A árvore da montanha

8.11.16

Vulcão Batok, o que fica mesmo ao lado do Bromo, dentro da grande cratera Tengger

Estivemos dez dias a passear por Java e no fim pensei: Vou escrever uma crónica de viagem. Eu podia ter pensado: Acho que me apetece escrever sobre Java, e depois abria o computador e escrevia. Mas não, pensei "crónica de viagem" e logo ali fiquei sem saber o que dizer.
Por acaso não é bem assim, porque eu até sei o que queria dizer. Eu queria dizer que há muitas cebolas à volta do Bromo. Só isso. Dizia: Fui a Java e vi muitas cebolas, campos e campos de cebolas, nas redondezas de um vulcão que deita fumo. E pronto.

É claro que isto assim não seria uma crónica de viagem. As crónicas de viagem são como a canção da Árvore da Montanha que tem um lindo tronco, e esse tronco lindos ramos, e esses ramos lindas folhas, e essas folhas lindos ninhos, e esse ninhos lindos ovos, e esses ovos lindos pássaros.
E a minha crónica podia ter a decoração, com videiras de plástico e guarda-chuvas pendurados, da estação de autocarros de Kota, em Jacarta. E a seguir encadear o Tamansari (Palácio da Água) do arquitecto português que o Sultão de Yogyakarta mandou matar, no século XVIII, para manter secretos os compartimentos de prazer e, depois, discorria sobre os templos de Borobudur e Prambanan e até, quem sabe, sobre o parque infantil de Malang, provavelmente a cidade mais europeia da Indonésia. 

Ou, melhor ainda, fazia o roteiro gastronómico da coisa. Começava pelo início, isto é, por Jacarta e apresentava o Café Batavia. Seria simples, muito antes do frango com molho de limão e do mix de dimsum já estávamos rendidos ao espaço e toda a gente sabe como é simpático comer num sítio bonito. Na segunda paragem, em Yogyakarta, teria de falar da tartin de anchovas, do carpacio de vitela e do kebab de frango do Mediterraneo e depois, em Malang, e por muito que o Inggil me tenha surpreendido, aquele chef special do Melati, era de agradecer a todos os deuses hindus, a Alá, a Deus nosso senhor e por aí fora. Sim, gostamos de comer bem, sempre que possível, da mesma forma que podemos passar oito horas metidos num comboio a comer bakso duvidosos e mi gorens na beira da estrada. Não somos esquisitos.

Também podia (e já vou não sei em quantas crónicas diferentes) falar de coincidências, que é um dos meus temas preferidos.
Em Jacarta, o ponto de partida para conhecer Java, tivemos pouco tempo e o único museu que conseguimos visitar foi o de marionetas Wayang, que parece que tem uma das melhores colecções deste tipo de marionetas.
Apesar de todas as legendas estarem em indonésio foi interessante ver os incríveis detalhes de algumas delas e, além disso, os rapazes divertiram-se bastante. 
No dia seguinte, durante a longa viagem de comboio até Yogyakarta, estava a terminar o livro do Pedro Rosa Mendes, Peregrinação de Emmanuel de Jhesus, e leio uma passagem em que um bispo decide contar a guerra de Bratayuda usando marionetas Wayang. Os personagens são Sanja e Karna. Karna é meio-irmão de Arjuna e luta pelo reino de Kurawa. Sanja pelo Pandawas. Ambos morrem nesta guerra, mas isso não interessa nada, na verdade.
Eu não estava à espera de encontrar uma referência às marionetas Wayang neste livro, apesar da variedade de temas que o autor vai aflorando, desde a arquitectura timorense até à pencak silat, uma arte marcial. E nem fazia ideia que a pequena marioneta em miniatura que trouxe da loja do museu era Abimanyu, o filho de Arjuna. Pois.

Continuando, o que eu queria dizer, se ainda se lembram, era que fui a Java e vi muitas cebolas, campos e campos de cebolas, na redondezas de um vulcão que deita fumo. 
É muito impressionante o Bromo. E tem qualquer coisa de mágico, só pode, porque o meu filho mais novo nunca consegue andar com dores nos pés, e ali trepou pelo vulcão acima como se nada fosse, enquanto eu mal conseguia respirar. Ainda por cima morri de medo. Juro. A cratera tem uma vedação, mas uma pessoa que escorregue (e é muito fácil escorregar naquele piso) passa perfeitamente pelo meio, directamente para dentro do vulcão. E eu acabo de escalar as últimas escadas e que vejo? O Nicolau ali debruçado. Eu senti o coração parar. Por breves e instantes segundos, tenho a certeza, morri de medo.
É muito impressionante, mas eu estava a falar das cebolas, não era?

Portanto, já tínhamos descido os 253 degraus, mais uns poucos de metros da encosta do vulcão, mais os dois quilómetros de caminhada pelo "mar de areia", já tínhamos visto um mini tornado na cratera (o Bromo é um dos três vulcões que existem na grande cratera Tengger), e seguíamos no jipe que nos ia levar ao carro que nos ia levar a Banywangi, e eu via campos de cebolas. Via campos de cebolas e pensava nas mãos das pessoas que as plantaram. Eram mãos como as minhas, mãos que cozem arroz, que dão colo, que seguram nos filhos, que teclam nos telemóveis (64 milhões de indonésios usam o facebook), que lavam a loiça e ensaboam cabeças. E o mais fascinante nisto de viajar é isso mesmo, é perceber, como diz Pat Walsh, citando o Dictionary of Obscure Sorrows de John Koening , "que cada pessoa com quem nos cruzamos está a viver uma vida tão intensa e complexa como a nossa...preenchida com as suas próprias ambições, amigos, rotinas, preocupações e loucuras herdadas"*. 

*tradução livre

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