Sabedoria

17.12.18

Disse, ou pensei, muitas vezes que a forma como temos vindo a encarar o trabalho é incompatível com a forma como temos vindo a encarar a maternidade/paternidade. É óbvio que é possível trabalhar e educar crianças felizes, não tenho é a certeza que isso possa ser feito nos moldes que temos. Horas a mais metidos num emprego nem sempre bem pago, crianças submetidas a pressões surreais e esta sensação omnipresente de que o mundo, como o conhecemos, está a ruir.
Enfim, cada pessoa, cada família, encaixa-se no sistema como pode, mas é cada vez mais evidente que o jogo está a mudar e não é claro que as regras sejam conhecidas.
Talvez por isso se ande a falar tanto de espiritualidade (até o Abrunhosa, quer dizer!). Parece-me que a necessidade de parar e olhar mais para dentro de nós está para uma determinada faixa etária como o varfine para a terceira idade. Mas posso estar enganada, claro.
Seja como for, podemos sempre contar com o pragmatismo do povo e a sabedoria que carrega. Como não ficar de bem com a vida, quando vamos na rua, a puxar a gola do casaco para proteger o nariz do frio, e ouvimos ao nosso lado, no meio da conversa de duas idosas: ''Focinho de cão e cu de gente nunca está quente''?

P.S A árvore de Natal na foto não tem nada a ver com o que digo no texto, mas não sei o que me parece (depois de tantos anos a mostrar os nossos pinheirinhos) não pôr aqui a deste ano, sobretudo quando já não decorávamos uma árvore desde 2015.

Fugir

5.12.18
Aqui na Póvoa de Varzim (a cidade mais próxima da aldeia onde cresci, e onde frequentei a escola do 7.º ao 12.º ano, e onde estive internada duas vezes no hospital com pneumonia, e onde frequentei durante anos o dispensário juntamente com velhinhos tuberculosos, e onde quase me afoguei no mar) existe uma espécie de fascínio pela morte, que me faz lembrar Timor- Leste.
Quando nos mudámos, a minha filha não se cansava de perguntar porque raio viemos para um sítio parecido com Díli e eu achei que ela estava louca, tirando talvez a relação da cidade com o mar, só que sou obrigada a dar-lhe alguma razão. 
Mas falava do fascínio pela morte, que deve ser qualquer coisa parecida com a atracção pelo abismo.  Por todo o lado vêem-se afixados anúncios de necrologia. Deve haver poucas ruas por aqui sem um café, uma loja, ou tapumes de obras com um destes avisos colados. E isso até poderia passar mais ou menos despercebido a quem anda na rua metido nos seus pensamentos não se desse o caso de muita gente parar a ler e comentar com quem está ao lado. 
É claro que uma pessoa acaba por se habituar a conviver com a morte todos os dias e, às vezes, ocorre-me que sempre quis viver em cidades grandes para fugir desta convivência. E fugir tem as suas vantagens mas parece que não se foge para sempre. 

Culpa

22.11.18
Estávamos a ouvir a Fiona Apple (sim, metemos nojo, a nossa vida é beber vinho, passear e ouvir música enquanto trabalhamos) e ele diz qualquer coisa sobre ser uma pena que uma moça com tanto talento como a Fiona editar tão pouco. Eu returco que provavelmente tem filhos.
Fez-se aquele silêncio de assunto-quase-complicado e rapidamente mudámos de tema.
Ainda há pouco fui obrigada a admitir, numa conversa de café, que ainda não vivo bem com a escolha de ter ficado com os filhos em casa.
Tenho a certeza que não podia ter feito de outra forma, mas parece que ainda falta saber viver bem com isso. Seja como for, este blog tem centenas de posts sobre este amor condimentado de contradições que nos fazem querer ficar e fugir ao mesmo tempo, não vale a pena voltar ao mesmo.
A minha filha diz que a culpa é de eu ter crescido com uma mãe niilista depressiva (acho melhor não querer saber qual a razão dos problemas dela), eu acho que a culpa é minha, obviamente. Mas isso, segundo um livro de auto-ajuda que li há muito tempo, tem a ver com o facto de eu ser primogénita num seio familiar que aniquilou a minha auto-estima (a sério, não queiram saber).
A culpa é um sentimento muito curioso, por acaso, não nos limita como o medo mas suga-nos a essência.
O que vale é que não me têm faltado ocasiões para decantar e repor o essencial.

Momentos avassaladores

13.11.18

O sofá tem pouco mais de seis de meses e está cheio de manchas, por baixo dele há sempre uma colecção de bolas, carros, restos de bolachas, desenhos e objectos não identificados, o pó resiste, camada a camada, às correntes de ar provocadas pelas corridas deles pela casa, possivelmente haverá vomitados secos da gata em sítios pouco acessíveis à vista, a roupa anda a passear, dentro de sacos, entre casa e a lavandaria e o forno, enfim, precisa muito de umas valentes esfregadelas, mas eu estou aqui a sentir-me a Leeloo, ainda sob o efeito do fim-de-semana.
Eu sei que estou perante uma coisa avassaladora de bonita quando me apetece chorar e, como é fácil de perceber, é raro acontecer. Mas no domingo tive não um, mas dois desses raros momentos. O primeiro a caminho do Alentejo, sob um céu carregado de nuvens que começam a dissipar-se, deixando um pequeno túnel de luz no fim da estrada vazia de carros, no exacto momento em que começa a ouvir-se Rufus Wainwright na rádio (obrigada Inês Meneses). A sério, não consegui conter-me, coisa que, felizmente, consegui mais tarde a provar o primeiro vinho do XXVI Talhas, e a ouvir o produtor falar da adega do avô. Ok, já tinha provado alguns vinhos (sem usar a cuspideira que, aliás, tinha aprendido a usar no dia anterior, no Palácio da Bolsa), quase todos muito, muito bons, mas aquele momento, lá está, foi avassalador.
Há outras formas de resistência, esta é a que eu escolho. Procurar viver momentos assim.

Só vemos o que queremos ver

6.11.18

Estava no café da Ponte, com vista para o rio Gerês, e na mesa à minha frente estava um casal a tomar o pequeno-almoço. Deviam ter uns 60 anos e não falaram um com o outro enquanto lá estive. Dei mais atenção à mulher, porque tudo nela dizia que estava no sítio certo à hora certa, a comer uma torrada com meia de leite. Até quando pegou no telemóvel para fazer um scroll rápido foi exacta. Tudo batia certo, talvez por isso me tenha parecido bonita.
No dia seguinte, quase no fim da minha caminhada, uma mulher começa a dirigir-se na minha direcção e eu vou-me afastando para lhe dar espaço e ela a desviar-se cada vez mais até ficar de frente para mim:
- Desculpe - Olhei para ela e reparei que tinha um sorriso bonito, apesar do diastema, ou talvez por isso mesmo.
- Sabe dizer-me se há algum cabeleireiro aberto, hoje? - Obviamente olhei para o cabelo curto, maravilhosamente penteado apesar do vento e sem vestígios de raízes brancas.
- Hmmm, não faço ideia, mas na Póvoa a uma segunda-feira acho muito difícil - respondi sem conseguir disfarçar a surpresa, acho eu. Ela agradeceu e continuou a andar.
Segui caminho a pensar que esta mulher tinha alguma coisa em comum com a do dia anterior. Apesar de serem completamente diferentes fisicamente tinham, lá está, a mesma exactidão.
Provavelmente a do café era só uma senhora segura de si, que obrigou o marido a sair para tomar o pequeno-almoço, e a segunda uma cabeleireira a tentar perceber se valia a pena montar um negócio na Póvoa para abrir só às segunda-feiras, mas eu vi outra coisa qualquer. Fazemos sempre isso, só vemos o que queremos ver.

Imaginar

24.10.18
Doía-me a cabeça e estava com algum sono, por isso tive de fazer um certo esforço para chegar ao fim do filme, mas fui deitar-me a pensar que devia adormecer a imaginar o meu futuro, como a Alma estava a fazer na última cena e como eu fazia em criança todas as noites.
Eu tinha uma vida paralela, ou vidas paralelas, quando ia dormir (isto depois da fase dos pesadelos e dos medos), mas ontem, quando me deitei e tentei imaginar o meu futuro, fiquei desconcertada. Eu já estava no meu futuro imaginado (parece que isto está sempre a acontecer-me, achar que estou no futuro) e não consegui ver para lá de onde estou agora. E eu até tentei imaginar a sensação de terminar o livro, de fazer trabalhos interessantes e estar em viagem, mas nada.
Isto só pode querer dizer uma de três coisas, ou a três juntas: 1) em criança não fui capaz de me imaginar muito além dos 40 anos, 2) a minha capacidade de imaginar diminuiu drasticamente com a idade, 3) preciso muito menos de fugir da minha realidade.
Em qualquer um dos dois últimos casos parece-me preocupante. Perder a capacidade de imaginar e/ou estar acomodado é uma forma de estar na vida um bocado triste. Mas já é tão violento existir - há crianças a serem violadas em campos de refugiados, ditadores a subir ao poder, andamos a comer plástico, os nossos filhos têm de mostrar conhecimentos na escola, em vez de os aprender, há mais de dois milhões de portugueses na pobreza, e desses quase 11 por cento trabalham, as alterações do clima são cada vez mais evidentes, a minha avó está muito velhinha-, como dizia, já é tão violento existir que é normal procurar algum conforto na sobrevivência.
Seja como for, consegui dormir relativamente bem. Não termos tido nenhum dos rapazes na nossa cama até de madrugada ajudou.

Infantil

17.10.18

Tinha deixado os miúdos na escola, acabado de tomar café e ia a pé para casa. Caminhava ligeira, a sentir as calças apertadas, o sutiã folgado e tremia ligeiramente, porque estava com frio. Vi que estava uma folha cor-de-rosa no chão e pensei: "é uma folha cor-de-rosa, que bonito, devia apanhá-la!" e continuei a andar. Estavam outras folhas no chão, como seria de esperar do Outono, e eu a andar e a pensar que se calhar devia voltar para trás para apanhar a folha, que não devia deixar de o fazer só porque é ridículo voltar para trás só para apanhar uma folha e continuava a andar e a pensar: "quanto mais andar mais longe fico e mais tempo demoro a voltar para trás, ou me viro agora ou deixo ficar a folha".
Dei meia volta, andei, andei e pensei: "queres ver que agora não encontro a merda da folha?" Encontrei, claro.
E sim, podia ter sido um momento de catarse, comigo a resgatar todas as oportunidades que me escaparam, porque não parei, ou não voltei atrás quando deveria. Mas foi só um momento infantil.
E a folha só é cor-de-rosa de um lado.

De volta ao básico

15.10.18

Tenho umas certas saudades da vontade de vir contar coisas da minha vida. Não sei se esta falta de vontade tem a ver com os mergulhos que fui dando nesta onda new age do auto-conhecimento, ou se estou só deprimida. Em qualquer dos casos, talvez não seja errado concluir que o auto-conhecimento tem efeitos secundários negativos.
Se não, nem imaginam o relato que teriam da minha estadia num daqueles hotéis absolutamente cinematográficos, únicos e quase decadentes como são os hotéis das termas. Ainda há hotéis de três estrelas sem uma única peça do Ikea, faziam ideia? e salinhas espalhadas pelos diferentes andares com livros e revistas e outras com mesas de jogos. Sempre adorei mesas de jogos, por serem tão absolutamente inúteis quanto são apreciadas.
Saí de lá a pensar que tinha de enviar uma mensagem a uma amiga que trabalha na Vogue Portugal a dizer que tinham mesmo de fazer um Editorial nas termas. Eu sei que já se anda a tentar, há uns anos, modernizar o conceito chamando-lhes spa e acrescentado nomes chiques aos tratamentos, mas o regresso dos momentos áureos das termas é agora. Parece-me.
Também escreveria sobre  Fica no Singelo, a maravilha que é ver corpos a interpretar daquela forma, a mostrar que na essência da dança, seja ela de que tipo for, está sempre a mesma força vital, uma espécie de energia primordial.
E não deixa de ser curioso estar a ver bailarinos a explorar os universos da dança e da música tradicionais portuguesas, uma semana depois de uma breve incursão pelas paisagens das curas termais. É como se me estivessem a gritar aos ouvidos back to basics (estava a ver se encontrava uma expressão em português assim sonante, uma expressão à Mário de Carvalho, mas não me ocorre), só é pena haver tanto ruído à volta.

Não há como ser mãe sem ser louca

25.9.18

Passou mais algum tempo (tem passado cada vez mais entre um post e outro) e eu continuo sem nada de muito relevante para dizer. A partir de que momento comecei a traçar a fronteira entre o relevante para partilhar e o não relevante? Não faço ideia.
Mas continuo a escrever, mesmo quando não escrevo. Como quando estou a comer bolachas recheadas de chocolate, que não me sabem bem, a olhar para a televisão e a escrever. Ou quando estou sentada no chão do quarto a olhar para a capa do livro, na foto ali em cima, e a escrever. Curiosamente, a ouvir a cantoria esganiçada do casal na esplanada do café, para entreter a criança sentada no carrinho, não me dá vontade de escrever. Faz-me pensar nas "pessoas a dormir com a cabeça em cima da mesa, crianças a brincar, homens a cantar, mulheres a falar alto, a fazer-nos rir" do Miguel Esteves Cardoso, lembra-me de mim própria a entoar o Olha a Bola Manel, quando as crianças eram mais pequenas, pensar  que o rapaz não deve ser o pai da menina no carrinho, mas não escrevo. 
Seja como for, acabei de ver o Tully e não estava nada à espera deste filme. Tinha visto a apresentação, decidido que queria vê-lo e pouco mais. Pois bem, vi-o e achei que precisava de deixar de escrever só na minha cabeça, que a certa altura é capaz de ser preciso ver as palavras escritas. Estava a ver o filme e a pensar que a minha ideia da maternidade estava ali muitíssimo bem retratada. Não há como ser mãe sem ser louca. 
"Os pais são todos loucos", disse-me uma vez um pediatra e eu, no auge da minha loucura de mãe de  primeira filha, achei o comentário completamente despropositado. Até porque só lhe tinha perguntado quantos dias é que um bebé podia aguentar sem dormir. Ora, se eu não dormia por causa do bebé, logicamente era porque o bebé não dormia, logo poderia morrer por privação do sono. Juro que não percebi a cara de espanto do médico, quando eu estava a fazer tanto sentido.
Enfim, não sei se a loucura pelos filhos (diferente da loucura por causa dos filhos mas com pontos comuns) beneficia alguém que não os profissionais de saúde mental mas, para mim, é claro: Não há como ser mãe sem ser louca.

Tenho dificuldade em entender a poesia

11.9.18

O almoço de sábado ilustra bem o que anda a acontecer (parece que as pessoas que arrotam postas de pescada na net sabem tudo sobre tudo mas não é o meu caso, eu só bebo vinho e sei de coisas, como o Tyrion Lannister). Então, fomos almoçar ao Malcriado, um restaurante em Matosinhos que ficou com este nome depois de Burmester (suponho que o Gerardo) ter sido mal tratado pelo dono, o ex. jogador do Boavista Arménio Duarte. Éramos os únicos clientes, como já tinha acontecido da primeira vez que lá comemos.
A D. Linda, que ficou a tomar conta do restaurante e da grelha, depois da mãe morrer, deve ter percebido o nosso desconcerto e contou-nos que desde que foi obrigada a retirar a grelha da frente do restaurante as pessoas não entram. "Tenho os meus clientes habituais", disse ela, acrescentado os nomes e as respectivas profissões, dos menos conhecidos, e um ou outro detalhe dos gostos gastronómicos dos mesmos, "mas os turistas que passam não entram", concluiu com um encolher de ombros pouco convicto.
Eu acho estranho alguém preferir ficar à espera de mesa, e do peixe que sairá do grelhador de um daqueles senhores exaustos e suados, a sentar-se num restaurante sossegado e comer um robalo saído da grelha (agora nas traseiras do restaurante) de uma senhora loira que parece levitar - e levar tudo à frente dela ao mesmo tempo.
Por exemplo, duvido que algum dos homens da grelha dos restaurantes mais procurados em Matosinhos viesse levantar o prato da mesa e dissesse entre dentes, mas alto o suficiente para se ouvir: "tssss tssss, esta juventude não sabe comer peixe, é sempre a mesma coisa".
Esta juventude é mesmo um bocado difícil de perceber, às vezes, como quando se vai ao piquenique dançante da Casa das Artes e começa-se a abanar o corpo com um certo entusiasmo, talvez exagerado, concedo, ao som do Johnny Hooker e a nossa filha nos olha com um certo desprezo e diz: "vê-se mesmo que nunca foram a uma Pride Parade".
Seja como for, estávamos lá por causa do Valter Lobo. O Valter Lobo é aquilo que eu imagino que seja a poesia (é, eu tenho dificuldade em entender a poesia). Vão lá ouvir, se não conhecem, "Quem me dera", ou todo o album Mediterrâneo.
O jardim da Casa das Artes não estava vazio, como o Malcriado, mas surpreendeu-me não haver muito mais gente, nem que fosse pelo Hooker, que esgotou na Music Box, no dia anterior. Surpreendeu-me mas agradou-me muito. Estava, provavelmente, o número certo de pessoas para criar o ambiente certo para nós, ali sentados na manta, e para as crianças a correr com as outras crianças e até para a jovem que não sabe comer peixe e começou a stressar com o check sound (mas eu é que fiquei de trombas no desenho).

Balanço

23.8.18
Está a chegar ao fim mais um ano. Eu sei que não sou a única pessoa a considerar que o ano começa em Setembro, por causa do ano lectivo. E não, não é (só) por causa dos filhos em idade escolar. Desde que vou à escola sinto essa divisão do calendário.
Portanto,  seguindo esta ordem de ideias, acho que posso dizer que este foi um ano complicado (ou filho da puta, como lhe chama o Jaime): um acidente quase mortal, a filha adolescente que deixou de poder contar com a pessoa que lhe garantiu apoio para terminar o secundário em Lisboa, uma operação de urgência e a única pessoa da família com rendimento fixo ficar sem emprego é capaz de ser uma mistura de acontecimentos suficientes para comer uvas passas e pedir desejos de ano novo com a mesma voracidade com que o nosso mais novo come chocolates.
Curiosamente não consigo ver o ano que está a terminar como mau. E isto é quase irritante (eu tenho um fraquinho por pessoas boémias e com adições, por isso as pessoas Zen sempre me irritaram um bocadinho), mas estarmos todos aqui e juntos (eu sei que para ti não é tão bom quanto para mim, Bea, mas deixa-me usufruir mais um bocadinho, sim?) é o fim d' ano perfeito.
Melhor do que isso é estarmos juntos e a reinventar uma nova vida. Ou seja, está tudo bem.
2017/18 foi, aliás, o ano em que tudo voltou ao normal: Portugal ficou em último lugar na Eurovisão, o FCP foi campeão, fizemos uma pequena viagem, sob temperaturas inumanas, ao mundo dos neandertais (que copulavam com denivosanos, mas isto fiquei a saber depois), a Madonna mudou-se para Portugal e está frio na Póvoa, em Agosto.

Arroz Pica no Chão

8.8.18



Há cada vez menos blogs de gente que vem contar o que pensa sobre determinado assunto, ou que vem só desabafar (seja porque se acha espectacular, ou porque só quer sentir que faz parte de alguma coisa), não é?
Pode ser impressão minha, porque alguns dos blogs que mais gostava de ler acabaram, mas acho que não. Há uns anos dizia que isto, a febre dos blogs (escrevia blogues na altura), estava a começar outra vez, só não sabia é que iam seguir a tendência da profissionalização e os que não fossem por aí terminariam.
Eu também já não tenho a mesma ânsia de vir aqui todos os dias vociferar/partilhar/realizar pensamentos mas continuo a sentir que devo fazê-lo (pode ser que dê jeito à minha biógrafa [agora imaginem que eu tinha um blog por me achar espectacular], apesar de manter um diário manuscrito).
A propósito de partilhas, estive na semana passada a ver as gravuras de Foz Côa e a pensar no que terá levado aqueles homens a desenhar bonecos sobrepostos em determinados sítios, quando na mesma rocha tinham muito mais espaço para o fazer. Depois ocorreu-me que sempre imaginei homens a desenhar e não mulheres. E que tudo o que estávamos a ouvir sobre o assunto, ainda que baseado em muitos estudos científicos, era uma falácia. Parecia mesmo que os gajos estavam só a "crossar", como dizia a Bea. Mas já delirávamos, estavam mais de 40 graus, afinal.
Antes de descer a Penascosa, espreitámos a exposição do Júlio Pomar no Museu. Daqui a 20 mil anos estarão os vindouros a olhar para as matrizes das gravuras deste artista (suponho que as telas não sobrevivam)? E o que pensarão da arte desta época, se ainda existirem humanos?
Céus, sou tão século passado! Nem considero a probabilidade da informação digital sobreviver a quase tudo. Logo eu que mantenho um blog para a minha biógrafa.
Talvez seja mesmo uma coisa geracional. Os blogs estão para as redes sociais, como o arroz pica no chão está para os novos gourmet, mas eu ainda preciso de estar aqui. De todas as coisas que fui fazendo, como tricotar meias (é verdade, agora que já não vivo num país tropical, posso voltar ao tricot), fazer mantas patchwork, passando por um negócio de amor ao Porto, este blog é o único que se mantém.

P.S Obrigada pela foto Joana Leandro

Cheguei ao futuro

27.7.18
Fiquei fascinada com a ideia da  Biblioteca Brautigan quando li sobre ela no "Bartleby & Companhia", de Vila-Matas. Trata-se de uma biblioteca que reúne manuscritos que nunca foram publicados, depois de terem sido recusados pelas editoras.
Saber que há um sítio onde se guardam "livros abortados", deu-me vontade de criar um sítio idêntico para os meus artigos abortados.
Na verdade, ao longo destes anos coleccionei mais ideias que nunca chegaram a ser artigos, do que artigos já escritos mas, por qualquer razão, apetece-me inverter o paradigma. A acreditar neste artigo do El País (de 2014), no futuro escrever-se-ão brautigans como agora se escrevem novelas, por isso acho que já estou no futuro.
Os meus brautigans vão estar ali na página com o mesmo nome.

Ah, as férias!

17.7.18

Nota-se muito que começaram as férias? As férias das crianças, claro, porque eu estou há imenso tempo de férias, como se sabe. A novidade é que agora estamos todos, sendo que os únicos com obrigações de horários nos últimos tempos foram as crianças. Portanto, elas estão de férias e nós estamos a tentar não lhes chatear muito o descanso. Ou seja, é birras todos os dias! É que nunca fazem o que queremos. Nunca. Esperneamos, argumentamos e até choramos e elas: nada. Não se comovem nem um bocado. Até nos disseram no outro dia "tu não pareces um pai" e "tu não pareces uma mãe" em diferentes ocasiões. Temos lá culpa de precisar de levá-las ao pediatra e ao dentista, ou de ter de lhes dar legumes. Dizem que comem sopa todos os dias, DUAS vezes por dia, o ano todo e que têm de se deitar cedo por causa da escola e que agora se não há escola podem ir dormir mais tarde e que se estão de férias não percebem porque têm de comer sopa. Nós batemos o pé, esbracejamos, damos murros na mesa e gritamos mas elas sempre impávidas e serenas. A mais velha, naquele limbo entre a empatia pela situação dos irmãos e o desespero dos pais, mais parece o Dwayne.
Um dia destes levámos com o famoso (i.e. merdoso) nevoeiro da Póvoa (não tão "famoso" como o vento, claro) e achámos que seria interessante ir ver a exposição da Frida kahlo em vez de ir à praia. É claro que as crianças tinham outros planos. Não passaram o ano todo a trabalhar para agora se meterem num carro durante 20 minutos para ir ver uma exposição. "Uma exposição?!? a sério que viemos até aqui para ver uma exposição quando eu estou cheio de fome?", grunhiu o mais novo, que dentro do CPF ainda achou que devia referir que conhecia perfeitamente"aquela senhora", das aulas de artes, e que continuava com vontade de ir embora, porque tinha fome.
Começou-me a tremer o lábio e os olhos a saírem das órbitas mas eles sempre naquela espécie de calma, tanto a recusarem perceber do que tratava o documentário da sala quatro, como a mostrarem as incríveis habilidades no parque infantil da Cordoaria, enquanto o pai foi a correr à procura de um multibanco. Eles tinham fome, ou o mais novo tinha fome (lembram-se?) e nós demorámos muito tempo a chegar à esplanada das Virtudes.
Felizmente bebemos vinho suficiente para aguentar até à festa de apresentação dos novos equipamentos do Futebol Clube o Porto, que ficava a caminho da Conga, onde comemos as bifanas necessárias para subir à Torre dos Clérigos e a seguir ficámos cansados o suficiente para não querer saber das reclamações deles.
Fazemos sempre tudo o que eles querem, não percebo porque se queixam tanto.

Aflições

23.6.18
Dei por mim num daqueles armazéns gigantes, com produtos maioritariamente da China, por causa de uma peruca para o espectáculo do fim de ano da escola e, como esperava, saí de lá com dores de cabeça e taquicardia. É uma aflição fazer compras, sobretudo em sítios assim.
Fazer compras no mercado é muito mais tolerável, porque podemos trazer"sardinhinhas" da nossa costa, pescadas no tempo certo, legumes dos produtores locais e alguma carne de animais criados ao ar livre. É claro que ver as galinhas que estarão "no ponto daqui a uma semana", no telemóvel do talhante, faz-nos engolir em seco. É um aflição pensar nisso.
Também é uma aflição ouvir a gata miar desesperada a meio da noite. O google diz que na velhice os gatos tendem a vocalizar mais quando perdem algumas capacidades cognitivas. Que ela está um bocado surda parece-me evidente.
Fui almoçar com a Bea a um dos meus restaurantes preferidos da Póvoa. Ela não gostou da comida. É tão aflitivo (por ser tão familiar) vê-la desinteressada de tudo, ou quase tudo.
Vivo numa aflição constante que tento combater com caminhadas, vinho, pranayamas, meditação, piscina e vinho (já tinha dito vinho?). E tentar que a minha aflição não aflija as pessoas à minha volta é uma aflição ainda maior.
Mas diz que chegou o Verão (ouvi na rua uma mãe a dizer a uma filha: "é só uma chuva tropical" e quase me atirei ao chão a rir às gargalhadas, depois esbofeteei-me por causa da minha pretensão), e as vantagens de viver com estações começam a escapar-me. Nem com o clima podemos contar, a não ser para nos queixarmos. Mais aflições, portanto.
E depois há que relativizar, não é? Só que eu mal saí do processo "sou a pior mãe do mundo, a pessoa mais mal sucedida à face da terra", portanto não quero voltar às comparações. Quero sentir-me felizarda pelo que tenho conseguido.
E, entre a aflição e a intemperança, tenho-o sentido muitas vezes.

Cartas da Póvoa #2

18.6.18
Querida Bea,

Terminou o ano lectivo. O mais desafiante e estranho ano lectivo de todos até ao momento. Cometeste erros, divertiste-te, superaste dificuldades, desiludiste-te e aprendeste muito (espero). Estás cada vez mais autónoma, sem dúvida, mas não vem nenhum mal ao mundo se tiveres em consideração alguns conselhos meus, pois não? Se pensares bem eu até sou uma pessoa com bom senso (espero).
Nunca duvides que tenho, temos, muito orgulho em ti e não é por seres mais ou menos arrumada que isso vai mudar.
A sério, não precisas de arrumar se isso vai contra a tua religião, ou filosofia de vida, mas como já te dissemos algumas vezes há certas práticas que ajudam a preservar os utensílios que fazem parte do dia-a-dia. Por exemplo, se o forno nunca, ou muito raramente, for limpo provavelmente terá de ir para o lixo daqui a uns tempos. Em muito menos tempo do que se for limpo de vez em quando, quero eu dizer.
E tentar que tudo aquilo que usamos dure mais tempo é uma das atitudes mais ecológicas que podemos ter. Sim, eu sei que não comes carne mais por questões éticas do que ecológicas mas umas e outras cruzam-se.
Depois, quando te digo que há mais vida para além dos amigos e de namorar, eu sei que é difícil acreditar, muito por que não há assim tanto mais, na verdade, sobretudo quando se tem 17 anos, mas há todo um percurso que precisas de trilhar para chegar onde queres, mesmo que não saibas ao certo o que fazer com a tua vida.
E também é sempre bom não esqueceres de onde vens, o que te trouxe até aqui. Mais do que o receio que tomes más decisões, que faças escolhas menos acertadas, custa-me que não escolhas a música seguinte nas nossas viagens de carro, que não sugiras o destino da próxima viagem connosco, que não peças aos teus irmãos para te deixarem em paz, que não tenhas aquelas conversas intermináveis, que eu deixava de ouvir a certa altura. É doloroso isto de deixar que vás à tua vida.
Neste teu percurso é bom que estejas a aproveitar a paisagem, a sorver todos os momentos, mas precisas de estar calçada, agasalhada para o frio e protegida do sol. Precisas de te alimentar e essas coisas que temos de ser nós, enquanto responsáveis pelo teu bem-estar, a providenciar. Mas nós não somos só os teus providenciadores, pois não? (não, pois não?)
Eu quero que tu vás até onde quiseres ir, mesmo não tendo a certeza até onde te levará essa vontade, e temendo que precises mais de mim do que eu e tu achamos que precisas, mas estou aqui para ti. Estarei sempre aqui para ti. Faz o teu caminho e fá-lo de maneira a que sintas orgulho nele.

Pelos olhos da gata

14.6.18
A Maia tem 18 anos e quatros anos depois estamos juntas, outra vez. Às vezes olho para a gata e imagino como será estar no lugar dela a olhar para mim.
Já estou a ver o filme e tudo, através de uma câmara ao nível dos olhos dela. Talvez fosse melhor ser uma curta, porque isto de estar a olhar para pés e pernas de pessoas nas suas rotinas, para mãos em teclados, vistas de janelas, gosma com pêlos a sair da boca pode tornar-se aborrecido numa longa-metragem, mas esta é uma gata muito peculiar, sabe-se lá se não tem uma forma de ver as coisas mais interessante do que a mente de uma pessoa, por mais criativa que seja.
Ela viu-me chegar a casa com três bebés em três casas diferentes. Viu-me chegar a casa depois de noitadas na Tendinha, na Casa Independente, no Bairro Alto. Chegar de viagens, de fins-de-semana. Viu-me sair para casamentos, entrevistas de emprego, festas de aniversário. Viu festas de aniversário em casa. Tantas! Viu-me correr atrás dela tresloucada pronta para a esganar. Assistiu a discussões e serões com música, serões com filmes e serões gastronómicos seguidos de manhãs esquizofrénicas.
Caramba, isto era capaz de dar um bom filme.

Mariana

9.6.18
Uma mãe e as duas filhas. Quantas vidas cabem nesta frase? Há tantas, tantas variáveis,  tantas histórias possíveis.
Mas estas são a Raquel, a Mariana e a Alexandra e a história delas é real. 
A Raquel foi mãe há 11 anos e dois anos depois descobriu que a Mariana tinha autismo. A partir daí dedicou-se a aprender tudo sobre esta perturbação do desenvolvimento e a ajudar a filha a progredir. Enfrentou muitas dificuldades  mas mesmo assim teve coragem de ter outro filho. Nasceu a Alexandra, com quem pode falar, de quem pode ouvir queixas numa linguagem comum e com quem pode ter uma relação mãe-filha mais padronizada. 
Pouco depois divorciou-se.
Há cerca de um ano descobriu que a filha mais nova, então com cinco anos, sofria de diabetes tipo I.
Uma mãe abnegada e duas filhas, uma autista e outra com diabetes tipo I.

Entretanto, e depois de uma formação integrada no programa Son-Rise*, a Mariana foi seleccionada para um Intensive Program, no Autism Centre, nos EUA. E é por essa razão que estou a contar a história destas três raparigas.
É que esta terapia/formação de cinco dias tem um custo total que ronda os 15 mil euros e a Raquel com o salário de bibliotecária não consegue comportar esta despesa sozinha. Há familiares e amigos dispostos a contribuir com o que puderem, claro, mas feitas as contas não conseguimos chegar ao valor necessário. Por isso, estamos a organizar um lanche solidário no jardim da biblioteca de Santo Tirso, onde a Raquel trabalha, no dia 30 de Junho, a partir das 14h30. 
Apareçam por lá. Seria bom saber que este blog serve para alguma coisa (além de sanita). 
Quem tiver vontade de contribuir mas não puder ir a Santo Tirso, pode fazer uma transferência para a conta** da Mariana.
A Mariana filha da Raquel, uma mãe abnegada que tem a certeza que a filha mais velha vai conseguir falar, e irmã da Alexandra que sabe que as três vão viver felizes para sempre. 

*O Son-Rise Program assume o autismo como uma perturbação de interacção social e não coloca o foco da sua intervenção no aspecto comportamental. Assume que existe sempre a capacidade de recuperação de competências sociais e de independência através do desenvolvimento de uma relação com a criança, focada na conexão intencional para que ela consiga mostrar-nos o seu mundo e a partir daí nós a convidarmos a conhecer o nosso.

** Mariana Rocha Pinto - IBAN PT50 0045 1210 4029 9083 3254 5

Ser mãe

29.5.18
No fim-de-semana tivemos a feliz ideia de ir ver onde nasce o rio Tua. Uma desculpa como outra qualquer para irmos comer alheiras e posta à mirandesa à origem.
E já que íamos para Trás-os-Montes nada como aproveitar para estarmos mais próximos da Natureza.
Já lá estávamos no alpendre da casa onde dormimos, a beber vinho saído das proximidades, enquanto as crianças corriam livres e descalças, claro, quando o Nicolau se aproximou e perguntou se podia ter formigas como animais de estimação (antes tinha tentado com um escaravelho, sem sucesso). Nós dissemos que seria muito difícil, mas não quisemos dissuadi-lo. Ele acabaria por perceber sozinho.
Passados poucos minutos ele aproxima-se com o copo das formigas e começa a esmagá-las.
- Nicolau, estás a matar as formigas?
- Sim, vou comê-las?
- Mas não se mata animais de estimação!!
- Queres que as coma vivas?
Ora bem, eu não queria que ele as comesse, vivas ou mortas , mas fiquei sem saber o que responder ao certo. Nós comemos porcos, vacas, galinhas e outros animais que são mortos para o efeito, portanto fica difícil argumentar.
Esta capacidade que eles têm de me desconcertar surpreende-me sempre e é muito por isso que ser mãe é tão extraordinário.

Aborrecida

18.5.18

Nas minhas caminhadas costumo encontrar um casal a beijar-se. É sempre um casal diferente mas quase no mesmo sítio, no passeio à beira mar, em frente a uma esplanada fechada. E todos beijam-se como se se despedissem.
Olho para os prédios do outro lado e imagino que há ali uns quantos apartamentos que todas as manhãs ficam vazios, mais vazios que os outros, com a roupa da cama a cheirar aos corpos que se beijam, agora, já lavados e vestidos.
Estranho não ter encontrado casais que se beijam nos passeios nas outras cidades por onde caminhei tantas vezes.
Às vezes cruzo-me com um senhor que anda com um rádio portátil ao ombro. Não consigo identificar a música que ouve.
Hoje fui molhar os pés na água gelada do Atlântico.
Talvez não esteja a tornar-me na pessoa aborrecida que pareço.

Causa e efeito

11.5.18
Haverá, com certeza, evoluções sociais, revoluções económicas, conjugações astrológicas que justifiquem isto de estarmos todos na mesma altura a olhar para a nossa vida, a tentar entender o caminho percorrido e a pensar no que fazer a seguir.
Há quem lhe chame meia idade, parece. Ou condição humana. Ou ainda a angústia do contribuinte na altura de preencher o modelo 3.

Depois, há quem esteja, como a criança mais nova aqui de casa, a tentar compreender como isto tudo começou:
- Há uma coisa que eu não compreendo, mamã
- O quê?
- Todas as mães nascem das mães, não é?
- É 
- Até mesmo os pais, não é?
- É
- Então, como é que a primeira mãe teve filhos se o pai ainda não tinha nascido para lhe dar sementes?
Estive quase para lhe dizer que há muito, muito tempo as mulheres não precisavam dos homens para engravidar, como n'A Fenda, da Doris Lassing, mas o Isaac que estava a ouvir a conversa rematou com um: "Oh Nicolau, mas não vês que quando Deus fez a mulher também fez um homem?"

Voltando à meia idade, recebi uma mensagem da minha rica filha com um vídeo, que dizia: "És tu tal e qual". Quem me conhece, e quem já leu aqui centenas de posts sobre a minha luta com a domesticidade, sabe que não sou nada assim ("não eras", diz ela, a minha rica filha, sublinhado e tudo com o tom certo de voz), mas é um facto que agora tenho necessidade de ter mais arrumação à minha volta do que há uns anos. Que raio de pessoa me estou eu a tornar? 
Em conversa com o Jaime desabafava que nos últimos 10 anos a minha vida mudou radicalmente (o que eu adoro exageros!). Tenho menos amigos; estou quase "maníaca" das limpezas e tenho sono antes da meia-noite. Isto para referir as coisas más, logo a seguir atirei com as boas (parece que a meditação funciona mesmo): um grande amor na minha vida; mais resolvida e segura em muitos aspectos; uma família feliz.
O que não percebi na altura, até porque não conseguimos terminar a conversa, foi a provável relação causa e efeito entre umas e outras.

Entretanto apontei no meu caderno que tenho de ler Debaixo do Vulcão, por causa da frase "No se puede vivir sin amar". Há muitos livros que fiquei com vontade de ler por causa destas entrevistas que a Céu anda a fazer, mas este de Malcolm Lowry senti que era obrigatório.
Deve estar tudo relacionado.

Séries

15.4.18

Nas férias da Páscoa a minha filha viciou-me na série do momento, La Casa de Papel, e ontem, enquanto via quatro episódios de seguida, com a mesma voracidade com que emborcava a garrafa de vinho, pensei que alguma coisa essencial há-de ter mudado desde que podemos ver séries assim.
Além das normais diferenças geracionais, entre mim e a minha filha há um grande fosso. Tem de haver, porque uma geração que cresce sem ter de esperar uma semana para ver Ficheiros Secretos é totalmente diferente de nós. E a nossa tendência é olhar para eles com uma certa sobranceria, claro, mas também, no meu caso, com espanto e desconcerto.
Olho para ela e vejo-me com a mesma idade, só que a ver todos os episódios seguidos das séries que quiser, e ensaio dizer-lhe tudo o que está a fazer de errado, indicar-lhe um caminho de gente que espera uma semana para ver Ficheiros Secretos, mas isso não faz lá muito sentido.

Ainda por cima não se ensina a saber esperar, digo eu que estou aqui em ânsias a poucas horas de ir ao aeroporto ter com o Jaime.

45

5.4.18
A ironia de ter vindo parar à minha cidade de origem aos 45 anos, quando nunca quis viver aqui, deve ter um significado qualquer, provavelmente relacionado com a falta de ar, que voltou, e o medo de ceder ao establishment. Mas talvez tenha estado enganada este tempo todo a achar que não fazia parte dele, daí a falta de ar.
Seja como for cheguei a uma idade que me põe a pensar como cheguei aqui e é estranho, porque olho para a miúda que tinha medo de anjos aos 8 anos, para a que achou que seria freira aos 12, a que viu a vida desmoronar-se aos 13, quando o pai morreu, a que se enojou com a sensação de uma pila na mão aos 16, a que julgou morrer de amor até aos 20, a que se apaixonou aos 23, a que foi mãe aos 28, a que descobriu os prazeres do sexo depois dos 30, a que encontrou o amor de uma vida e reconciliou-se com a maternidade depois dos 35, a que foi para Timor-Leste aos 42 e não tenho a certeza de ter sido sempre a mesma pessoa que está aqui agora. 
É claro que isto para ser um post como manda a lei das redes sociais punha aqui uma foto do meu dia de anos, mas às vezes não há como evitar ser uma fora da lei.

Mãe

19.3.18
A minha avó, que continua agarrada à vida com unhas e dentes, ainda que as unhas estejam nuns dedos com osteoartrite e os dentes numa prótese acrílica, chama pela mãe quando delira.
É quase sempre antes do sol nascer, esse momento da madrugada que nos põe entre mundos, que se ouve a minha avó: Ó mãe, ó mãe, mãeeee.
Cresce uma aflição ouvi-la e depois a ver a filha, a minha mãe, a responder-lhe ao chamamento.
É dia do pai, eu sei, mas a minha vida tem sido feita de mães. 

Cartas da Póvoa #1

5.3.18
Jaime,

Comecei por escrever "Querido Jaime" mas depois soou-me estranho. Serei assim tão pouco afectuosa, ao ponto de não me lembrar de te chamar querido, alguma vez? Bom, talvez seja melhor não responderes a esta pergunta.
Quando comecei esta coisa das cartas para encurtar a distância entre mim e a Bea estava longe de imaginar que estava a pouco tempo de ficar mais próxima dela e mais distante de ti. 
Mas eis-nos aqui às voltas com mais um Cisne Negro. Confesso que depois do impacto deste acontecimento imprevisível, estou ansiosa pela "explicação que o faz parecer menos aleatório e mais previsível do que aquilo que é na realidade". Já vais avançado na leitura do livro, ou nem por isso?
É das poucas coisas que gosto em mim, a de continuar a acreditar piamente que os livros têm todas as respostas. 
Faz hoje precisamente duas semanas que saíste daqui e ainda não conseguimos descobrir a hora certa para nos encontramos na pontas dos dedos. E isto quase que podia ser sensual se não metesse telemóveis e conversas desencontradas mas, bom, ele há gostos para tudo...
Parece que estás longe há imenso tempo e, no entanto, ainda não passou tempo suficiente para me sentir familiarizada com a tua ausência.
O que mais me custa é não saber o que estás a pensar, a sentir, o que te faz rir, o que te exaspera, o que te enternece. Ou seja, o que me custa na tua ausência é a falta da tua presença. Não gozes, a gramática nem sempre está preparada para o que queremos dizer.
Às vezes, muitas vezes, consigo estar um bocadinho contigo nas coisas que me escreves mas tens escrito pouco, contado pouco.
No outro dia, depois do Correntes d' Escrita, dei por mim a pensar no monte de banalidades que teria partilhado contigo. Sabias que o João Tordo é gago? E o Valério Romão, sabes, que escreve sobre família é um gajo, pareceu-me, que apreciaria jantar cá em casa. Não mais do que nós apreciaríamos jantar com ele, obviamente. A Isabela é diferente do que imaginava e o texto que o Sandro William Junqueira leu surpreendeu-me.
Sobre o evento só te disse que tinha gostado muito e não me demorei no assunto, mas se estivesses aqui provavelmente tinha inventado uma relação entre os cactos da Isabela, o escaravelho do Valério, as mulheres do Mû Mbana e o Mar da Ana Margarida de Carvalho. Contei-te que a audiência do Cine-Teatro Garret começou a cantar espontaneamente "O mar enrola na areia"? Os poveiros se não existissem tinham de ser inventados (e nunca esta expressão fez tanto sentido)!
Os miúdos estão bem, parece-me que cisnes negros são uma coisa muito mais natural para eles. Eu é que continuo às voltas com as escolhas e as decisões que tomamos a pensar neles, mas o Nicolau tem dado umas pistas com aquela do "nós só queremos ter uma mãe feliz!" e  a outra, "o problema é nós não sabermos que coisas te vão chatear".
Na semana passada fiz uma massa de frango que terias apreciado, apesar de ser uma especialidade tua. Hoje vou cozinhar amêijoas, mas daquelas congeladas que já vêm sem casca. Deve resultar bem num arroz malandro. 

O tempo que faz lá fora

28.2.18

Ontem comecei este post:
Suponho que era uma questão de tempo até este blog se tornar novamente na caixa de lamentos de uma mãe neurótica.
É da chuva de certeza, desta chuva que cai em pingas mortiças a lamentar-se, e deste cinzento do ar.
Hoje, dei por mim a sair da cama e a barafustar baixinho com a pressão da água que sai do chuveiro, com a roupa espalhada no chão, com as crianças que insistem em ignorar-me olimpicamente - aqui já não tão baixinho assim.
Iogurtes ao pequeno-almoço e eu a olhar para eles a pensar, vocês acham isto tudo normal, não é?
Quando saímos não chovia, fomos a pé para a escola a dizer a tabuada. Hoje foi dia da tabuada do 4 e eu a olhar para eles a pensar, as pessoas trabalham, mandam os filhos para a escola e depois eles crescem para trabalhar e mandar os filhos para escola. Podem não ter filhos, é certo, mas em princípio terão de trabalhar. Ou não, o mundo está a mudar. Mas enquanto não muda é assim e acordamos todos os dias para fazer a mesma coisa. E às vezes, muitas vezes, chove e o dia está cinzento. Já não me lembrava que os dias podiam ter esta cor.

Acabei por não publicar o post porque li qualquer coisa sobre a Síria e pareceu-me insultuoso estar a falar do tempo.
Entretanto, hoje, comecei a ler o Expresso Curto escrito pelo Ricardo Marques e pareceu-me que ele começou o texto com uma boa conclusão para o meu: "Há poucas coisas tão simples e tão complicadas como o tempo que faz lá fora numa manhã como esta. É o inverno, e o inverno é assim. É feito de chuva, de neve, de vento forte e de mar bravo, de trovoadas e granizo e frio. Há escolas fechadas, estradas cortadas, acidentes de trânsito e pessoas a quem acontecem coisas más. Muito más. Mas olhamos pela janela como quem olha para o mundo. E aceitamos. Faz parte da vida."
Com a continuação da leitura do Expresso Curto percebe-se que o assunto do tempo é bem mais grave do que pode parecer à primeira vista, mas não era do tempo que eu queria falar.

Caiu uma tristeza em mim

22.2.18
Ontem, não sei se a sonhar se acordada, estava em Díli. Foi tão real a visão da rua da nossa casa, das buganvílias a sair pelas grades, das motas a circular, dos alunos da escola do Farol a comerem no passeio, que me assustei. Abri muito os olhos e pensei que se calhar o Jaime estava finalmente em Timor, depois de uma viagem atribulada, e que eu conseguia ver o que ele via. Não foi nada disso, claro.
Depois, "caiu uma tristeza em mim", foi como lhe descrevi o meu estado, não sei se por estarmos outra vez longe um do outro, se por sentir falta de Timor. 
Com este recomeço em Portugal, e tudo o que isso tem implicado, não tenho pensado muito no que ficou para trás. Penso nas pessoas, no cão, na força daquela natureza que vai ficar para sempre entranhada em mim, mas agora estou aqui. E estou bem. 
Mesmo assim, "caiu uma tristeza em mim", ainda antes do Jaime me descrever como foi entrar em nossa casa com a árvore de Natal por desfazer, porque os miúdos queriam que eu a visse quando chegasse, com os desenhos deles nas paredes, os brinquedos no quarto e as nossas roupas penduradas. 
Gostava mesmo de perceber como é possível termos tantas casas. Casas realmente habitadas por nós, ou partes do nós. Também gostava de perceber a matéria da terceira classe, ou melhor, do terceiro ano, mas não se pode ter tudo, não é? (eu sei que parece mas não é uma pergunta de retórica)
"Caiu uma tristeza em mim" e por isso não fiz nada do que queria, ou precisava de fazer. Bem, fiz o bolo de iogurte com raspa de limão para a lição 100 das turmas deles e não me esqueci de o levar para escola, pus a lavar e estendi dezenas de máquinas de roupa para aproveitar o sol e fiz quiche para não deitar fora os cogumelos murchos. Mas ainda não fui assistir a uma mesa do Correntes d' Escrita, não mudei o header do blog, não dei seguimento às histórias começadas.
As tristezas podem cair ou ficar lá onde costumam estar que eu, pelos vistos, não deixo de fazer listas.

O sítio das coisas preciosas

14.2.18
Há uns anos escrevi um conto que se chamava "O sítio das coisas preciosas" (e eu que achava que até tinha jeito para títulos!). Lembrei-me dele porque em conversa com uma amiga da Bea, que vive na mesma casa desde que nasceu, apercebi-me que até sair de casa também vivi sempre na mesma, excepto quando foi deitada abaixo para ser construída uma melhor.
Depois comecei a contar as casas onde já viveram os meus filhos e desisti a meio. Virei costas à angústia que vinha instalar-se e ouvi a poupa que frequentava o quintal da casa provisória onde vivemos até a outra ficar pronta.
Lembro-me desse período, que durou uns dois anos, nem isso, como um dos mais felizes da minha infância, mas não foi essa a casa que incluí no tal conto.
Não há como saber o que levarão eles da infância, pois não?

"Na casa havia escadas. As escadas de fora e as de dentro. As de fora, em cimento, davam para um pequeno patamar com três portas: a da sala, a da cozinha e a da retrete. As de dentro, em madeira, ligavam a cozinha ao coberto. Todos os que viviam na casa tinham caído nas escadas de dentro. Nunca ninguém se aleijou.
A casa tinha uma sala, dois quartos e a cozinha, em cima. Em baixo, o coberto com os teares e os farrapos.
Havia sempre caruma, porque era preciso acender o lume para aquecer água e cozinhar.
Caruma e pinhas.
Havia também os copos da cristaleira e as cobertas de pôr à janela quando passa a procissão.
E havia canteiros com flores: dálias, malmequeres e cravos. As flores eram para o cemitério.
Havia a pá para tirar a borralha.
E um secador do cabelo. Não havia banheira, porque nem sequer existia um quarto de banho, mas havia um secador de cabelo. Ela detestava que a mãe lhe secasse o cabelo com o secador, porque lhe queimava as orelhas. Isto antes de lhe cortar o cabelo curto.
Em casa havia ainda muitos baldes, bacias e cântaros.
E um pipo com vinho dentro, que saía por uma torneirinha. Às vezes não tinha vinho.
Ao lado da casa estava o anexo, onde viviam a tia e as primas. Em cima do anexo secava o milho.
Um dia chegaram os camiões e os caterpillars e outros que não sabia o nome para deitarem a casa abaixo.
Ela chorou. A mãe disse que era para construírem uma casa melhor, mas ela não queria uma casa melhor. Queria aquela."

Contaminação

8.2.18
Em boa verdade não sou assim tão boa a mudar de vida. A mudar de casa, de país, de cidade e de rotinas sim, mas isso é mais acrescentar do que mudar, acho eu.

Podia era estar sempre como estou agora, com o Jaime em casa grande parte dos dias, os dois sentados frente a frente, cada qual no seu computador. "Já viste que o Álvaro Lapa vai estar em Serralves"?- pergunta ele. "A sério, quando?"- pergunto eu e depois mandamos sms à Bea e depois segue cada qual com os seus afazeres, não sem antes ir buscar o catálogo de uma outra exposição, a do Alvess, que vimos nesse museu, em 2008, e que nos pareceu espectacular.
E a vida parece perfeita até a rádio passar a música errada, ou o Jaime espirrar. Além de fotofobia, parece que sofro de misofonia.

Quanto aos afazeres dele não sei, os meus ficaram adiados mais um pouco, porque a seguir lembrei-me da exposição "Em viagem 70-76" de Robert Rauschenberg, que vi em 2007 e sei a data de cor, porque nesse ano fiz algumas reportagens giras no Museu de Serralves e porque logo a seguir a ter visto Rauschenberg no Porto encontrei-o em Nápoles, no Museu de Capodimonte. Não sei se foi esta coincidência, ou se a exposição em Itália era mesmo espectacular, sei é que nunca mais me esqueci daquele "Parsons Live Plants Ammonia", entre as cenas de consumismo do século XVII de Joachim Beuckelaer.

Eu fui à procura das obras no google, porque não me lembro se tirei fotos, provavelmente não era permitido, e eu sou muito bem mandada nos museus, mas mesmo que tenha tirado perdi-as.
A pesquisa não foi tão fácil como pode parecer, e foi muito mais demorada do que seria desejável, mas ajudou-me a perceber uma coisa. A contaminação que a curadoria desta exposição procurou é a mesma que quero para a minha vida. E isto não é assim tão filosófico-artístico como parece.
É só a constatação óbvia de que é tão melhor quando as pessoas têm tempo. Para estar, conversar, trocar ideias. Para se contaminarem umas às outras.

Da inutilidade

6.2.18
O meu computador chegou de Timor. Veio numa caixa de cartão sem a bateria e faço esta referência porque emocionei-me a desembrulhá-lo. Assim desmembrado, no meio de cartões e esferovite, era o retrato de um velho companheiro que passou certos tormentos para aqui chegar. Quase lhe perguntei: Então, meu velho, como está Timor? Já sabemos que uma coisa não é como uma pessoa que acorda num sítio e no dia seguinte acorda noutro sem que o corpo perceba como foi ali parar, mas pareceu-me cansado e feliz por me ver. Afinal, passámos muitas horas juntos, guardou uma infinidade de ideias e desabafos. Assistiu, talvez, a mais desesperos do que qualquer pessoa.

Chegou e a desculpa completamente esfarrapada que tinha arranjado para deixar o blog em suspenso deixou de existir.
Liguei-o e no meio das várias fotos espalhadas pelo ambiente de trabalho estava o diagrama do Ikigai que está ali em cima (ainda sem as minhas intervenções). Foi pouco antes de regressar a Portugal que li sobre este conceito japonês e quando olhei para o diagrama, e para tudo o que deixei no ambiente de trabalho, lembrei-me que quando desliguei o computador não fazia ideia que não ia regressar a Timor.

Sabia que a nossa vida nos trópicos tinha data de validade mas esta decisão foi tomada no seguimento de acontecimentos inesperados que foram surgindo quase em catadupa. E agora é começar tudo outra vez.
Um dia pode ser que descubra qual o meu Ikigai, para já sei que sou boa nesta coisa de mudar de vida.