Memórias

28.12.19

O facebook mostrou-me esta foto e eu fui procurar as notas do meu diário de viagem. Sabe mesmo bem voltar a sítios onde fomos felizes!

''Dia 9
Kandy-Bandarawela

Faltavam 15 minutos para as 8h00 quando chegámos à estação de comboio de Kandy e já estava uma fila enorme para comprar bilhetes para o mesmo destino que nós.  Pareceu-me óbvio que íamos ter de ir de taxi, mas quando vi os bilhetes na mão do Jaime fiquei super contente (1000 rupias todos os bilhetes).
Só que a felicidade durou pouco tempo, já que o comboio chegou à estação às 8h49, completamente a abarrotar, e foi um ver se te avias. Toda  agente a empurrar-se para conseguir um lugar de pé, apertado entre pessoas e malas.
Fomos de táxi, portanto (12 mil rupias). Foram quatro horas e meia de viagem com uma daquelas paragens desnecessárias para ver um jardim de ervas e especiarias. Até podia ser uma coisa engraçada se não fosse tão óbvio o objectivo de nos impingirem cremes, loções e especiarias com propriedades milagrosas, em embalagens horrorosas. Por um boião de cravinho, que pelos vistos põe os dentes brancos, pediram-nos o equivalente a 20 usd. Enfim, trouxe um creme de aloe vera e um óleo de canela.
Parte da viagem os miúdos foram a dormir. O Isaac foi o que dormiu menos e o Nicolau vomitou duas vezes.
O motorista muito mais conversador do que o anterior, talvez por dominar melhor o inglês, também passava a vida a atender o telefone.
Vimos as plantações de chá e umas quedas de água, mas o que queríamos mesmo era chegar ao hotel rapidamente. Estávamos todos um bocado frustrados por não ter conseguido apanhar o comboio.
Chegámos ao Mount Pleasant às 13h30 e pedimos o almoço.
O Mount Pleasant é uma casa estilo inglês, muito bonita e muito confortável. Tinha uma árvore de Natal na sala e um piano. A comida não era nada de outro mundo, mas tínhamos vinho da loja ao lado.
Depois do almoço fomos dar um passeio pelo centro, sem a Bea que quis ficar no hotel, porque tinha internet.
Bandarawela é uma pequena cidade com um centro simpático, cheio de pequenas lojas de tudo e mais alguma coisa, com pessoas solícitas e a fazerem-nos sentir bem vindos.
Éramos os únicos turistas a passear àquela hora. Entrámos numa loja de tecidos e comprei um sari (21 usd). Não tenho a certeza de ter escolhido o certo. Também trouxemos uma camisa para o Nicolau e uma t.shirt para o Isaac do piso de cima. Decidi que voltaria lá no dia seguinte para comprar mais tecidos. Jantámos no hotel, a Bea tocou piano e fomos dormir cedo.''

Porque sim

21.12.19

Quando escrevi isto, há três anos, achava que estava preparada para o que ia acontecer. Eu acho sempre que estou preparada, porque aprendi muito cedo a não ter nada como garantido. Vivo com o que acontece e muitas coisas acontecem só porque sim.
Mas não conseguiríamos viver, ou não seríamos humanos, se não pudéssemos olhar para o futuro com esperança.
Ali atrás, há três anos, eu achava que a Bea ia completar o terceiro ciclo na António Arroio, o Nicolau poderia começar o primeiro ciclo em Timor, ou noutro país, e que faríamos muitas viagens juntos.
Depois aconteceu o pai da Bea deixar de poder viver com ela em Lisboa, o acidente de carro em Timor, o ter de ficar em Lisboa a ver o Jaime partir com os miúdos. Pouco depois, nas férias de Natal, aconteceu uma cirurgia de urgência e os dois meses juntos em Portugal fizeram-nos ter vontade de ficar aqui. O Jaime teve de regressar por causa do trabalho, mas acabou por se demitir. Sem rendimentos tivemos de vender a casa de Lisboa e a Bea de se matricular na Soares dos Reis. Não sei se foi essa mudança em particular, ou o acumular de todas as andanças, que desencadeou a crise que a fez ir-se embora. Sei que foi esse acontecimento que marcou este ano como um dos piores da minha vida. Mas 2019 foi também o ano em que abrimos a Tua Vinharia que me permite, além de outras coisas, fazer balanços bem interessantes.
Ainda assim não me lembro de esperar tão ansiosamente por um final de ano, quando nem sequer dou grande importância ao ritual de deitar o ano velho fora. Provavelmente, quantos mais desafios enfrentamos mais nos enchemos de esperança. É por isso que algumas pessoas ricas deixaram de tomar banho todos os dias, passaram a circular de transportes públicos e ligam menos vezes o aquecimento. Ah, e comem muitas leguminosas e pouca, ou nenhuma, carne.
Na verdade eu estou é na expectativa que tudo corra pelo melhor com a reaproximação da Bea e com o crescente reconhecimento do nosso trabalho na vinharia, e quero muito a Primavera. Porque sim.

P.S Para manter a tradição dos últimos tempos publico a foto da árvore de Natal num post que não tem nada a ver.

Marriage Storry

13.12.19

Então, lá fui eu a correr abrir uma conta na netflix para ver o Marriage Story e só não estou arrependida, porque posso experimentar o canal durante um mês grátis. Agora, espero que não me dificultem o cancelamento.
Eu gostei do filme, atenção, os diálogos são muito bons e há detalhes deliciosos, além da prestação dos actores principais - sim, eu também adoro o Adam Driver, assim de adorar mesmo, mas a Scarlett Johansson não fica nada atrás -, mas não vale os oito euros, que teria de pagar, comparativamente aos cinco euros que pago no Trindade, por exemplo.
Ah, adorei aquela parte em que ela diz que bebe um copo de vinho de vez em quando, às vezes mais do que um e que acontece pedir uma garrafa quando está com alguém num restaurante. Parecia eu a explicar à médica de família quantos copos de vinho bebo por dia.

Três anos muito bons

6.12.19

A minha filha pediu-me fotografias dos anos 80, em que eu aparecesse com amigos e familiares, por causa de uns figurinos em que está a trabalhar e agora ando aqui comigo aos 18 anos colada a mim. Voltar a estas fotografias, quando passo todos os dias pelo liceu, é como separar camadas de uma bebinca (já agora, podem sempre acompanhar esta iguaria com um colheita tardia, ou um Porto branco envelhecido em madeira. Sim, ando viciada nisto de fazer pairings).
E é como se estivesse a olhar para mim e para a minha filha, com a mesma idade, mas com receitas de bebinca diferentes.
Depois, ela comenta que muita gente da turma dela do 10.º ano da António Arroio se vestia exactamente como a minha turma do 10.º ano da Eça de Queirós e eu fico ainda mais baralhada entre as camadas das diferentes bebincas.
É que o mundo até pode pular e avançar, como na canção, mas há coisas que permanecem: o embate do nascimento de um filho, a dilaceração da perda de alguém, o estonteamento da paixão e, claro, a energia dos 16,17 e 18 anos.
Tenho-me visto a olhar para mim com essa idade de outra forma e apetecia-me tanto entrar no liceu, ou no Mabri, para me dizer ''tu és tão melhor do que pensas, miúda, mas tão melhor!''
Foram três anos muitos bons, estes do 10.º ao 12.º ano, determinantes mesmo. Às vezes cruzo-me com um ou outro professor dessa altura e não consigo deixar de me emocionar.

P.S  Caros amigos do 10.º G? H? desculpem estar a publicar uma foto sem autorização, se for caso disso ponho um daqueles smiles nas vossas caras, sim?


Pai Natal e outras conversas

28.11.19




Eu - Vocês continuam a acreditar no Pai Natal?
Isaac - Eu sim.
Nicolau - Não. Por várias razões, primeiro nunca o vimos. Depois, porque ele não cabe nas chaminés.
Isaac - Cabe em algumas.
Nicolau - E daquela vez que ele estava a chegar e fomos espreitar à janela e quando voltámos as prendas já estavam no sítio? Não faz sentido.
Eu - Então quem é que achas que dá as prendas?
Nicolau - Os pais.
Eu - Certo. Quer dizer que vais compreender se não receberes o que pediste, porque sabes que os pais podem não ter dinheiro?
Nicolau - Afinal, acho que acredito no Pai Natal.
_______________________,,_____________________

Isaac - Quero perguntar-vos uma coisa, mas se calhar vão-se chatear.
Eu e pai - Claro que não. Não há razão para ficarmos chateados com uma pergunta.
Isaac - O que é sexo?
Eu - Eu acho que tu sabes o que é, mas se queres falar connosco sobre isso, outra vez, podemos responder.
Pai - O que queres saber exactamente?
Isaac - O que é sexo.
Eu - Pode ser aquilo que destinge o masculino e o feminino, ou aquilo que os adultos fazem para ter filhos. Ainda que também possam fazer sexo quando gostam muito um do outro, mesmo que não pensem em ter filhos. 
Isaac - Quer dizer que tu já fizeste sexo três vezes?
Eu - hmmm, pois, quer dizer mais ou menos isso.

(Foto: Eles, em Souto da Velha, depois das vindimas em Freixo de Espada à Cinta e depois de recolherem ''fósseis'' num terreno em frente)

Idiossincrasias

18.11.19
Cortei as repas. Não me ficam muito bem, mas às vezes é preciso acreditar que consigo fazer melhor do que prender o cabelo todos os dias e lavá-lo uma vez por semana.
É verdade que já não quero ser bonita como as minhas amigas, mas quero envelhecer bem, ou seja, parecer mais nova do que sou. Não é fácil, tendo em conta as vezes que acordo de ressaca e que o meu exercício físico é caminhar, mas acredito sempre que é possível. Até perceber que não é.
Tenho de aceitar as minhas idiossincrasias, pronto. Por exemplo:

>Fico um bocado irritada quando algum de nós fica doente, porque me parece uma falha. Como se fosse uma coisa que podia ter sido evitada, tipo chegar atrasada aos compromissos. Não percebo as pessoas que se atrasam, nem as que ficam doentes. E eu fico doente amiúde.

>Dou zero importância ao telemóvel. Fica muitas vezes esquecido em casa, ou sem bateria, sem que isso me causa qualquer ansiedade, como acontece com o Jaime, que ''por acaso'' tem de atender, ia dizer montes de vezes mas já pouca gente me telefona, chamadas para mim.

>Nunca me lembro que alimentos os meus filhos não gostam. Eu argumento que é por eles estarem sempre a mudar de gostos. Uma semana adoram bacalhau, na outra odeiam, mas já perdi a conta às vezes que ouvi ''EU NUNCA GOSTEI DISTO''. Na verdade, agora só tenho esse problema com o mais novo e tinha esquecido que a Bea se queixava do mesmo, até receber a mensagem: ''Até achei algo hilariante 18 anos depois ainda não te lembrares que não gosto de ameixas''.

P.S Não tirei foto às repas e hoje prendi-a com travessões, por isso mostro depois, se me lembrar.

Fora do poço

25.10.19
Algumas pessoas dizem-me que é uma pena eu não escrever no blog como escrevia, referindo-se, na maior parte dos casos, ao tipo de registo e não à frequência.
Mas eu já não sou uma dona de casa desperada (sabiam desta definição da Wikipédia?!), por isso é mais do que normal que não escreva sobre as mesmas coisas, ainda que haja toda uma enciclopédia do quotidiano que podia, e devia, ser escrita.
Há o post da cadela Catrina, que foi recolhida da rua com as mamas cheias de leite sem cachorros à vista, ou o dia em que fui substituir a minha mãe a cuidar da minha avó, e notar que cuidar é alimentar e trocar fraldas. A peça de teatro, de domingo à tarde, também dava um belo post, e as obras na minha rua davam muitos.
E depois há o poço da tristeza em que me afundo muitas vezes. Acho que não se nota muito que estou dentro de um poço, consigo funcionar quase normalmente, apesar de ser muito pouco prático andar por aí enfiada num poço*. Às vezes até consigo vir à superfície e tudo. Nessa altura faço festas no cabelo sempre despenteado do Isaac, olho para o fundo dos olhos escuros do Nicolau e vejo que guardam já preocupações, tantas preocupações nuns olhos tão pequenos! O Jaime nem sempre sei onde está, mesmo que esteja ali ao meu lado.
Também gosto de calçar as meias tricotadas por mim e olhar para os meus pés fora do poço.


*tentei desenhar a rapariga despenteada a caminhar pela cidade dentro de um poço, mas não consegui. É pena, porque dava um desenho bonito, acho eu.

Mindfulness

16.10.19
Na caminhada pela manhã cedo, a levar com o vento nas trombas, comme il faut na Póvoa, ia pensado na roupa que tinha de tirar da máquina para secar na lavandaria, na logística do almoço com o que sai da escola a essa hora (a vinharia não fecha), no que improvisar para o jantar com os itens do frigorífico e congelador, nos conteúdos que faltam para o site avançar, no que queria escrever no blog, no dentista, no sutiã que preciso de comprar (estou sempre a precisar de comprar sutiãs, eu sei, mas é porque nunca compro, ou quando o faço trago o errado. Sim, já devia ter deixado de usar), nas encomendas de Natal (eu a pensar no Natal em Outubro, quem diria!!!!). Depois, desligava e olhava para o mar, respirava e contava os passos na inspiração, seis, e na expiração, oito, e apercebia-me da sola dos pés, das canelas, dos joelhos e por aí fora e notava que a paisagem era bela, sim senhora, que o vento não tinha de ser desagradável, que é um privilégio poder fazer estas caminhadas, que se calhar não é impossível fazer o caminho até Santiago com o Isaac, como a mulher com os dois filhos que passou por mim, e por pensar no Isaac ele tem teste de Português amanhã, vai ser um problema fazê-lo perceber a importância de estudar, de ter um método de estudo, mais cedo ou mais tarde. Eu nunca gostei de estudar para os testes, nem nunca o soube fazer muito bem, era com o que ouvia nas aulas que me safava e até certa altura fui-me safando muito bem, depois já não. Agora ninguém está à espera que os miúdos se safem, têm de ser brilhantes, no mínimo.
-Não achas que as gaivotas fazem isto (planar ao vento) por puro gozo?, ouvi o Jaime perguntar.
-Não creio, todos os comportamentos animais têm como finalidade a sobrevivência, ou a procriação, respondi.
Olhei para as gaivotas, inspirei e contei seis passos, expirei e contei oito.

Dez anos em 19 anos

30.9.19

O Isaac fez dez anos, a Maia morreu no mesmo dia.
A Maia morreu no dia em que o Isaac fez dez anos.

Não dá para falar do dia em que festejamos o aniversário do nosso filho (ontem) e o da morte da nossa gata de 19 anos no mesmo post. Mas também não dá para falar de uma coisa e outra separadamente, quando aconteceram no mesmo dia. Melhor não falar. Não, melhor falar.

Portanto, descemos as escadas às 7h da manhã, confirmamos que a Maia não respira, mas se calhar está viva. Demoramos sempre a acreditar na morte. Sabemos que vamos ter de pegar nela, depois de colocar o cobertor na caixa de cartão. Ela está morta mas não vai para dentro da caixa sem alguma coisa que a aconchegue. É a primeira vez que lidamos com os aspectos práticos da morte de um animal de estimação. Talvez ela não esteja morta, apesar das evidências. Demoramos sempre a acreditar na morte. Cubro-a com o cobertor e fecho a caixa. Agradeço-lhe mais uma vez ter feito parte da nossa vida. Entrego a caixa ao Jaime para a levar à casa da minha mãe, para a enterrar. Sei que teve uma vida longa e feliz, supondo que sei o que é a felicidade para um gato.

Subo e o Isaac chama por mim. Vou ao quarto dar-lhe os parabéns e ele pergunta onde foi o pai. Invento qualquer coisa e digo-lhe que pode vir deitar-se na minha cama, se quiser. Não consigo evitar as lágrimas que correm como rios dos olhos para as orelhas, mas eles não percebem, felizmente (o Nicolau também se tinha juntado a nós). O Isaac faz anos, merece a festa que idealizou. Estamos à espera do Jaime para abrir a prenda. Depois vamos sair para ir buscar o bolo, os amigos e seguir para o Porto. Pode ser que ele não se aperceba que a Maia não está, ela já não se fazia notar muito nos últimos dias. Não tenho a certeza de conseguir travar a nascente dos olhos, mas consigo.

Mais tarde, no final do dia, quando lhe disse que estávamos tristes por a Maia não estar em casa, tanto um como outro demoraram a perceber. ''Fugiu de casa?''- perguntou um. ''Está no veterinário?'' - perguntou o outro. O Isaac chorou desalmadamente e sentiu-se culpado por não ter percebido o que tinha acontecido - ''não vês que parece que eu não me preocupo com a Maia'', dizia entre soluços. O Nicolau quase não chorou.

De todos os que vivem comigo, a Maia era a que estava há mais tempo. E o Isaac o que mais se preocupava com ela, por isso gostou da ideia de a nossa gata, de a minha gata, ter escolhido ir para um sítio melhor num dia tão especial.

Bom ano

17.9.19

Devo estar deprimida, ou seja, devo estar consciente do que se passa à minha volta, porque o início deste ano lectivo não se encheu de confetes, que são as expectativas que todos criamos à volta da vida das nossas crianças.
Dei por mim a fazer comentários jocosos às fotografias das criancinhas no primeiro dia de escola até o facebook me mostrar uma ''memória'' de 2011, onde constavam as minhas criancinhas no primeiro dia de escola, precisamente.
Por causa disso fiz umas pesquisas aqui no blog e só não fiquei pasmada com o que já enchi a minha vida de domesticidade, porque ainda tenho muito presente esses maravilhosos e terríveis tempos do passado recente (a sério que eu fazia posts destes? e destes? [inserir emoji com ar aterrorizado, ou outro que se adeqúe] e isto só na etiqueta 'lavores'!).
Bom, mas a domesticidade não é tão aterradora agora, o que quer dizer que os filhos pequenos dão mesmo muito trabalho, mas não deixa de ser aborrecida. Não a parte de preparar e destinar os legumes, ou regar as plantas e fazer bolos com o Nicolau, mas quase tudo o resto. Vocês sabem, limpar, arrumar, encaixar os tupperwares e respectivas tampas no armário, varrer o cotão, lavar as piaçabas, mesmo achando que deviam ir para o lixo...
Não tem de ser dramático, até temos máquinas que lavam louça e roupa, só que é. Sobretudo, porque nem todas(os) podemos ser a Sarah Affonso que confirmou ''o seu projecto plástico nas pequenas coisas do quotidiano, sem distinção entre artes maiores e menores, entre pintura e bordado, entre cerâmica e desenho de jardim''.
Emília Ferreira, directora do Museu Nacional de Arte Contemporânea/Museu do Chiado, até diz que a quinta de Bicesse, que Sarah Affonso comprou com Almada Negreiros, ''é a continuação lógica da diversificação artística que as vanguardas valorizavam .''
Se ao menos as vanguardas de agora valorizassem montras, se calhar eu podia aspirar a ser artista (inserir mais emojis).

A minha forma de ser

5.9.19
Num diálogo hipotético dizia a alguém: ''se calhar não gostas da minha forma de ser'' e depois fiquei a ouvir o eco ''forma de ser... forma de ser... forma de ser...''. Enfim, é o que dá acordar às quatro da manhã. Adiante.
Quando estava a sentir o sono a chegar novamente, achei que devia apontar para me lembrar quando acordasse, mas não tenho lápis nem papel na mesinha de cabeceira. Pelos visto não foi necessário.
A expressão ficou a ecoar na minha cabeça por me parecer provocatória, como se para sermos tivéssemos de partir de uma forma, isto é, de um molde. Como se no início houvesse uns quantos moldes e a partir daí se formassem todas as pessoas.
Não sei se me calhou um molde mais defeituoso, ou se a minha matéria não tinha o que era necessário, como quando um bolo afunda no meio, para a minha forma de ser tornar-se menos apreciada.
Seja como for, há pessoas muito irritantes que conseguem ser interessantes e ter uma vida boa, como a Lindsay e o Frank, por exemplo. E não me venham com o detalhe de essas pessoas serem personagens, que toda a agente sabe que a realidade ultrapassa, muitas vezes, a ficção.

Agosto é fodido

26.8.19
Quando me perguntam há quanto tempo regressei de Timor, tenho de pensar duas vezes, porque vim viver para a Póvoa em Janeiro de 2018, pelo que a resposta ''há um ano'' não é muito desfasada, mas já estava em Lisboa desde Setembro de 2017, portanto estou cá, em Portugal, há dois anos.
E por aqui se vê que um ano pode não fazer tanta diferença na vida de uma pessoa, como um minuto, que há-de ter sido o tempo que demoramos a tomar a decisão de eu e os miúdos não regressarmos a Timor.
Não é sempre claro quando estamos a viver um desses momentos decisivos. Muitas vezes só em retrospectiva percebemos isso. Aquele beijo, aquela viagem, aquela entrevista de emprego...
Outras vezes, essa percepção pode ser muito evidente no momento em que está a acontecer, mas é raro, acho eu.
Foi um momento desses, ou vários, que me trouxe aqui, às minhas novas funções de ''vineuse'', que é uma categoria inventada pela Dora.
E agora, com os rapazes a passar muito tempo no armazém da vinharia, mais por vontade deles do que nossa, é inevitável pensar o que guardarão eles destes momentos. Espero que o roblox e o Filipe Neto não ocupem mais espaço na gaveta da memória do que as garrafas em volta e as conversas sobre vinho.
Mas o vinho tem um poder especial, que leva alguns deles, a dada altura, ''a cruzar-se na vida de muita gente e a fazer parte da sua história e da sua passagem terrena'', como contou o Pedro Garcias na maravilhosa crónica, em três partes, ''O dilema de António perante uma garrafa de Henri Jayer de 1970''. Por isso, eu sei que será o vinho, as histórias à volta do vinho, que eles guardarão destas férias grandes.

Chegada a este ponto, e depois de reler várias vezes o que escrevi, parece não fazer muito sentido o que estou para aqui a dizer. Acho que não sei o que quero dizer, na verdade.
No fundo, estou mergulhada em incertezas, como é natural, numa espécie de turvação (turvidade), como se estivesse debaixo de água.
Mas é Agosto, já devia saber. Foi num Agosto que morreu o meu pai e foi num Agosto que tive um acidente grave de carro.
Pois é, só agora me apercebi que faz hoje dois anos que sobrevivi a um acidente de carro. Tenho de celebrar.

Embebedai-vos

14.8.19

Calcei umas meias com um buraco, vesti um sutiã que já devia ter ido para lavar e pensei: ''Espero não ter de ir ao hospital''.
Eu, como toda a gente, espero nunca ter de ir ao hospital, mas é preciso calçar umas meias rotas e um sutiã encardido para me lembrar disso. Bom, mas a ter de ir é sempre melhor ir apresentável, claro.
Depois ocorreu-me: ''Quantas pessoas andarão, hoje, na rua com as misérias escondidas, como eu?'' Ainda não tinha acabado de calçar a segunda meia e senti-me inundada por uma onda de solidariedade e enternecimento por todos os seres humanos que passam a vida a tentar ser iguais aos outros.
E logo a seguir ainda relacionei isso tudo com o poema de Baulelaire, aquele que manda as pessoas embebedarem-se ''Para não sentir o fardo do tempo que parte vossos ombros e verga-vos para a terra, é preciso embebedar-vos sem tréguas./ Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a escolha é vossa. Mas embebedai-vos.''
Está visto que virtude não é coisa que sirva para me embebedar. O que vale é estar rodeada de vinho. E poesia também não me falta!

Escolher os problemas

7.8.19

Pela primeira vez, desde que os rapazes nasceram, temos de pensar o que fazer com eles durante as férias de Verão. O que fazer com eles no sentido de para onde os despachar e não o que fazermos juntos.
Este é um tema que, obviamente, já fez correr muita tinta e ocupou sei lá eu quantos gigabytes na rede, mas, que novidade(!!), ainda não tinha falado nisso (acho eu).
As pessoas têm filhos, as que têm, e naturalmente têm de os alimentar, agasalhar, educar. Isso, às vezes, pode ser mesmo muito complicado, outras muito simples. Depende de muitos factores.
Seja como for, as férias dos miúdos são um problema para muitos pais desde que as mulheres começaram a trabalhar fora de casa e as famílias se dispersaram.
No nosso caso não temos precisado de nos preocupar com as férias da escola, porque eu estive sempre disponível, isto é, sem emprego, ou sem um trabalho com horários.
Não é o caso deste Verão. Por isso, em Julho pagámos para estarem em Actividades de Tempos Livres (ATL), a fazer coisas que gostam, e em Agosto vamos gerindo um dia de cada vez: as manhãs com um de nós, umas tardes com a avó, outras no trabalho connosco (na foto estão com o primo mais novo, no dia em foi baptizado).
Conseguir isto, conciliar o trabalho com a vida familiar, é uma pequena vitória que vale a pena registar. Até porque  demorou 18 anos e  tivemos de criar o nosso próprio emprego para o conseguir.
Mas, há sempre um mas, criar o próprio emprego é quase como criar um filho. Temos de o alimentar todos os dias, ajudá-lo a crescer e dedicar-lhe tempo. Portanto, para resolver um problema foi preciso criar outro.
Parece-me que a ideia de que devemos procurar os problemas com os quais não nos importamos de viver, em vez daquilo que nos faz feliz, faz bastante sentido.

Orgulho

25.7.19

Estou a escrever numa garagem e mal comecei a frase lembrei-me da Michelle Dubois. Não, não faço parte de nenhum grupo de resistência, apesar de gostar de fazer de conta que sim. Estou a escrever numa garagem, porque é o novo escritório/armazém da garrafeira que eu e o Jaime imaginamos, primeiro, e abrimos ao publico, depois. Bom, entre um e outro, a idealização e a concretização, houve um espaço de tempo considerável e bastante trabalhoso, como é fácil perceber.
Mas aqui estou eu com uma certa vontade de falar sobre as voltas que a vida dá e as tantas vidas que já vivi numa, mas não vou maçar-vos com isso. Pronto, vou só um bocado: Às vezes acontece de nos encontrarmos num determinado momento em que muitos outros momentos que vivemos vêm ter connosco.
Foi o caso da chegada destes dois vinhos na foto. Eu estou na Tua Vinharia, mas também estou em Lisboa a fazer mantas patchwork, na Rua Maestro Taborda, e a tricotar com a Rosa Pomar e a fazer crochet com a Rita Cordeiro, na Retrosaria. Também estou no momento em que conheci uma das produtoras destes vinhos, Susana Esteban, na primeira edição da Abertura das Talhas - Amphora Wine Day
Ver tantos momentos a convergirem desta forma fez-me sentir um certo orgulho. É um sentimento bom, devia senti-lo mais vezes.

O meu coração quer fugir de mim

14.7.19
Tem acontecido acordar a meio da noite, sempre à mesma hora, com aquela sensação de pânico, como se me estivesse a afogar, ou como se alguma coisa terrível estivesse para acontecer.
São sintomas comuns a cada vez mais pessoas que sofrem de doenças mentais, já se sabe, mas eu encaro-os mais como um banho de realidade. Quer dizer, não há como não ter medo das coisas terríveis que podem acontecer (e acontecem todos os dias a biliões de pessoas), o segredo é não pensar muito nelas, ou não sendo capaz de parar de pensar, não lhes dar muita importância.
Mas a meio da noite, com o coração quase a saltar cá para fora (o meu coração quer fugir de mim, muitas vezes), não é muito fácil.
Hoje, de madrugada, depois de perceber que não ia conseguir voltar a dormir, tentei entender o que me assustava. Já falei aqui sobre o meu medo, sobre ter sempre tanto medo, mas nunca me pareceu fundamental procurar a origem disso, porque a bem dizer não há como ser humano sem sentir medo. É, basicamente, uma ferramenta de sobrevivência (se calhar deveria dizer skill, é muito mais trendy).
Bom, mas eram cinco da manhã, não me apetecia sair da cama ainda de noite, por isso pus-me a fazer uma lista mental dos meus medos e cheguei à conclusão que todos se resumem a um: Medo de não ser capaz.
-Medo de não ser capaz de salvar os meus filhos das arbitrariedades da vida e de não tomar as decisões certas, nos momentos certos
-Medo de não ser capaz de estar à altura dos desafios profissionais que vão surgindo
-Medo de me render e fazer o que é suposto, ou o que os outros esperam de mim, em vez de fazer o que me dá na real gana (eu gosto de acreditar que podemos fazer o que nos apetece, desde que saibamos viver com isso)
-Medo de falhar. Esta ideia de ser uma falhada persegue-me e, às vezes, gostava de saber quando começou. Mas o dia já estava a nascer, as gaivotas guinchavam, os cães ladravam e apeteceu-me café. 

Usufruir

19.6.19

Comecei a ler este artigo e lembrei-me logo de uma certa forma de estar dos timorenses que muitos poderão associar a preguiça e que a mim sempre me pareceu revelar conhecimento, como se eles soubessem alguma coisa que nós ignoramos.
Por isso, gostava tanto de observar o tio Abel, e os timorenses com quem me fui cruzando, e continuo a achar que temos muito a aprender com as sociedades menos desenvolvidas.
Não é propriamente novidade que o aceleramento da vida moderna anda a deixar meio mundo doente e o planeta em risco, o que não parece claro é que caminho seguir para menorizar os problemas.
Um dia destes, depois de estacionar o carro e rodeados de empreendimentos comerciais por todos os lados, o Jaime perguntava-me que iriam os nossos filhos fazer, quando já está tudo praticamente feito e eu respondi que iam, precisamente, desfazer o que andámos a fazer.
Na altura não me pareceu uma resposta assim tão contundente como me parece hoje, depois de ter estado a separar e preparar os legumes que a D. Fátima trouxe, enquanto pensava nas coisas que conseguimos controlar e as outras todas, as que estão fora do nosso controle.
Suponho que tenha sido precisamente essa a razão para os nossos primórdios criarem os deuses - é melhor lavar as nabiças para o esparregado - e a bem dizer, a humanidade chegou a este estado de evolução graças  à sua capacidade de sobrevivência.
E deixar acontecer o que tiver de acontecer - que pimento maravilhoso para o gaspacho -, acreditando que nada é por acaso, ou o contrário, tudo é casual, equivale a acreditar em Deus sem os sacrifícios, nem o inferno. Por isso, não te rales, sê feliz!
O feijão verde é para uma salada com ovo. Além disso, há coisas extraordinárias no mundo, por exemplo, não sei quais são as probabilidades do Vitorino, o encantador de crocodilos, sobreviver à recolha de ADN de 17 bichos, mas calculo que sejam muito pequenas.
Enfim, nem tudo tem uma explicação, por muito necessária que seja à nossa existência. Mais vale sentarmo-nos e usufruirmos, de preferência com um copo de vinho na mão.

Auto-ajuda

13.6.19
O último livro de auto-ajuda que comprei (sim, não foi o primeiro, mas não falemos sobre isso) foi uma espécie de brincadeira, como aquela que as crianças fazem, e todos nós já fizemos, de seguir no passeio sem pisar os riscos, ou atravessar na passadeira só nas partes brancas. Ou seja, disse a mim própria que compraria o livro que estivesse na mesa ao almoço, no Theatro - sim, este restaurante que também é livraria costuma ter livros espalhados pelas mesas, já tinha falado dele no blog das senhoras.
Isto, porque acordei num daqueles dias em que precisava de uma razão para sair da cama, além das evidentes, e almoçar num bom restaurante pareceu-me a melhor. Ao sair de casa já tinha decidido que ia trazer o livro que estivesse na mesa, fosse qual fosse, porque de certeza traria uma mensagem subliminar.
Não posso dizer que tenha percebido a mensagem, se é que tem alguma, mas também não dei o tempo por  perdido. Além disso, acho que foi por causa dele que acabei a ouvir um podcast, que é uma coisa muito pouco habitual, e a certa altura, lembrei-me de quando era pequena e ia para a cama mais cedo imaginar a minha casa. Não sei quanto tempo durou esta incursão pela minha casa imaginária, mas todos os dias eu revia-a detalhadamente e transformava-a. Também não sei se alguma das minhas casas reais se pareceram com a(s) da minha imaginação, mas parece-me que todas cumpriram o propósito que me levava a querer ir dormir mais cedo para sonhar: não ter ninguém a dizer-me como manter o meu espaço. Seria já uma manifestação de independência? É pouco provável, era muito pequena, ainda. Enfim, se calhar era mais uma brincadeira habitual de crianças, mas agora fiquei a pensar nisso e nas mais de dez casas em que vivi. 
Às tantas não é assim tão descabido ler livros de auto-ajuda (não são todos?).

A Bruxa da Areosa

6.6.19
Morreu a Agustina Bessa-Luís e eu só consigo pensar no Mário Viegas. No início dos anos 90, assisti a um espectáculo do artista, na pequena sala do Clube Naval Povoense (acho eu), com uma amiga e a mãe dela, e fiquei maravilhada com o Manifesto Anti-Dantas. Também fiquei a saber, nessa noite, que ele chamava Bruxa da Areosa a Agustina, não me lembro se Viegas o referiu em algum momento, ou se alguém comentou isso depois do espectáculo. Sei que nunca mais o esqueci e passei a referir-me à escritora da mesma forma. Achava até que não gostava dela, mesmo sem ter qualquer razão para isso. Entretanto, já li que Natália Correia e Luiz Pacheco a tratavam da mesma forma, devia ser uma espécie de guerra de classes.
Por isso, tenho ideia, nunca li nada de Agustina até há poucos anos, quando tirei da estante, meio contrariada, o Fanny Owen. Gostei muito, claro, mas pelos vistos não o suficiente para me embrenhar em mais leituras. Portanto, não se pode dizer que eu esteja no grupo minoritário da adesão absoluta à obra da escritora, mas também não me enquadro no que a recusa.
Enfim, morreu a Agustina e eu tenho muita pena de já não ser tão impressionável como aos 18 anos.

Falta de ar

29.5.19
Nos dias de lucidez, que não são assim tantos, porque mesmo não estando sob efeito do poderoso analgésico dos assalariados tenho as mesmas preocupações da grande maioria dos seres humanos: alimentar os filhos, mantê-los saudáveis e instruídos, lavar e secar a roupa, acompanhar uma das séries do momento e salvar o planeta. Nesses dias, dizia, reparo como o mundo é simples.
Acontece-me reparar nisso em situações inusitadas, por exemplo, com a chávena de café, acabado de moer, nas mãos e o sabor e o aroma de Timor a despertarem sentidos que nem sabia que tinha, ou a olhar para as voltas da máquina de lavar com papeis, que hão-de ter saído de um dos bolsos de umas das calças, colados no vidro. 
É como se ficasse hipnotizada por instantes e visse o mundo tal como é: um magnífico acaso. O que me lembra uma das frases que sublinhei n'O Cisne Negro, e que é bastante apropriada a esta fase em que me falta o ar tantas vezes: ''Esquecemos rapidamente que o simples facto de estarmos vivos já é um extraordinário rasgo de boa sorte, um acontecimento remoto, uma ocorrência casual de proporções descomunais. Imagine um grão de pó ao lado de um planeta mil milhões de vezes maior do que a Terra. Esse grão de pó representa as probabilidades favoráveis ao seu nascimento; o enorme planeta seriam as probabilidades contra. Por isso pare de suar por coisas pequenas. Não seja como o ingrato que recebeu um castelo de presente e ficou preocupado com o bolor da casa de banho.''

Diários

14.5.19
Por falar em memória, no livro que estou a ler esbarrei nesta frase: ''A memória acredita antes que as recordações surjam. Acredita mais tempo do que as recordações, mais tempo que as lembranças, por mais espantosas que sejam'' (da edição Livros do Brasil). Não tenho a certeza do que quer dizer mas, além da coincidência, pareceu-me importante.
E por falar em coincidências, li um artigo sobre uma viagem por aquela que será a rota marítima mais perigosa do mundo, ou seja, o Estreito de Magalhães. Quando comecei a ler não associei logo o Strait of Magellan à passagem marítima descoberta pelo navegador português, mas assim que percebi fui reler algumas coisas sobre a circum-navegação de Fernão de Magalhães (nota-se muito que História sempre foi uma das minhas disciplinas preferidas?). Pouco depois entrei numa livraria para fazer tempo antes de um encontro e o primeiro livro que me saltou à vista foi qual? O Diário de Fernão de Magalhães, claro. Mesmo tendo prometido a minha mesma que não ia comprar nada, ia só ver, tive de o trazer. Não resisto a Diários. 

Finais felizes

9.5.19

Estava a ouvir a Regina Pessoa no Curtas à Quarta (dá na TVCine 2) de ontem e espantei-me por ver tão presente a conversa que tivemos há uns anos, a propósito de um trabalho para o JN.
Sei que na altura fiquei maravilhada por conhecê-la e intrigada com a timidez e a forma como tentava explicar o universo dos desenhos que fazia, mas não tinha noção que me tinha marcado tanto.
É verdade que ultimamente ando muito interessada na memória, nas informações que o nosso cérebro retém e nas que esquece, mas não foi por isso que quis rever o História Trágica com Final Feliz. Foi porque quero muito continuar a acreditar em finais felizes.

For the record

1.5.19
Aos primeiros minutos do primeiro dia de Maio de 2019, pus uma folha de alface na gaiola do grilo de estimação do Nicolau, confirmei que a gata ainda respira e afoguei as formigas que trepavam o frasco de mel.
Isto depois de ter visto o Rei dos Mortos morrer (que belo pleonasmo) no GoT.
Parece-me haver aqui uma relação de causalidade que ainda não entendi bem.

P.S. Entretanto, estive várias horas a pensar se devia mudar o título, ou escrever este post scriptum sobre não me importar mais com o uso de expressões em inglês.

Espreitar

27.4.19

Depois do almoço de Páscoa, aqui em casa, a minha avó começou a insistir que queria ir embora. A certa altura começou a chorar que tinha mesmo de ir e insistia com a minha mãe que tinha de a levar ao aeroporto. Ninguém parecia muito surpreendido com esta necessidade, porque parece que é comum ela inventar destinos urgentes, mas eu quis saber por que raio queria ela ir para o aeroporto, quando nunca na vida viajou de avião e duvido mesmo que alguma vez lhe tenha apetecido.
Depois de lhe perguntar várias vezes e de ter acertado nos decibéis, fiquei a saber que estava na hora de ela ir para céu e que para isso tinha de apanhar um avião. Ou seja, a minha avó quer, naturalmente, acautelar o seu lugar no céu quando morrer e acha que se não for ela a tratar disso ninguém o fará por ela.
Gostava de saber mais sobre os mistérios que esta mulher encerra, que mentiras contou a si própria para sobreviver - porque, não nos iludamos, a única forma de sobrevivermos, ou a mais fácil, é mentirmo-nos todos os dias -, quem amou mais do que à própria vida, se é que amou alguém assim, do que mais se arrepende. Se lhe perguntasse assim tal e qual responder-me-ia com mentiras, muito provavelmente, pensado que contava a verdade.
Acho que é por isso que contamos histórias e tentamos representar o sentir humano nas mais diversas manifestações artísticas: Para espreitar o que nos escondemos.

Saber o que somos

16.4.19

Numa pequena road trip que fizemos na semana passada pude constatar aquilo que já sabia: são as pessoas que fazem os sítios. Pode parecer cruel dizer isto quando vimos, ontem, a Notre-Dame a desmoronar no meio de chamas, mas sem pessoas não teríamos a catedral e o nosso choque, na verdade, foi ver mais de 800 anos da história da humanidade a ser destruída à vista de todos.
Os monumentos são obras assombrosas e eu, como toda a gente, não fico indiferente quando os visito. Em muitos deles, Notre-Dame incluída, fico emocionada. Mas é quando estou numa pequena povoação de Bobonaro, sentada no chão a ouvir o Liurai falar sobre tais, ou em Pitões das Júnias, no café, a ouvir a mulher falar sobre as vacas que não vai levar a pastar, não sei se por causa da neve, porque tem muito feno para lhes dar, que as viagens se enchem de significado para mim.
E não, não vou à procura de pessoas quando ando na estrada. Prefiro estar sozinha, mas gosto muito de observar os outros e, se se proporcionar, conversar com eles.
Também pude constatar que continua a custar-me fazer xixi atrás das moitas, mas em caso de necessidade extrema faz-se o que tem de ser feito.
Não é sempre linear o caminho para nos conhecermos melhor, mas quando se começa não há como voltar atrás.
Li recentemente uma entrevista a Steve Paxton, 80 anos, em que lhe era pedido que revelasse uma ou duas coisas entre as mais importantes que aprendeu nos últimos 60 anos. Ele disse que uma das coisas foi que ''na vida trata-se de não nos sentirmos derrotados quando perdemos''. E de chegar ao fim e conhecermo-nos, de sabermos o que somos, o que queremos. ''Acho que isso é possível'', dizia ele, e explicou que conseguiu fazê-lo com disciplina (artes marciais), através da arte (dança) e da técnica (meditação).

46

5.4.19
Apesar de este blog ter tido diferentes abordagens ao longo do tempo, que foram acompanhado, umas vezes melhor, outras pior, as diferentes fases da nossa vida, gosto de acreditar que fui sempre honesta, fiel aos meus sentimentos.
Normalmente, nas redes sociais, mostra-se o lado bom da vida e ainda bem, suponho. Mas quanto fica de fora? É que olhar para a nossa vida, para as nossas escolhas, para tudo o que fizemos e o que nos aconteceu em retrospectiva é uma coisa. Nesse caso, é natural que nos lembremos das coisas maravilhosas que vivemos.
Bem, a acreditar na teoria de Reviver o Passado em Montauk, no fim da vida há duas coisas que importam: As coisas que lamentamos ter feito e não podemos desfazer e as coisas que não fizemos e devíamos ter feito, e que também lamentamos. E essas duas coisas são tudo o que importa.
Seja como for, um blog funciona (ou funcionava) como um diário e na vida de todos os dias acontece de tudo.
Hoje faço 46 anos e não me apetece festejar. Não é novidade, raramente me apetece, mas este ano é particularmente triste.
A minha filha foi-se embora sem dizer adeus.
Não sei o que escolheu contar a si própria para justificar acordar todos os dias sabendo que não vai falar comigo. Eu acordo todos os dias a tentar não desaparecer dentro do buraco negro que se abriu no meu peito. Não se vê, claro, mas é absolutamente real. Tão real que tenho medo de ver engolidos todos os que me rodeiam.
Não vou entrar em detalhes, como será fácil compreender, há privacidades que devem ser respeitadas. Não é à toa que se fala tão pouco de filhos adolescentes.
A Bea, que sempre fez parte deste blog, tem 18 anos (faltam 21 dias). Tem idade para decidir o que quer fazer e viver com essa escolha. Eu não concordar com essa decisão faz parte.
O que eu não esperava era tanta ingratidão (nem acredito que estou a dizer a coisa que sempre mais odiei ouvir da minha mãe) e indiferença.
A minha menina, que nunca foi minha mas que faz parte de mim, não está comigo.
Podia só não estar a viver comigo, isso seria normal e até expectável, mas a minha filha, a minha menina, escolheu não estar comigo, connosco.
Nem sempre as coisas correm bem, por mais que façamos aquilo que achamos que está certo. E se calhar valia a pena falarmos mais sobre isso.
Daqui a uns tempos vou olhar para isto como uma fase terrível, necessária e passageira (dando mais ênfase a um ou outro adjectivo, conforme o que tiver acontecido até lá), mas agora é uma espiral de sofrimento como nunca tinha experimentado.

E se...

4.3.19
Houve uma altura na minha vida em que quase me inscrevi num curso de língua gestual. Não me lembro ao certo quando foi, mas tenho quase a certeza que foi depois de ter sido mãe, porque antes era menos diletante, por muito contra-senso que isto pareça.
A minha ideia era que não há linguagem mais universal do que a gestual, portanto seria lógico que em vez do Esperanto se aprendesse a língua dos surdos. Seria mais abrangente, pelo menos.
Não tirei o curso, porque me pareceu que não me serviria  para nada (a não ser, talvez, para trabalhar numa escola de crianças surdas) se o resto do mundo não tivesse a mesma ideia, mas continuo a achar que devia ser uma das opções de segunda língua na escola.
Ou seja, impedir-me de fazer coisas incríveis, sem nexo e completamente irrelevantes tem sido, muitas vezes, o meu colete salva vidas, aquilo que me tem feito passar por uma pessoa adaptada e funcional. O que é bom, ou vantajoso, mas não consigo deixar de pensar, como sugere o professor Dave Schmerz, ''E se...''

No outro lado

26.2.19
Sempre que estou sozinha, adoro sorver a sopa, sobretudo se for canja como é o caso, agora.
Acho que é um tipo de alimento que convida a ser sorvido, que querem? Assim como a maior parte das sopas asiáticas, parecidas com alguns dos nossos caldos, se excluirmos os temperos.
Não sei exactamente qual a cena, mas nunca mais me esqueci de um homem a sorver a sopa num filme de Zangke Jia e na minha vida do outro lado do mundo adorava observar as pessoas a comer.
Ora bem, a minha avó sempre comeu sopa sorvendo-a e nunca viu filmes alternativos, nem comeu PhosTom Yums, ou Mi Gorengs, portanto isto pode ser só um reflexo da minhas origens ''jabardas'', lá está!
Em Timor havia  a água sal, uma sopa de peixe muito dada a sorvos ruidosos. Chama-se assim, porque é o que é: peixe e ervas em água e sal. E voltei a sentir-lhe o sabor quando ouvi o Luís Cardoso no Correntes d' Escritas. 
Este ano não consegui assistir a quase nada do que aconteceu no festival literário, por isso ter ido parar às apresentações da mesa 7 foi uma sorte. 
Não havia água sal no texto de Luís Cardoso, havia uma varanda onde estava alguém sentado à espera, havia outra pessoa que deveria chegar para plantar abóboras, havia uma neblina que parecia sumaúma (o ai-lele), um lugar distante que se chamava mar mutin (mar branco traduzido à letra) e o café dos liurais (chefes)Durante uns minutos fui completamente transportada para a ilha que ainda sinto um bocado minha e continuo por lá, agora, a sorver a canja com as aimanas (molho picante) feitas pela Domingas. 

Optimismo

18.2.19
Recebi um e-mail para participar num inquérito sobre questões ambientais no âmbito de um estudo levado a cabo pela União Europeia, ou qualquer coisa do género, e apesar de ter ido parar ao Spam, e de incluir a oferta de um voucher, arrisquei responder, porque reconheci a fonte que me inclui na mailing list. 
Espero sinceramente que se trate de uma tentativa de me extorquir dinheiro (para ficar com o voucher, que oferecia 3 noites num hotel à escolha, era preciso pagar quase 30€), ou de aceder a dados pessoais, porque se o inquérito era verdadeiro começo a temer o pior.
Bom, a temer o pior em termos ambientais já estou desde 1999, mas como todos os seres humanos eu tendo para o optimismo quando se trata da nossa sobrevivência.
E depois, enquanto houver legumes nos campos de Aguçadora, Navais e Estela, está tudo bem.

Hora do Chá

11.2.19
Foto Chá Camélia
Está a ver aqueles saquinhos que se compram no supermercado e se juntam a água quente para fazer uma bebida a que chamamos chá? Esqueça, depois de aprender mais sobre chá a sério, e prová-lo, na única plantação da Europa continental não vai querer beber outra coisa. 

continuar a ler

Civilizar

6.2.19
Um dia destes estava a olhar para os meus filhos enquanto comiam Nestum, só os flocos, no sofá. Podia ser uma coisa bonita de se ver, até porque estavam relativamente calmos e porque são lindos, obviamente, mas acontece que estavam a comer sem colher. Ou seja, enfiavam a boca e o nariz dentro da malga e aspiravam, ou lambiam os cereais com mais açúcar do que fibras e proteínas.
Sei que houve um momento da contemplação em que quis pedir-lhes para comerem como gente, mas não disse nada. Fiquei só a olhar para eles, fascinada com a "jabardice".
Há coisas incríveis nos dias das mães e dos pais quando as crianças são pequenas, mas aquilo que melhor define o dia-a-dia de uma família com crianças, não tenho dúvidas, é a "jabardice".
Eu sei que há pessoas muito bem sucedidas a civilizar a suas crias desde tenra idade, eu não sou uma delas, como já se percebeu. 
A certa altura um deles segurou, com o dedinho anelar, um floco que estava a escorregar pelo queixo e eu: ''alto, nem tudo está perdido!'', mas logo a seguir vi-o limpar a boca com a manga da camisola.

P.S Um ano depois mudei, finalmente, o header. Um salva de palmas para o #homemdosmilofícios.

Feng Shui

30.1.19
Parece que a Maria Kondo anda outra vez nas bocas do mundo por causa da Netflix. Nunca utilizei o método e não é agora que vou começar, mas, e antecipando-me à próxima tendência, comecei a ler sobre Feng Shui.
Eu sei, eu sei, devia arranjar um emprego como as pessoas (não sei se ainda há o call center do BPI - o link diz respeito ao comentário do post), mas é tão mais divertido saber qual o Ming Gua de cada pessoa da nossa família. Por exemplo, de que outra forma poderia saber que aqui em casa temos dois trigramas Li, dois Dui e um Quian?
E depois, pessoas, não vai ser mais bonito andarmos a falar de Yi Jing em vez de como se deve dobrar a roupa?

Para mim, aos 75 anos

24.1.19
Miúda (posso continuar a chamar-nos miúda, certo?), falar com o meu eu futuro é, claramente, muito mais difícil do que falar com o do passado, mas sinto que tenho de o fazer. Por alguma razão parece-me importante saberes como me estou a sentir agora, em vez daquilo que te lembras sobre como me sentia.
Eu tenho 45 anos e apesar de vários indicadores - como a quantidade de colesterol no meu plasma, os cabelos brancos e o aumento considerável da cintura - me mostrarem isso persistentemente, tenho tendência para o esquecer e achar que é impossível estar na meia idade.
Ter filhos pequenos ajuda a afastar-me dessa realidade, mas contra factos não há argumentos. Suponho que te estejas a rir por me sentir velha aos 45, quando tenho 75 anos, e imagino que os últimos 30 anos tenham corrido bem. Talvez, até, muito bem. Também pode ter-se dado o caso de já ter morrido e ser eu de uma outra dimensão que está a ler isto e se assim for nem sei o que dizer, apesar de me parecer espectacular.
Em qualquer dos casos, estou a falar com outra Calita, mesmo estando a falar comigo própria. É estranho!
Dizia que tenho 45 anos e, mesmo sentido-me distante da idade adulta madura, a sensação de estar a meio do caminho está muito presente. Aquela sensação de quem está em viagem e a certa altura precisa de parar, olhar para o mapa, fazer contas e ponderar se segue como planeado, ou se muda o trajecto.
Não tenho noção de alguma vez ter feito planos para a minha vida. Eu queria coisas como conhecer o mundo e viver numa cidade grande, mas passava grande parte dos meus dias a imaginar como iria ser arrebatada por um belo príncipe.
As coisas não aconteceram como imaginei, mas aqui estou depois de viver nas duas maiores cidades do país, de ter conhecido algum mundo, talvez mais do que alguma vez sonhei que poderia conhecer, e a partilhar os meus dias com um príncipe.
E se muitas vezes tenho a certeza que era aqui que queria chegar - o que não deixa de ser curioso, porque regressei, aos 45 anos, às origens, o que não era de todo o meu objectivo -, outras não consigo deixar de pensar no que falta fazer. Mas isso, curiosamente, ou não, já não me angustia tanto como antes. O que não significa que viva tranquilamente, apesar de este último ano civil ter sido, provavelmente, o mais tranquilo da minha existência. Um ano de arrumações, talvez. De recolher os móveis espalhados por diferentes arrecadações (montar o beliche dos rapazes, desmontar o beliche e, há uma semana, montá-lo novamente), de nos encaixarmos todos juntos de novo, ficar a saber qual o meu lugar na estrutura da família ascendente.
Ajuda, e às vezes nem por isso, estar numa espécie de compasso de espera pelo arranque de um projecto profissional em que estou a colaborar com o Jaime. Estar numa cidade pequena, com praias que fazem esquecer o resto, também.
Há sempre grãos de areia, às vezes calhaus, na engrenagem, óbvio. O diagnóstico da depressão da mais velha, as pequenas decisões que podem fazer toda a diferença na vida deles os três, as crenças individuais que nenhum dos dois adultos quer abdicar e o medo. No fundo, o medo resume tudo.
Ainda tenho medo aos 75 anos? Espero muito que estejas a ler este post na cabana, no meio de um monte não muito distante do mar, com um bom vinho que tiraste da adega para o efeito, na mesa junto à janela onde costumas escrever. Mesmo com medo, porque não? O medo nunca me paralisou, com certeza não vai ser agora. Talvez o Jaime esteja a assar umas castanhas no forno para comerem daqui a nada e rirem-se os dois pela falta de dentes.
Quando era criança sonhei contigo, tinhas o cabelo muito branco e um ar sorridente, foi tão real que pensei que era velha e estava a sonhar comigo quando era criança. Talvez estejas, agora, a escrever a carta para ti aos 45 anos. Gostava mesmo muito de conseguir lê-la.

Da tua sempre,
Eu adulta madura

Há sensações universais 13

8.1.19
"[A cultura] Tem a ver com a maneira como procuramos uma certa elegância na nossa relação com o mundo, como nos damos com os outros, como usamos o nosso tempo, como a música entra na nossa vida, como os livros nos acompanham. O resto é dispensável.", Francisco José Viegas na revista Grandes Escolhas de dezembro.

Então, Bom Ano

3.1.19
Tenho muitas vezes pena dos meus filhos, às vezes por terem nascido no auge da destruição do planeta, outras por me terem como mãe, outras por terem tido azar com o Sistema Nacional de Educação que apanharam. Não me interpretem mal, tenho mesmo noção de que poderiam ter mais azar, as possibilidades são infindáveis.
Temos todos a tendência de comparar a infância dos nossos filhos à nossa (temos, não temos?) e apesar de termos em comum a ameaça do fim do mundo (no nosso caso era a Guerra Fria e a possibilidade de alguém poder carregar num botão e matar-nos a todos), pais com problemas (e que fumavam em todo o lado, incluindo no quarto), e uma Educação cheias de altos e baixos, parece-me que tive mais sorte do que eles. Muito porque ninguém esperava grande coisa de mim, ou seja, cresci sem expectativas, ou só com as que criei para mim. É claro que também passei pela pressão de me superar, toda a gente passou em algum momento da vida, a diferença foi nunca termos precisado de o fazer tão novos. Bem, a infância só por si já é uma superação constante, não era preciso atirar-lhes com tantos desafios, acho eu. Mas talvez estejamos a criar uma nova geração, mais capaz, mais evoluída e até, quem sabe, mais feliz.
Mas toda esta conversa só para dizer que ao ver o filme Ralph vs Internet (que não foi o melhor filme das férias de Natal, o melhor foi o Homem-Aranha, que é só espectacular!) tive a certeza de que eles neste particular têm muito mais sorte do que nós. Ok, nós tivemos o Vasco Granja, é um facto, mas um filme que goza com os contos infantis, que critica a Internet de uma forma inteligente, que procura derrubar estereótipos e com piada fez-me sentir feliz por eles. Ah, e eles também gostaram muito.

P.S 1 Eu sei que devia começar o ano com um post cheio de ideias novas, e tal, em vez de terminar este, que tinha começado há uma semana, mas melhores dias virão.

P.S 2 A foto foi tirada pelo Isaac no Museu Amadeo Souza-Cardoso, porque achou a ''senhora gordinha como a mamã''