Querida mamã,
Estamos numa fase um bocado complicada, mas como de vez em quando penso no que tu dirias estou a tentar concentrar-me nos aspectos positivos da vida. Com positivos refiro-me a bons momentos, a coisas engraçadas e a fontes de alegria.
1. A mais óbvia, e mais essencial, é estarmos os 5 em Lisboa. Desde ir à casa de banho às 3 da manhã e ver os dois meninos a dormir que nem anjos, às conversas de jantar tanto sobre cocó como Neruda ou até o clássico “Bea? Bea? Bea? Bea? Bea?... Queres ver os exercícios que fiz hoje?”. Não sei, existe algo de certo em estarmos os 5 juntos.
2. Eu estou a escrever à mão, que sabe muito bem.
3. Eu tenho mesmo bons amigos e passo horas mesmo boas na Arroio ( e tenho ainda 3 professores de Gravura mesmo bons).
4. Este claramente pertence à categoria dos engraçados: a vossa geração deve estar na moda, porque ando a conhecer montes de gente com as vossas alcunhas, desde Topé até Xana e mesmo Calita.
5. Olha, temos uma casa em Santa Apolónia.
6. E por fim, eu já consigo andar e a pancada que levaste na cabeça não deixou danos permanentes no teu cérebro, além das tuas momentâneas senilidades (?) que já estão presentes há muito.
Cartas de Díli #6
17.9.17
Querida Bea,
Como sabes não escrevo esta carta de Díli mas de Lisboa. Ia dizer a tua cidade, mas será?
Temos falado muito do acidente mas também me parece que temos, ou tenho, evitado falar de alguns aspectos desse acidente. Eu sempre achei que se alguma vez estivesse metida numa tragédia com algum dos meus filhos morreria de sofrimento, se não tivesse morrido dos ferimentos. Mas estávamos as duas no banco de trás do carro e eu simplesmente não me lembro de nada.
O neurocirurgião disse que perante um trauma o cérebro desliga e eu, que fico sempre fascinada com a forma como o nosso corpo funciona, não pude deixar de ficar agradecida, além de maravilhada.
Mas era eu ali, certo? Não era só um corpo a reagir a um trauma. E tu estavas comigo.
Sei que a partir do momento em que fiquei consciente acreditei que ia ficar tudo bem. O Jaime, não sei se me disse mas tenho quase a certeza que o pensou, considerou que esse meu optimismo só podia ser um sinal de que não estava bem, ou tão consciente quanto isso. Mas eu dou-lhe todos os descontos. Como se faz com os nossos super heróis.
Amanhã é o teu primeiro dia de escola e não imaginas como é maravilhoso estar contigo nesta altura do ano. Quer dizer, imaginas, porque é bastante óbvio, já que não consigo esconder o entusiasmo ainda que ensombrado pela perspectiva de ver os teus irmãos irem embora com o pai, para irem também eles para a escola, que fica a 14 mil quilómetros daqui.
Céus, como vou ser capaz de me despedir deles?
Isto que eu ando a dizer sobre eles ficarem connosco até esta tua nova vida ficar mais consolidada é mesmo verdade. Eles podiam fazer o primeiro trimestre em homeschooling e depois retomavam as aulas em Díli. Mas estou a complicar, eu sei, só por me sentir incapaz de estar longe deles ainda que por pouco tempo.
Podes dizer que também fiz o mesmo contigo e não foi assim tão dramático (não??), mas é fácil perceber as diferenças. Além de teres sido tu a pedir-me, já estavas noutra idade e com outra autonomia. É claro que apesar de precisares de mim por perto, a minha presença não é determinante para o teu dia-a-dia como é para eles.
Enfim, mas mudemos de assunto. Estarmos em Lisboa todos juntos, dois anos depois de termos ido embora daqui, sobretudo contigo a começar a escola, deixa-me nostálgica.
E apesar de estarmos a atravessar um momento para o complicado delicio-me com as nossas conversas, com as ameixas (que posso lavar com água da torneira!!!!!), com o preço do vinho, com o peixe, as refeições que fazemos juntos, o casaco que me aconchega e o som do jogo do Porto e os gritos de "GOOOOOOLO" que chegam da sala.
Somos muito mais isto. Não importa em que cidade estejemos a viver, desde que possamos estar juntos.
Tenho a cabeça amassada e um aperto no coração, mas sei que vai correr tudo bem (será que ainda não recuperei?).
Sabes o que podemos fazer? Acenar e sorrir.
Como sabes não escrevo esta carta de Díli mas de Lisboa. Ia dizer a tua cidade, mas será?
Temos falado muito do acidente mas também me parece que temos, ou tenho, evitado falar de alguns aspectos desse acidente. Eu sempre achei que se alguma vez estivesse metida numa tragédia com algum dos meus filhos morreria de sofrimento, se não tivesse morrido dos ferimentos. Mas estávamos as duas no banco de trás do carro e eu simplesmente não me lembro de nada.
O neurocirurgião disse que perante um trauma o cérebro desliga e eu, que fico sempre fascinada com a forma como o nosso corpo funciona, não pude deixar de ficar agradecida, além de maravilhada.
Mas era eu ali, certo? Não era só um corpo a reagir a um trauma. E tu estavas comigo.
Sei que a partir do momento em que fiquei consciente acreditei que ia ficar tudo bem. O Jaime, não sei se me disse mas tenho quase a certeza que o pensou, considerou que esse meu optimismo só podia ser um sinal de que não estava bem, ou tão consciente quanto isso. Mas eu dou-lhe todos os descontos. Como se faz com os nossos super heróis.
Amanhã é o teu primeiro dia de escola e não imaginas como é maravilhoso estar contigo nesta altura do ano. Quer dizer, imaginas, porque é bastante óbvio, já que não consigo esconder o entusiasmo ainda que ensombrado pela perspectiva de ver os teus irmãos irem embora com o pai, para irem também eles para a escola, que fica a 14 mil quilómetros daqui.
Céus, como vou ser capaz de me despedir deles?
Isto que eu ando a dizer sobre eles ficarem connosco até esta tua nova vida ficar mais consolidada é mesmo verdade. Eles podiam fazer o primeiro trimestre em homeschooling e depois retomavam as aulas em Díli. Mas estou a complicar, eu sei, só por me sentir incapaz de estar longe deles ainda que por pouco tempo.
Podes dizer que também fiz o mesmo contigo e não foi assim tão dramático (não??), mas é fácil perceber as diferenças. Além de teres sido tu a pedir-me, já estavas noutra idade e com outra autonomia. É claro que apesar de precisares de mim por perto, a minha presença não é determinante para o teu dia-a-dia como é para eles.
Enfim, mas mudemos de assunto. Estarmos em Lisboa todos juntos, dois anos depois de termos ido embora daqui, sobretudo contigo a começar a escola, deixa-me nostálgica.
E apesar de estarmos a atravessar um momento para o complicado delicio-me com as nossas conversas, com as ameixas (que posso lavar com água da torneira!!!!!), com o preço do vinho, com o peixe, as refeições que fazemos juntos, o casaco que me aconchega e o som do jogo do Porto e os gritos de "GOOOOOOLO" que chegam da sala.
Somos muito mais isto. Não importa em que cidade estejemos a viver, desde que possamos estar juntos.
Tenho a cabeça amassada e um aperto no coração, mas sei que vai correr tudo bem (será que ainda não recuperei?).
Sabes o que podemos fazer? Acenar e sorrir.
Sobreviver
7.9.17
Estava no hospital quando me disseram: "Aqui em Timor, Agosto é considerado um mês de azar". Fez todo o sentido, mas fiz questão de pensar que para mim Agosto vai ser sempre um mês de sorte. Afinal, foi em Agosto que sobrevivi a um acidente de carro.
E agora até podia falar sobre o que significa isso de sobreviver a um acidente. Pensei em muitos momentos - por exemplo no avião ambulância, deitada numa maca com o cabelo cheio de sangue - que escreveria sobre isso quando me sentisse melhor.
Mas agora que me sinto melhor e depois de ter tido uns sonhos/delírios com figuras que me pareceram mitológicas, ainda que o nome que recorde seja Malaxandra, o que na verdade pode ter origem no verbo malaxar, que significa amassar, como o que se passou no acidente, o que só pode querer dizer que o meu inconsciente está sempre à procura das palavras certas e já não sei o que ia dizer a seguir.
Ah, já me lembrei. Agora que me sinto melhor apercebo-me que aquilo que procuro instintivamente é sentir-me bem, isto é, o mais confortável possível. Passo os dias a fugir da dor, a evitar o calor, a matar a fome, a dar descanso ao corpo. Lembrei-me da minha avó e de como temos tido dias parecidos. Lembrei-me também que é exactamente assim que nos sentimos quando respiramos pela primeira vez.
Enfim, uma pessoa quando se dedica a pensar fica boquiaberta com a basicidade da existência.
E agora até podia falar sobre o que significa isso de sobreviver a um acidente. Pensei em muitos momentos - por exemplo no avião ambulância, deitada numa maca com o cabelo cheio de sangue - que escreveria sobre isso quando me sentisse melhor.
Mas agora que me sinto melhor e depois de ter tido uns sonhos/delírios com figuras que me pareceram mitológicas, ainda que o nome que recorde seja Malaxandra, o que na verdade pode ter origem no verbo malaxar, que significa amassar, como o que se passou no acidente, o que só pode querer dizer que o meu inconsciente está sempre à procura das palavras certas e já não sei o que ia dizer a seguir.
Ah, já me lembrei. Agora que me sinto melhor apercebo-me que aquilo que procuro instintivamente é sentir-me bem, isto é, o mais confortável possível. Passo os dias a fugir da dor, a evitar o calor, a matar a fome, a dar descanso ao corpo. Lembrei-me da minha avó e de como temos tido dias parecidos. Lembrei-me também que é exactamente assim que nos sentimos quando respiramos pela primeira vez.
Enfim, uma pessoa quando se dedica a pensar fica boquiaberta com a basicidade da existência.
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