Falta de ar

29.5.19
Nos dias de lucidez, que não são assim tantos, porque mesmo não estando sob efeito do poderoso analgésico dos assalariados tenho as mesmas preocupações da grande maioria dos seres humanos: alimentar os filhos, mantê-los saudáveis e instruídos, lavar e secar a roupa, acompanhar uma das séries do momento e salvar o planeta. Nesses dias, dizia, reparo como o mundo é simples.
Acontece-me reparar nisso em situações inusitadas, por exemplo, com a chávena de café, acabado de moer, nas mãos e o sabor e o aroma de Timor a despertarem sentidos que nem sabia que tinha, ou a olhar para as voltas da máquina de lavar com papeis, que hão-de ter saído de um dos bolsos de umas das calças, colados no vidro. 
É como se ficasse hipnotizada por instantes e visse o mundo tal como é: um magnífico acaso. O que me lembra uma das frases que sublinhei n'O Cisne Negro, e que é bastante apropriada a esta fase em que me falta o ar tantas vezes: ''Esquecemos rapidamente que o simples facto de estarmos vivos já é um extraordinário rasgo de boa sorte, um acontecimento remoto, uma ocorrência casual de proporções descomunais. Imagine um grão de pó ao lado de um planeta mil milhões de vezes maior do que a Terra. Esse grão de pó representa as probabilidades favoráveis ao seu nascimento; o enorme planeta seriam as probabilidades contra. Por isso pare de suar por coisas pequenas. Não seja como o ingrato que recebeu um castelo de presente e ficou preocupado com o bolor da casa de banho.''

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