cor. 

Desculpas

13.2.21


Como quase todos os pais não consigo deixar de estar preocupada com o tempo que os meus filhos passam em frente a um ecrã, sem ser para assistir às aulas. E se por um lado me parece justo que nos intervalos joguem com os amigos, ainda que virtualmente, por outro fico em estado de choque quando ouço o mais novo a pedir à Siri da Google para contar uma piada e a perguntar-lhe se está feliz.

Apesar de achar que a geração digital não está perdida e que, muito provavelmente, os humanos desenvolverão umas competências e perderão outras, tentámos adiar ao máximo que eles usassem dispositivos tecnológicos, mas tenho a certeza que teria sido melhor adiar muito mais. Porque, sempre que os vejo na praia a brincar, ou a caminhar na serra, tenho a certeza que essa é sempre a melhor forma de passar o tempo.

Mas, por estes dias, estamos ainda mais fechados em casa porque, além da chuva, um tem aulas de manhã e outro tem aulas de tarde. Bem tento que leiam, sem sucesso, e tento convencer-me que ainda estão a tempo de descobrir o grande prazer da leitura, mesmo sabendo que é pouco provavél que esta seja uma geração leitora. Mas, depois leio sobre Platão considerar, no século IV a.C., que a escrita destruia a memória - «Se os homens aprenderem a escrever, tal implementará o esquecimento das suas almas; deixarão de exercitar a memória, pois passarão a depender do que está escrito»*- e quando olho para tudo o que a humanidade conseguiu fazer nos séculos seguintes, sossego. 


*Uma História da Leitura, Alberto Manguel, Editorial Presença, 1998

Amar demais

10.2.21

Eu acho que sei o que ela sente, porque já tive aquela idade, porque me identifico com as inseguranças, a angústia e a arrogância das escolhas que ninguém compreende. Mas eu não sou ela, lembram-me muitas vezes. Mas a empatia é precisamente isso, pôrmo-nos no lugar do outro, digo. E estar no lugar do outro não é olhar para o que se passa com os nossos olhos, é com os olhos desse outro, ouvi. 

Certo. Não posso ser eu com os olhos dela, nem ela com os meus olhos; não pode ser o meu coração no peito dela, nem o dela a misturar-se com o meu, como quando batiam juntos. Não? 

Amar demais é pior para quem ama, ou para quem é amado?

De ressaca

8.2.21
Evito escrever alcoolizada e quando o faço tenho em conta, ou tento, aquela máxima do Hemingway de escrever bêbeda e editar sóbria, mas ontem não só escrevi um post embriagada, como o editei e partilhei no facebook. Um telemóvel nas mãos de uma bêbeda é um perigo, que o digam as minhas amigas que levam comigo no whatsapp!
Bom, mas hoje é segunda-feira, dia habitual de ressaca, e as crianças estão na escola. Em casa, mas na escola. Quer dizer, uma delas estás em casa, casa, porque as aulas já terminaram. E eu não sei se ainda são efeitos dos exageros de ontem, mas não consigo deixar de ficar impressionada com a forma como professores e alunos fazem, aparentemente, isto funcionar. 

Ter filhos é, para uma grande parte das pessoas (espero), uma escolha

7.2.21

É a primeira vez que estou a usar o telemóvel para escrever no blog, porque se não o fizer agora sei que, muito provavelmente, não vou ligar o computador para o fazer. 

A sério que foi preciso o teletrabalho para perceberem quanto do vosso tempo dedicam a ser pais e a trabalhar, e a dificuldade que é conciliar isso tudo? 

É claro que podemos ser ricos (ou viver em países de terceiro mundo) e ter amas, mas quando tudo falha, i.e., o Estado, temos de ser pais. Olha que estranho, mas não foi para isso que tivemos filhos, para sermos pais deles? (Eu gostava que houvesse outro termo que dissesse respeito à maternidade e paternidade, como um só, mas na nossa língua não existe, pois não?)

Música cósmica

5.2.21







Estava a ouvir a teoria do físico Michio Kako, no documentário sobre o cérebro, em que ele dizia que a música é o único paradigma rico o suficiente para explicar a vasta diversidade de matéria que temos no Universo, correspondendo cada partícula subatómica a uma nota musical, numa pequena corda vibratória. E, sendo a física as harmonias que podemos tocar nestas cordas e a química a melodia que resulta das cordas que interagem entre si, o que é a mente de Deus (Aquele que terá criado a matéria)? - perguntou ele. 

Albert Einstein procurou esta resposta, a teoria final, toda a vida. Nunca a encontrou, porque ''a mente de Deus é a música cósmica a ressoar através do Universo'' e não há fórmulas que o expliquem. Isto já sou a subentender.

Isto tudo para dizer que a seguir a ouvir esta bela teoria recebi os horários das aulas online dos meus filhos e espero muito que os professores deles ouçam a mesma música cósmica que eu. 

Colorir

3.2.21


Eu sei que muitas pessoas, a maioria talvez, nunca acreditaram que esta pandemia viesse transformar a sociedade. Eu cheguei a pensar que sim, que era impossível não se reparar que há outras formas de encarar o trabalho, que a escola pode ser diferente, que a mobilidade nas cidades pode ser reestruturada, mas o primeiro confinamento acabou, voltou quase tudo ao normal, e veio o segundo confinamento.

E aquilo que posso concluir é que, por mais contraditório que possa parecer, é muito pior confinar no Inverno do que na Primavera. De resto, não me apetece pensar. Apetece-me dormir e colorir os desenhos do Nicolau. E mandalas. 

Duas vidas

2.2.21

Sugeri ao Jaime que visse o filme a Face do Amor e, antes de ele adormecer no sofá, perguntei se não se sentia reconfortado com a ideia de termos um sósia. Ele disse que não, nem por sombras. Já eu gosto mesmo da ideia de haver outra pessoa no mundo igual a mim, como se fosse possível vivermos duas vidas na mesma vida, como no filme do Kieslowski. E mesmo que só sejemos iguais fisicamente, gosto de a imaginar a viver na Nova Zelândia, ou algures no Golfo Pérsico. Provavelmente chama-se Ava e está, neste momento, a beber um chá à porta de casa, ou numa esplanada, a sentir o sol na cara. E a sorrir, claro.

O mesmo dia

29.1.21

Os dias sucedem iguais. Nenhum é igual ao outro, mas todos parecem o mesmo. Estou farta disto, como a maior parte das pessoas, e sei que tenho de procurar ondas de confortabilidade para não ceder ao desalento. Encontro-as na chuva miudinha na cara, em falas de filmes - ''sabes que dizem que todos nós temos um sósia algures'' -, em artigos nos jornais - ''corpos que já foram desejados, já se reproduziram, são a humanidade que ali está'' -, nas aulas de yoga e nas bolachas que o Jaime me compra, as mesmas de 2008. Também comíamos tâmaras, agora é raro. 

Temos de comprar ketchup

25.1.21

Antes do almoço estivemos a definir as tarefas de cada um para os próximos dias e quando me apercebi que ainda não passou uma semana, foi só um fim-de-semana mais um dia, ia tendo um ataque.

Mas, bom, é preciso fazer alguma coisa, sobretudo depois destes resultados eleitorias. Por isso, comecei a conversa da divisão das tarefas com um discurso inspirador, do tipo, eu achava que nós podemos ser felizes a fazer o que gostamos, a viver de acordo com os nossos ideais sem nos preocuparmos com o que os outros fazem, ou pensam, mas enganei-me. Temos de trabalhar, de nos esforçar para sermos, pelo menos, parecidos com os outros para os impedir de chegar a estes extremos. Ou seja, não vamos conseguir mudar o mundo ficando fora dele. O Jaime riu-se, mesmo que negue, e as crianças disseram que não perceberam nada. Quer dizer, o mais velho ainda perguntou se eu pensava mudar o mundo a vender vinho, o que mostra que, além de se achar um engraçadinho, estava a perceber o que eu queria dizer.  

A divisão de tarefas correu bem, não obstante, e só houve discussão quanto à escolha das refeições, mas depois de perceberem que a comida encomendada só pode vir de restaurantes que tentam sobreviver no meio desta pandemia, um escolheu sushi e o outro hambúrgueres feitos em casa - ''Mas têm de comprar ketchup'', disse.   

Figuras tristes

22.1.21

De vez em quando, nas minhas caminhadas, tento praticar marcha atlética, não faço ideia porque razão. Como hoje não estava quase ninguém no circuito habitual, por causa da chuva (sim, tenho um bocado de medo de fazer figuras tristes), lá caminhei a bambolear, sem conseguir perceber muito bem se estava a cumprir as regras. Certo é que fiquei mais de rastos do que se estivesse a correr, o que me faz acreditar que devo ter feito alguma coisa bem, ou mais ou menos, vá. 

As crianças estão muito satisfeitas com as férias inesperadas e já montaram a tenda no quarto, mas, até ver, os ecrãs levam vantagem. Suspeito que vamos ter um problema na internet nos próximos dias. Ah, não pode ser, porque assim também não podemos trabalhar. Bem, alguma coisa se há-de arranjar. 

Dancem pessoas

21.1.21

Ora bem, hoje é dia de mais um comunicado do Primeiro-ministro e, desta vez, vamos ter de ouvir que as escolas vão fechar. Eu não sei se deviam ou não fechar, ou se já deviam ter fechado há mais tempo, não tenho dados suficientes para sustentar uma opinião, sei que o ensino à distância não funcionou no primeiro confinamento e que não foram criadas condições para funcionar agora, portanto só espero que se encontre a melhor solução possível para todos. Se for preciso repetir o ano escolar, quando tudo estiver bem (arco-íris, arco-íris, arco-íris), pois que seja. Não é o fim do mundo. 

Pronto, o comunicado está feito. As medidas apresentadas parecem-me bastante sensatas, apesar de não saber como vai ser ter dois sauvages de férias, sem poderem sair de casa.

Ontem, no segundo episódio do documentário que estou a ver, falava-se sobre o papel da música e da linguagem no desenvolvimento do cérebro. Apesar de não haver forma de se saber, os especialistas concordam que a música poderá ter surgido antes da linguagem, porque activa zonas mais antigas do nosso cérebro. Também está demonstrado que quando um grupo de pessoas ouve e mexe-se ao ritmo da mesma música existe uma maior conexão entre elas. Por isso, dancem pessoas. Ponham a música nas alturas e dancem uns com os outros. 

Boa sorte

20.1.21
Já estou na fase em que não sei muito bem em que dia da semana estamos. Os miúdos sabem, por causa da escola. Acho que não tinha noção do quanto a escola rege a nossa vida, mesmo que o início do ano, para mim, tenha sido sempre mais Setembro, do que Janeiro. Bom, talvez 2020 tenha mudado isso para sempre, ou não. É impossível saber, agora, as consequências desta pandemia, sabemos que vai ficar para História, como a primeira pandemia (esperemos que única, mas é improvável) do século XXI e que a estamos a viver. Seria muito bom que cuidássemos uns dos outros. 
Boa sorte para nós todos! 

Brócolos

19.1.21

Então, o Primeiro-ministro apresentou-nos o endurecimento das regras do confinamento e, ao contrário do que esperava, não fechou as escolas. Eu sei que esta é uma medida polémica, mas dou graças ao Governo, ou a quem de direito, por ter mantido as escolas abertas. 

Não sei se foram as dores de cabeça, com o fumo que vinha das brasas a arderem lá fora e o Nicolau a perguntar, no meio da sala com a máscara posta, se a escola ia fechar, mas por um momento fiquei sem saber onde estava, em que tempo.

A esse desfasamento ajuda termos decidido fazer um churrasco para um jantar de uma segunda-feira. A entremeada estava mesmo muito boa e para ficar de consciência tranquila o acompanhamento, além de batatas cozidas, foi brócolos. Como se sabe, só a palavra ''brócolos'' (ou "bróculos") liberta nutrientes, mas eu sou a única a comê-los. 

Agora, tenho de pensar no almoço. 

Dói-me a cabeça

18.1.21
Neste confinamento decidimos cuidar de nós, descansar, alimentarmo-nos bem e beber o menos possível. Foi fácil cumprir nos primeiros três dias (eu estou em casa desde quinta-feira), mas ontem foi o descalabro. Abrimos um branco de curtimenta para acompanhar o arroz de robalo e depois foi como na maior parte dos domingos, fomos abrindo uma garrafa atrás da outra até o vinho acabar. Não vou dizer quantas garrafas bebemos, ok? 
Portanto, hoje estou com uma dor de cabeça daquelas e ainda vou ter de ouvir o nosso Primeiro-ministro, dentro de alguns minutos. 

O covid aniquilou os piolhos

17.1.21

Ontem, estava a limpar a escova, depois de pentear o cabelo, e lembrei-me que nesta casa não há piolhos há imenso tempo. Também não tenho ouvido queixas sobre essa praga. Será que o covid deu cabo dos piolhos? O distaciamento social pode não estar a combater o vírus, mas, pelos vistos, está a ajudar a combater os piolhos. 

Voltei a jogar ping pong na mesa de jantar, desta vez com entusiasmo por ter conseguido que pelo menos um deles desviasse os olhos do ecrã.

Ao serão, vimos um episódio de uma série sugerida por uma amiga e, além de ter apreciado as cenas filmadas de uma forma muito realista, constatei que os nórdicos não parecem assim tão diferente de nós, os pobres do sul da Europa.

Rascunho em branco

15.1.21

Tinha um rascunho guardado desde o dia 17 de Dezembro. Lembro-me que atirei para aqui umas ideias soltas a propósito de qualquer coisa, mas quando abri a página vi que estava em branco. Páginas em branco, tudo bem, é normal, mas rascunhos em branco? É capaz de ser como uma folha tão, mas tão rasurada de palavras que parece vazia.  

Começa hoje mais um confinamento e pensei que devia voltar ao diário, mas desta vez vou fazer de conta que ninguém vai ler.

Querido diário, 

A minha avó morreu no dia 22 de Dezembro. Pensei que quando isso acontecesse iria desatar numa verborreia, mas apeteceu-me continuar calada. A minha avó morreu, é tudo. E o tudo é a minha mãe passar a noite agarrada ao corpo morto da minha avó, até a funerária chegar na manhã seguinte, é eu continuar a ver-lhe os olhos suplicantes, quando já não falava e mal comia, e querer lembra-me dela cheia de força e de vida e só conseguir pensar que no fim morremos tão desamparados como quando nascemos. O tudo é uma vida que durou 93 anos e acabou. Acabou em casa, de mão dada com as duas filhas e não se pode desejar melhor morte, digo eu que nunca morri. 

Aconteceram outras coisas desde que não escrevo aqui, mas parece tudo envolto numa névoa. Por exemplo, pela primeira vez desde que me lembro fizemos a árvore de Natal em Novembro, como se fosse preciso antecipar tudo a ver se o ano terminava mais rápido. As festas foram também em modo forward e o Nicolau desistiu do Oboé. Num dia estava a adorar, no dia seguinte não queria voltar à escola de música por causa de um pesadelo. 

Entretanto, hoje é o primeiro dia do segundo confinamento. Os número de infectados e de mortos por causa do corona vírus são os mais elevados de sempre, mas as pessoas não estão tão assustadas como quando tudo isto começou. Já estamos habituados a viver com o vírus, que era aliás aquilo que se pretendia. As crianças podem ir à escola e as pessoas têm de trabalhar a partir de casa, mas eu devo viver numa zona do país onde o sector terciário é menos representativo. Vai ser interessante analisar alguns gráficos da pandemia daqui a uns tempos. 

Neste primeiro dia não esteve tanto frio como tem estado, mas acendi a lareira na mesma. O Nicolau não foi à escola e passámos muito tempo no sofá, ele a ver coisas no youtube e eu o documentário Deus Cérebro na TV. Também estive a ver lábios vermelhos no telemóvel, claro, e outros casos do dia. 

É impossível fazer de conta que ninguém vai ler o que estamos a escrever publicamente.