Justiça

13.10.15

Estamos sentados no restaurante sem paredes, como quase todos os restaurantes daqui, os miúdos brincam nas ondas, sente-se uma brisa ligeira, já não sabemos quantas garrafas de vinho vieram para a mesa e a conversa segue animada.
Todos concordam que em Portugal não conseguíamos ter a qualidade de vida que temos aqui, mesmo se as razões que nos trouxeram cá sejam diferentes.
Eu gosto de os ver livres a brincar, gosto dos sorrisos das crianças timorenses, porque nos obrigam a sorrir de volta, gosto de coisas que não são palpáveis e gosto, claro, de ter o poder de compra que me permite a tal qualidade de vida.
Mas ao fim e ao cabo dou por mim numa inquietude aflitiva, como se estivesse a chegar perto de alguma coisa mesmo, mesmo importante, sem no entanto conseguir alcançá-la. Assim como quando temos uma palavra na ponta da língua e não a conseguimos dizer.
Tenho acessos de melancolia preocupantes e deixo-me resvalar numa apatia incompreensível.
Muitas vezes, estou sentada no sofá a ler, ou a descascar uma manga, enquanto a Ana está a passar a roupa a ferro e pergunto-me porque é que as coisas são assim, porque é que uma pessoa pode estar sentada a ler, enquanto outra tem de trabalhar para essa pessoa. Será que ela se pergunta o mesmo? Eu tenho quase a certeza que me perguntaria, se estivesse no lugar dela, mesmo estando feliz por ter um trabalho e algumas regalias que outras pessoas não têm, como não precisar de trabalhar ao sábado. Mas eu não estou no lugar dela e ela talvez venha a estar no meu lugar um dia.
Não fala muito bem português mas está a ensinar o pouco que sabe ao filho, porque quer que ele vá para a escola portuguesa quando tiver três anos.
Quando lhe disse que queria aprender tétum, ela riu-se; "tétum, sinhóra, pára quê?". Quando lhe pedi para nos cozinhar qualquer coisa timorense, arregalou os olhos: "timorense só come árroz, sinhóra!". Quando lhe falei sobre as cantorias que ouço quase todas as noites, abanou com a cabeça desconsolada: "timorense não percebe, sinhóra, não tem educaçau". Eu argumentei que até apreciava esta alegria tão espontânea mas ela replicou que a "alegria é por causa do vinho".
Enfim, tinha de me calhar como empregada a única timorense sarcástica do país. É justo.

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