O diagnóstico

28.9.25
A minha filha foi diagnosticada com PHDA (Perturbação de Hiperatividade/Défice de Atenção) e eu pensei em várias coisas ao mesmo tempo. Primeiro, isto porque no discurso verbal temos de apresentar as ideias por uma ordem, lembrei-me da história de uma amiga que vivia em Timor (podia dizer conhecida, mas não existe isso naquela ilha) e que sofreu um acidente nos tumultos de 2006, quando levou com uma pedra no rosto. Durante algum tempo ela pensou que nunca iria conseguir abrir a boca, mais do que o suficiente para enfiar a comida e mastigar com dificuldade, sem ser submetida a uma cirurgia complexa e com uma recuperação dolorosa. A mãe sugeriu que procurassem outro especialista para ouvir outra opinião, mas o diagnóstico foi o mesmo - tem de ser operada. O seguinte disse o mesmo e, finalmente, o terceiro (ou quarto, já não me lembro quantos é que ela consultou) disse-lhe para não se preocupar, que ela ia acabar por recuperar e voltar ao normal naturalmente. Quando saíram do consultório, a mãe disse-lhe: "Estás a ver? Nunca devemos desistir, só temos de continuar a procurar um médico que nos diga o que queremos ouvir". E, realmente, ela acabou por recuperar.
A minha filha achava, há muito tempo, que tinha PHDA, depois de ter sido diagnosticada com depressão por um pedopsiquiatra para logo a seguir o diagnóstico ser retirado, assim como a medicação, pelo mesmo especialista. Mais tarde, veio o da bipolaridade por uma psiquiatra e, finalmente, o diagnóstico que ela procurava. 
A segunda coisa que pensei foi como é que não vi? Eu eduquei-a, eu passei anos da minha vida de volta dela, e durante oito anos só dela, antes de nascerem os irmãos, eu não tirei os olhos, os braços, o peito de cima dela, o que é que me escapou? Eu sei que o diagnóstico desta perturbação é raro nas crianças do sexo feminino, mas será que deveria ter ido à procura dele?
Toda a gente dizia que ela era uma criança diferente, "genial", mas para mim era uma criança normal. Era a minha menina, que chorava sempre que tinha de ir para a creche e infantário, que adorava brincar às lojas, que gostava de comer e depois deixou de gostar, que adorava o Sérgio Godinho e a Floribela. Quando foi para a primária a professora mandou-a sair da sala com o colega, porque não paravam de falar. Eles saíram e foram bater à porta de outra sala. Foi a professora que me contou, a queixar-se de ela não parar de falar e a elogiar-lhe o desenrasque. Em Lisboa, noutra escola primária, foi seleccionada para debater na Assembleia Municipal e conseguiu que a escola tivesse um novo ginásio, mas quando tinha de fazer os trabalhos de casa levantava-se e sentava-se mil vezes e não era assim tão raro cair para trás com a cadeira. Para mim era normal, tanto uma coisa, como outra. 
Já no conservatório de música a directora de turma disse-me que ela devia ir a uma psicóloga, porque achava que ela podia ser bipolar. Eu achava que ela era adolescente, mas fomos para o hospital psiquiátrico da infância e adolescência, que serviu basicamente para ela começar a interessar-se por psicologia. 
Não vi, porque apesar de tudo ela era boa aluna e uma criança feliz. Na adolescência já não me parecia tão feliz, mas quem é feliz nessa fase da vida? Depois, apesar da auto-exigência, da volatilidade dos interesses, eu acreditava que ia ficar tudo bem. Até ter deixado de ficar. 
Quando falámos sobre isso ela disse-me que tendo em conta que a doença, ou condição, tem uma forte componente genética e que o Isaac provavelmente sofre do mesmo (houve uma professora na primária que achou que ele poderia ser hiperativo), a probabilidade de eu sofrer de PHDA é considerável. Não dei grande importância a esse pormenor, porque não ando à procura de diagnósticos, por enquanto, mas no outro dia estava na biblioteca a ler as Memórias do Cárcere, de Camilo Castelo Branco, e peguei no telemóvel para procurar o realizador do filme O Quadrado, porque devo ter pensado em Estocolmo, onde queremos ir juntas, e quis confirmar se o museu era nessa cidade (é em Gutemburgo) e ocorreu-me se a catadupa de pensamentos sem ligação aparente uns com os outros seria um sintoma desta condição. 


Ser o que somos

6.9.25
Estou a ler o diário de Fernão de Magalhães e a achar tudo fascinante¹ - a descrição dos povos que vai encontrando, a linguagem técnica da rota e das embarcações, a forma meticulosa de relatar os acontecimentos e certas observações como esta: "(...) andámos a singrar o mar Pacífico no qual Deus, na sua sabedoria infinita, parece que Se esqueceu de pôr terras, ilhas e gentes para melhor proveito das criaturas que habitam neste mundo''. Mas o que mais me deixou espantada foi perceber que a maior parte do diário é sobre as intrigas da corte e as guerrilhas entre os tripulantes. 
O homem é o protagonista de uma verdadeira epopeia e não há um único relato apaixonado sobre tempestades, monstros marinhos, perigos à espreita e por aí fora. Quase de certeza encontro esses relatos nos registos de Pigaffeta (há um ou outro que aparece no livro, mais direccionado ao heroísmo de Magalhães), uma vez que os escritores são mais sensíveis aos fenómenos da Natureza, da humana e da natural por assim dizer, mas sei lá se vai continuar a apetecer-me ler sobre a circum-navegação.²
Estava a dizer que o que me deixou espantada foi o quanto o relato das intrigas, e problemas entre os seus pares e a Corte, ocupa as páginas do diário, mas se calhar não deveria espantar-me. O problema é sempre as pessoas. 
Todos os dias confronto-me com essa realidade, mas não foi sempre assim. Não sei se estou diferente,  ou se estou só a trabalhar no sítio errado. Infelizmente, ainda (!!!!!!) é com as pessoas do trabalho que se passa mais tempo.

Outro assunto completamente diferente, sem deixar de estar relacionado com eu ser uma pessoa diferente do que fui, decidi sair do grupo que escreve semanalmente (ou quando calha) sobre o mesmo tema. Estou numa fase da minha vida em que preciso de ver os resultados das minhas acções. Pode ser por causa daquilo da dopamina, não sei, mas não quero estar num projecto só porque é giro, quero estar com uma intenção, quero vê-lo crescer e florescer no meu tempo de vida, que não sei qual é, mas é sempre pouco. É verdade que muitas vezes uma semente cai em terreno fértil e cresce sem qualquer cuidado, mas por norma uma semente precisa de água e sol, às vezes sombra, para florescer e continuar a crescer. Não tenho qualquer dúvida que o Largo (o nome que decidimos dar ao colectivo) pode vir a ser um belíssimo jardim - já é um conjunto de canteiros bem bonitos, mas eu preciso de outra coisa. 
Seja como for, foi muito bom fazer parte deste projecto: escrevi textos de que gosto bastante e outros nem tanto, descobri o substack, e com ele pessoas que andam a dizer coisas muito interessantes, e percebi que quero continuar a escrever num blog quando me apetecer, sem subscritores e sem preocupações com temas. Escrever para mim. 


¹ Tenho a noção de todas as implicações das Descobertas, além do heroísmo que nos permitiu conhecer o mundo, e sei que apesar de só termos um vislumbre, neste diário, das barbáries e explorações dos povos indígenas, é evidente a convicção dos portugueses/castelhanos da sua superioridade em relação aos outros humanos. Mesmo assim continuo fascinada.

² Parece que nos apontamentos que ele escreveu, depois de ter entregado o diário que fez a bordo das naus, Trinidad na ida e Victoria na volta, ao rei D. Carlos, há uma série de textos eróticos a roçar a pornografia, pelo que talvez me apeteça ler.