Ser ouvidos

12.6.17

Andei uma semana pelos distritos (um dia escrevo sobre o que é que isso quer dizer, porque só quem vive, ou viveu, em Timor sabe exactamente o que significa), com três timorenses a fazer um levantamento sobre tais - os tecidos tradicionais.
Poupo-vos o chorrilho de frases feitas sobre o sorriso das crianças ranhosas, a hospitalidade das comunidades, a vida simples que parece seguir indiferente a carências várias.
Por um lado, porque eu própria não tenho tenho paciência para ler essas baboseiras, e depois de que serve sentir-me tocada pela vida dos outros quando sei que vou chegar a casa, mais cedo ou mais tarde (aqui é garantidamente sempre mais tarde), e comer o que me apetecer e tomar banho de chuveiro e beber duas garrafas de vinho?
É verdade que eu tenho tendência a reagir emocionalmente em certas situações. Por exemplo, no museu onde trabalhei, tive de me esconder no cockpit do avião a fingir, porque uma das crianças do grupo que eu estava a orientar tinha leucemia. De outra vez cruzei-me com um bebé, filho de uma das mães solteiras que a instituição onde eu trabalhava acolhia, e quando cheguei a casa desatei num pranto tal que ninguém sabia como me acudir.
Não foi o caso nesta minha experiência. Nem mesmo com a avó de 60 anos a amamentar o neto que está a criar, porque lhe morreu a filha.
Senti-me embalada pelas conversas que não entendia. Via as crianças penduradas nas mamas das mães, sentia a subida do leite e sabia que não tinha de amamentar. Que liberdade! não há liberdade maior.
As mulheres respondiam às perguntas, falavam das tradições da comunidade, riam-se,
sempre com crianças a fazer ninho nos colos.
Em todas as casas havia um mar de gente, que come e dorme e faz tudo o que se faz numa casa, mesmo com cortinas em vez de paredes e em vez de portas. A privacidade é muito subvalorizada nesta ilha.
Não me sentei no chão de terra batida, ou no cimento, uma única vez, porque há sempre uma cadeira de plástico para as visitas, e um naperon para a mesa.
Pareceu-me tudo muito familiar, como uma memória.
Depois entrava no carro e seguia sem crianças a querer fazer ninho no meu colo, a perguntar se falta muito, a abrir a janela para vomitar. Que liberdade!
Quando cheguei a casa vi a Elza Soares no computador. É pouco mais nova que a minha avó e é um gosto ouvi-la, como é ouvir as histórias que a minha avó inventa sobre o tráfico de droga em frente à escola primária. Mas já ninguém quer ouvir a minha avó. Eu ouvia a Elza e pensava na minha avó e nas mulheres dos distritos e percebi que é tudo sobre isso, sobre querermos ser ouvidos.

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