Fazer nada

17.6.16

Admiro profundamente a filosofia cosseriana da preguiça, mas devo dizer que há poucas coisas tão extenuantes como fazer nada. É certo que Cossery não tinha de interromper as suas reflexões para limpar o rabo a um filho e descascar uma laranja a outro, ou varrer os restos de comida espalhados pelo seu quarto da Saint Germain-des-Prés, mas ainda assim sabemos que essa actividade interior é, ou pode ser, muito intensa.
Por isso, muitas vezes eu desejo ter um emprego. Ter um emprego é uma coisa fantástica para se deixar de pensar. Passa-se a ter preocupações, que é diferente. Mas ter um emprego, a fazer coisas importantes, como aumentar o número de visualizações nas redes sociais, ou a testar o interesse dos consumidores em determinado produto, obriga-nos a levantar de manhã e a vestir uma roupa bonita, a fazer qualquer coisa ao cabelo e a pôr batom do cieiro. Obriga-nos a sair de casa e a deixar as crianças em algum lado, ou entregues a alguém que cuide delas. Obriga-nos a fazer coisas muito chatas e a ter reuniões insuportáveis, que depois precisamos de compensar com gin tónicos e umas férias num sítio exótico.
Basicamente, apetece-me ser como Sarag mas, felizmente, só às vezes.

Poesia, vida e morte

14.6.16

Há momentos na vida em que uma pessoa se vê a fazer coisas deveras estranhas, e nem sempre relacionadas com o consumo de álcool. Um exemplo: cantar o hino nacional, no dia 10 de Junho. Bem, isso não é o mais estranho até porque quase posso jurar que já o cantei, ou trauteei, vá, num europeu de futebol e isso, sim, é de deixar os queixos caídos (ou não, há belíssimas prosas sobre essa paixão pelo desporto rei e apesar de a minha ter sido uma pequena chama que se esvaiu, foi um bonito sentimento. Só voltei a gostar da Grécia por causa do Tsípras, mas não misturemos política e futebol, apesar de parecer tudo a mesma coisa).
Mas como eu estava a dizer, antes do parêntesis, o mais estranho não foi cantar o hino, o mais estranho foi cantá-lo com uma certa emoção e tudo. Uma pessoa emigra e é isto!
Quer dizer, na verdade o mais estranho mesmo foi cantar emocionada pela nação valente e imortal, depois de ouvir o Pátria, um hino contra o imperialismo. Mas as nações são isto: Poesia, vida e morte. Às vezes paz, às vezes guerra. Às vezes fome e sede, às vezes fartura, conforme as colheitas, ou os mercados.

Se me tivessem dito

7.6.16
Quando tiveres 43 anos vais estar a viver numa ilha distante. Lá, vão acontecer-te coisas boas e coisas menos boas, como em todo o lado. Vais descobrir que o mundo não tem tamanho, ou tem o tamanho que lhe quiseres dar. Vais tentar aprender uma língua nova. O teu filho do meio vai partir um braço, a tua filha mais velha vai pedir-te para regressar a Portugal e o pai dos teus filhos vai ter experiências menos boas no trabalho. Vais fazer coisas que nunca tinhas feito na vida, como reiki, ballet, snorkeling, todo o terreno e uma tatuagem. Vais sentir-te perdida, muitas vezes, e outras tantas agradecida. Vais comer e beber muito bem e vais apanhar doenças complicadas. Vais conhecer pessoas novas e sentir falta das que deixas para trás. Vais querer ser feliz mas, como sempre, não vais saber como. Vais ver os teu filhos felizes e descobrir que o do meio não gosta muito de aprender as matérias da escola. Vais gostar dessa ilha. Vais gostar de viver lá.
Se me tivessem dito isto há uns anos acharia possível mas ainda bem que só sabemos o futuro depois de o ter vivido.

Os Tobias Catatuas têm uma casa nova

2.6.16

O Isaac e o Nicolau tinham uns animais de peluche que serviam de objecto de conforto, sobretudo o do Isaac. O do mais velho era um cão e o do mais novo um gato. O cão do Isaac viveu várias aventuras e há dois anos ficou perdido num hotel em Bali. Nesse ano, o Pai Natal encontrou-o, quando passou pela Indonésia (deve ter feito um enorme desvio, coitado!), e trouxe-o. O Isaac chorou de alegria agarrado ao cão.
Entretanto, voltamos a perder o cão, e também o gato, num hotel em Same, que fica a 35 Km de Díli, ou seja, a quatro horas de distância, ou mais. Portanto o cão ficou lá para sempre. Quer dizer, o Isaac ainda acredita que ele vai voltar.
Depois disso, passamos numa loja do Timor Plaza com um caixote enorme cheio de bonecos e o Nicolau pediu-nos um. Perante a nossa recusa lembrou-nos que a culpa de terem perdido os outros era nossa. Usou argumentos bastante plausíveis, até, mas toda a gente sabe que não há nada como a culpa para conseguirem coisas que não interessam para nada.
Lá vieram para casa, cada qual com o seu bicho: um leão para o Isaac e um transgénico para o Nicolau. Chamam-se os dois Tobias Catatuas, não faço ideia porquê, e é o Isaac que brinca com os dois, porque o Nicolau, o que queria muito, muito ter um boneco novo, afinal, não quer saber dele para nada. E isso diz mesmo muito sobre a personalidade deles.
Da mesma forma que o processo de construção daquela casa diz muito sobre a minha, mas isso fica para um outro dia.