Cartas de Díli #4

14.6.17
Querida Bea,

Agora que as férias da escola já começaram, tenho tido poucas notícias tuas. Espero que seja por andares entretida com coisas boas.
Na semana passada sempre fui fazer o tal trabalho de campo com a Timor Aid e lembrei-me muitas vezes daquela conversa que tivemos no Museu do Budismo Mundial, em Kandy, lembras-te?
Perguntaste-me se a minha vida era muito diferente da que tinha sonhado/imaginado para mim. Lembrei-me disso, porque andar no terreno a pesquisar sobre tais, a descobrir coisas fascinantes sobre estes tecidos e a conhecer novos sítios foi das coisas mais entusiasmantes que fiz nos últimos meses (e o entusiasmo é tudo. Já te disse isto muitas vezes).
Nessa conversa em que te contava o que tinha imaginado para mim e em que te revelava, pensava eu, como acabei numa vida bastante diferente, mostraste-me que eu tinha conseguido fazer exactamente aquilo que tinha sonhado. Tinha filhos, tinha trabalhado como jornalista e estava a viajar por muitos sítios do mundo.
Pois, de facto. Só que não é bem assim (ou é?). Acabei por ser uma mãe bastante depressiva, uma jornalista frustrada e as viagens são pagas com o salário do Jaime. Mas, sim, estou a viver a vida que escolhi e tem sido bem interessante.
Ainda agora interrompi a carta para observar um pássaro na árvore em frente à janela e  fiquei uns bons minutos a vê-lo coçar-se com o bico, naqueles movimentos rápidos que as galinhas também têm.
[Um aparte. Tenho pensado muito em galinhas. Nas conversas que ouvi ao longo da pesquisa, e que não conseguia acompanhar por causa da língua, ficava muitas vezes a olhar para as galinhas. São animas fascinantes. Também nunca mais me esqueci daquele sonho que tiveste em criança, sobre as pessoas que queriam falar com as galinhas, quando elas não falavam inglês. Só uma achava que sabia, mas não era verdade e os maus vieram matá-la. Isto foi em Agosto de 2006, tinhas cinco anos (as vantagens de ter um blog nunca devem ser questionadas).]
A seguir pensei ir lá fora ver se descobria que árvore é esta, em frente à janela, mas fiquei com medo de me cruzar com a Domingas a pentear o cabelo. Não é medo, claro, é desconforto. Acho sempre que devo dizer alguma coisa quando ela está a pentear-se, ou sentada num banco à sombra, mas nunca sei o quê.
A Virgina Woolf fala desse "medo" em relação às empregadas nos "Diários". Ainda fui à procura de posts antigos no blog, para ver se encontrava alguma referência, mas não encontrei nada. Ainda assim li vários dos quais já não me lembrava, como um a propósito do "Mrs Dalloway". Parece que há um momento do livro em que me lembrei da personagem de um conto, o "Amor", de Clarice Lispector. E acabo o post com a seguinte frase: "Acho extraordinário que ser dona de casa no Brasil (Rio de Janeiro?), nos anos 50/60; em Londres, nos anos 20 e em Lisboa no início do século XXI seja quase a mesma coisa.".
Eu, às vezes, chego a conclusões brilhantes, tens de admitir (estou a rir às gargalhadas).
Enfim, fazer este tipo de coisas, ir à janela olhar para um pássaro e voltar ao computador, é muito habitual no meu dia-a-dia. E é uma coisa que sempre me imaginei a fazer também. Mas a nossa imaginação, no fundo, é bastante limitada, porque não visualiza a solidão, a angústia e as dúvidas. Ou, talvez seja só a minha imaginação.
Bem, pelo menos tu não tens esse problema visto sofreres de 'aphantasia'. Por falar nisso, como é estar num curso de artes com esta limitação, se é que é uma limitação?

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