Trabalhadores #2

11.12.25
Eu sou a Odete Maria Martins França, tenho 54 anos e tenho três filhos. Vivo em São Pedro da Cova e trabalho como Guia Turística, em Vila Nova de Gaia, desde fevereiro de 2024. Tenho tido um percurso profissional muito atribulado. Para falar sobre isso tenho de falar sobre a minha família. O meu pai tinha uma oficina de ourives, começou a trabalhar aos nove anos e era cravador. Eu nasci no meio do cheiro a lacre da ourivesaria e acabei a trabalhar com o meu pai, apesar de ter tentado sempre seguir outros caminhos. Fazíamos peças em ouro, na altura era em ouro, e vendíamos às ourivesarias. 
Depois decidi seguir outro rumo e abri um Franchise da marca de roupa Tintoretto, em Gondomar. Estávamos num Centro Comercial e a certa altura as lojas começaram todas a fechar, isto no início dos anos dois mil, e demos por nós a ser a única loja num corredor quase sem luz. Então, além de todo o investimento inicial, decidimos investir noutra loja virada para a rua, mas mesmo assim não conseguimos salvar o negócio, o que foi catastrófico, para mim e para a mim sócia. Não sei o que foi, talvez a conjuntura, como se viu depois pela crise financeira que levou à Troika, mas foi terrível, lembro-me de vários suicídios, inclusive um amigo nosso da área da ourivesaria. 
Nessa altura eu descobri que estava grávida, porque comecei a perder sangue e soube que tinha sofrido um aborto, mas que tinha outro bebé que estava bem. Eram gémeos, portanto. Quando a minha filha Carolina nasceu eu já tinha fechado a loja e fui trabalhar para uma Farmácia, duas semanas depois de ela nascer. Trabalhei lá durante cinco anos. Estava sobretudo no backoffice, mas também atendia ao balcão, sempre com supervisão, claro. Agora já não seria possível, mas na altura era. Depois voltei para a oficina, porque o meu pai estava sozinho. Ele chegou a ter mais de dez funcionários e já tinha a fundição, mas o negócio foi decaindo. Estivemos os dois sozinhos de 2016, o ano em que me separei, até ao ano do Covid. Lembro-me perfeitamente do dia em que tudo fechou, porque foi o dia em que recebi em casa a carta de aprovação da marca que eu decidi criar para vender as minhas joias, a Ama Yello
Sempre me pareceu que este negócio de família não tinha muito por onde prosperar. Eu lembro-me que o ouro era taxado a 36 por cento de IVA, por exemplo, havia sempre inspeções quando tínhamos de fazer entregas e as condições de pagamento eram uma coisa surreal. Havia clientes que só pagavam as encomendas no ano seguinte. Não há nenhuma empresa que consiga sobreviver assim. O declínio da ourivesaria era muito óbvio. Na altura do Covid eu estava a trabalhar no El Corte Inglès e conciliava esse emprego com a ourivesaria, mas tornou-se evidente que aquilo tinha de acabar. Era um barco a afundar. 
Entretanto, fiquei desempregada e tive de arranjar outro emprego. Lembrei-me da experiência que tive numas férias quando tinha 18 anos e decidi mandar o meu currículo para trabalhar numa cave. A minha intenção era trabalhar em part-time, mas não era possível, por isso aqui estou. Eu vivi em França dos cinco aos 13 anos, fiz lá os primeiros anos de escola, daí dominar o francês, o que me permitiu ficar com este emprego. Não ficamos mais tempo em França, porque a minha mãe queria regressar para Portugal, tinha medo que nós, eu e a minha irmã, depois de crescermos em França quiséssemos ficar lá. O meu pai foi para França trabalhar como ourives cravador e para grandes casas, ele era mesmo muito requisitado. Para vir para Portugal recusou uma proposta da Cartier. Às vezes penso se o meu pai tivesse ficado a trabalhar na Cartier…meu Deus! 
O meu salário, cerca de mil euros líquidos, é para pagar o crédito ao banco dos investimentos que fiz – durante muito tempo não conseguia falar sobre isto, eu podia ter feito como muitas pessoas fazem, declarar insolvência e não pagar nada do que devia, mas não seria o correto. Nós, eu e a minha sócia, quisemos cumprir com toda a gente, pagar tudo o que devíamos e espatifámo-nos, completamente. Não sei como sobrevivemos àquilo, tanto financeira, como emocionalmente. 
Agora, gostava de voltar a investir na minha marca de joias, porque preciso muito de criar. Não sei ainda como fazer isso, tenho de falar com uma contabilista para saber que tipo de licenças preciso, porque isto na ourivesaria é tudo muito complicado. Eu trabalho essencialmente com prata, mas também posso fazer peças de ouro por encomenda. Há uns tempos pediram-me para fazer uma aliança de casamento a partir de uns anéis da avó que estavam todos amassados, por exemplo. 
Já houve alturas em que não votei, mas desta última vez sim, e da anterior também, porque depois não posso reclamar, ou opinar, uma vez que não participei. Eu fiquei muito preocupada e chocada quando apareceu o Chega, mas agora compreendo que era necessário. Tínhamos os dois principais partidos a governar sempre da mesma forma e eu acho que os portugueses estavam a ver muita coisa a correr mal e, no fundo, esse partido veio mexer com os outros, obrigá-los a repensar e a fazer diferente. Se calhar, muitas vezes, aquilo que rejeitamos é aquilo que precisamos. 
Se tivesse de dar um conselho a alguém diria para não se preocuparem tanto. Um problema que agora parece enorme, daqui a umas semanas, ou meses já não tem tanta importância. Não temos de estar sempre bem, é, aliás, nas fases menos boas que podemos crescer, evoluir enquanto seres humanos.

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