Querida mamã,
São duas e tal da manhã e acabei de chegar a casa porque tive que deixar o Django [o mais velho dos meus três gatinhos, queridos eventuais leitores] internado num veterinário. Estávamos em casa quando, do nada, o bicho começou a tentar fazer xixi no chão e a não conseguir. Ligámos logo para o veterinário habitual (em menos de 1 ano foi a terceira visita às urgências) que nos confirmou que sim, deveríamos dirigir-nos ao hospital o mais rápido possível. Pelo caminho, o condutor do Uber veio a simpatizar com o gatinho, a preparar-nos para o balúrdio que estávamos prestes deixar no hospital, a recomendar-nos um seguro de animais e a informar-nos de que "ao menos agora já se pode declarar as despesas dos bichos no IRS" daquela maneira meio carinhosa e meio agressiva de se fazer sugestões tão característica dos portuenses. Enquanto isso, o Django miou algumas vezes pelo caminho, mas muito poucas (facto por si só muito preocupante, pois como sabes ele geralmente não se cala).
Quando lá chegámos, fomos encaminhados para um consultório com uma luz muito branca, tão agradável como os consultórios dos hospitais de humanos, onde a veterinária o examinou durante uns segundos e concluiu que ele teria que ser sedado e internado. Pesou-o, apalpou-o um pouco e quando lhe apertou a zona da bexiga o Django soltou um berro quase humano. Passei o resto do tempo a dar-lhe imensas festinhas e tentar dizer-lhe que ele vai ficar bom. É um cenário verdadeiramente agoniante, ver um ser vivo em tanto sofrimento sem lhe poder explicar de forma calma e racional o que se está a passar e que sim, vai ficar tudo bem. Se já sinto isso com os meus gatos, nem quero imaginar o que possa sentir com eventuais bebés humanos. A médica sedou-o e levou-o imediatamente para a zona dos internados, coisa que também me custou bastante. Por mais que o Sebastião insista que os gatos não são inteligentes suficientes para que isso os incomode, odeio que o bicho tenha adormecido do nada, todo drogado, sem fazer ideia do que se passava e sem ter ao menos a família para lhe dar uns miminhos. Tanto quanto sei, nos últimos momentos em que esteve acordado, pensou que estava a morrer.
Mas talvez esteja a ser demasiado dramática e o Sebastião tenha razão. Espero que sim.
Tudo isto simplesmente para explicar que me lembrei de responder agora à tua "carta" porque estou nervosa e achei que a distração me faria bem. Acabei por ter mais para dizer sobre o assunto do que pensava. Mas adiante.
Conheço muito bem esse nó no estômago que descreves, também tenho sentido muitos desde... bom, não me lembro de uma altura da minha vida em que não os tenha sentido. Somos mulheres muito neuróticas, não somos?
Acho que essa questão de sermos mal julgados é bastante inevitável, toda a gente o faz e toda a gente o é. Mesmo eu, que até me orgulho das minhas tentativas incansáveis de ser sempre o mais justa possível, já fiz uns quantos julgamentos injustos.
Tenta não deixar que isso te cause demasiadas dores ou ansiedade, porque a verdade é que as pessoas que nos julgam por sermos quem somos, estão apenas a avisar-nos de que não são as pessoas certas para estar na nossa vida. Podemos passar alguns anos a sofrer, a tentarmos encaixar em sítios onde não cabemos ou a desistir e deixarmo-nos sentir sozinhos, mas desde que consigamos aguentar essa fase acabamos sempre por encontrar a "nossa gente".
Mais vale os miúdos serem super julgados e até ostracizados mas serem genuínos e livres, do que se tornarem em pequenos robots populares e integrados mas completamente formatados, sem um pingo de individualidade que traga algum interesse às suas vidas.
Ou se calhar só desenvolvi essa opinião para me convencer de que não foi em vão ter passado toda a minha vida a sentir-me excluída, de que há algo de positivo nisso. Na verdade, tenho quase a certeza de que seríamos mais felizes se de facto fossemos um pouco mais conformados, mais ignorantes até.
Ainda que tenha noção de que toda gente se sente um pouco diferente e sozinha e excluída, acho que existem de facto dois grandes grupos: o das pessoas maioritariamente "normais" e o nosso. As pessoas "normais" são as que sim, têm desgostos e medos e empregos dos quais não gostam, mas conseguem viver bem com isso. Conseguem seguir as suas rotinas durante anos, não sem nenhum custo, mas sem pensar demasiado sobre o quão ridículo o sistema capitalista em que vivemos é, sem grandes dúvidas existenciais, sem questionar muitas vezes o porquê de fazermos o que fazemos. Têm os seus empregos medíocres que ocupam a maioria do seu tempo, poupam algum dinheiro para quando já estiverem demasiado velhos e exaustos para o poderem aproveitar a sério, gastam a maioria do salário para conseguir sobreviver e estouram o resto em coisas materiais como roupa feita pela nossa versão moderna de escravos e vários outros símbolos de um estatuto que muitas vezes nem têm. Coisas materiais essas cuja produção acelera cada vez mais a destruição total do nosso planeta. Mas conseguem fingir que não sabem disso.
Desculpa se esta carta já está demasiado longa e demasiado melancólica. Ultimamente este assunto tem-me perturbado bastante, como podes perceber. Mas está tudo bem, eventualmente hei-de arranjar uma solução, quanto mais não seja deixar-me abater pela sensação de inutilidade e tornar-me numa das pessoas que acabei de descrever.
Se não os podes vencer, junta-te a eles? Ou deixa-te morrer na tentativa desesperada de vitória? Não sei.
Vou falar de coisas mais felizes.
Visitar Bilbao foi muito fixe, é uma cidade bonita, ainda que um pouco mal cheirosa (pior do que Paris em março, em plenas greves das empresas do lixo).
Está rodeada de montanhas, o que lhe dá um equilíbrio interessante de urbanismo e natureza que não estou habituada a ver. Não que eu já tenha visitado assim tantas cidades, mas do que conheço geralmente só encontras natureza mais a sério em zonas mais rurais (sem contar com parques e jardins, claro, porque isso nem é bem natureza, tão arrumadinha num canto).
Uma coisa que reparei logo no primeiro passeio e que continuei a verificar em todas as zonas que visitámos é que os bilbaínos devem ter um problema com o jogo: se te disser que vi umas 50 casas de apostas e mini casinos, acho que não estarei sequer a exagerar. Outro facto inevitável é que os espanhóis são, realmente, um povo muito barulhento.
De resto, é o que podes imaginar: comemos comida muito boa, passeámos imenso (uns 85000 passos, temos os pés destruídos) e ficámos chocados com a diferença na qualidade de vida. Os preços de tudo o que vimos são praticamente idênticos aos do Porto (ou até mais baixos!), incluindo no mercado imobiliário, mas como sabemos o salário mínimo é bastante diferente. Assim sendo, não me espanta termos reparado que a maioria dos locais que conseguimos identificar como tal tivesse um ar feliz, sorridente e descontraído.
Mas já se sabe que a relva da vizinha é sempre mais verde do que a minha.
Olha, vou ficar por aqui porque isto já está mesmo muito comprido e entretanto tenho que ir descobrir se já posso ir buscar o meu gatinho ao hospital. Sim, para variar deixei isto a meio porque me esqueci do que estava a fazer....
Espero que estejas bem, que o regresso às aulas não seja demasiado atribulado, mas que seja atribulado o suficiente para teres coisas interessantes para me contar ;)
Beijinho,
A tua filha favorita