Cartas da Póvoa #5

21.9.23

Querida Bea,

Fiquei muito angustiada com a descrição da situação do Django, mas, olha, apesar de não saber o que é estar na pele de um animal com dores, sei que não pensou que estava a morrer. Parece que essa é uma faculdade exclusivamente humana. É o preço que temos de pagar pelo privilégio de viver. Agora, não tenho dúvidas que nestas situações os nossos bichos fiquem terrivelmente assustados e que o carinho da pessoa deles faça toda a diferença.

Em relação à questão que levantas, num outro dia qualquer diria para não desistires, para seguires sempre a tua verdade e para não te esqueceres que a arte salva. Hoje, digo para te juntares a eles. Exige menos esforço, acho. Seja como for, há-de haver um meio termo qualquer.  

O regresso às aulas foi calmo, depois do dia da apresentação e daquele estado de nervos do Isaac de que te falei.

Além do teu livro, que tenho na mesinha de cabeceira, estou a ler outro durante o dia, nas horas paradas da Vinharia, que são bastantes. Comprei O Princípio de Tudo – Uma Nova História da Humanidade, depois de ler uma entrevista com um dos autores, o que está vivo, o arqueólogo David Wengrow. O antropólogo David Graeber morreu pouco antes do livro ser editado. Ainda vou muito no início, mas parece-me uma obra incrível, comecei a tirar apontamentos na expectativa de encontrar uma solução para os problemas do mundo – que queres? Às vezes dá-me para estas manias de grandeza –, mas, entretanto, surgiu-me outra ideia ao ler o seguinte: ‘’O pensamento humano é inerentemente dialógico. Os filósofos da Antiguidade tendiam a compreender bem tal aspecto: por essa razão, quer estivessem na China, na Índia ou na Grécia, costumavam escrever os seus livros sob a forma de diálogos.’’ Li isto e tive aquela sensação de borboletas na barriga (é, parece que o meu abdómen sobre bastante com as minhas cenas) que é o que costuma acontecer-me quando estou diante de alguma coisa entusiasmante e pensei: Se calhar é isto que devo fazer com o livro que nunca mais avança e logo a seguir ocorreu-me que deveria incluir na nossa troca de cartas pequenos excertos, ou ideias que vou tendo para me ajudares a avançar.

Quando regressei a Laúndos, há mais de um ano (já?), não consegui deixar de reparar no Pinheiro Manso, no sopé do monte, mesmo ali ao lado da casa da tua avó. Toda a gente repara nele, aliás, porque é de facto majestoso. Lembro-me de o ver desde sempre, e quando quis saber, ao certo, desde quando está ali ficou claro que tem mais de 100 anos. Um pinheiro assim, centenário e isolado numa berma da estrada, com uma copa daquele tamanho é incomum, acho eu. Então, ocorreu-me que aquele pinheiro viu muita gente nascer e morrer e, tendo uma vista privilegiada, com a igreja e a escola ali em frente e o escadório, atrás, deve ter assistido a vários momentos marcantes da aldeia e da vida das pessoas. Quer dizer, eu estou a pôr-me no lugar do pinheiro e, como tal, a escolher olhar para o mar e ter o monte nas minhas costas, mas não sabemos como pensam os pinheiros, nem se têm o equivalente a olhos e costas.

Então, decidi que ia dar voz a esse pinheiro e ia contar a história da minha família, pela perspectiva dele, do Pinheiro Manso. Já tinha título, portanto. Logo a seguir fui para os arquivos digitais da Torre do Tombo à procura dos meus antepassados, munida das informações que tenho vindo a recolher junto da minha avó e da minha mãe.

Eu sei que o meu pai é a minha pessoa. Era o sonhador da família, o artista, mas é um facto que o lado feminino domina completamente. Os homens foram desaparecendo, ou porque emigravam e deixavam de dar notícias, ou porque morriam jovens, como o meu pai. 

E, até onde me foi possível recuar, com o que a família recorda, as crianças viveram sempre com mães e avós, à excepção de um avô, mas até ele era conhecido como Joana. Era o avô Joana. Já percebes a razão de andar a ler certidões de baptismo, casamentos e óbitos?

Pois bem, o nome de baptismo do avô Joana é José Pereira Júnior e toda a gente pensava que a mãe dele se chamaria Joana, mas não, a mãe era Anna Joaquina, a avó é que se chamava Joana, Joanna Maria Salvadora, para ser mais precisa, e nasceu em 1803. Sabes qual era a profissão dela? Taberneira, vê lá tu!

Bom, fico por aqui que esta carta já vai longa. Diz coisas.

Beijo, minha querida

P.S Já começaste a ler o Emily L.?

P.S1 Lembras-te daquela entrevista de emprego que fui fazer? recebi a resposta e não fui seleccionada. O que vale é estar tão familiarizada com a rejeição!


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