Domingo de manhã

22.8.17

O meu pai é o da direita. No meio está o irmão Ismael e à esquerda o António

O meu pai morreu há 31 anos. Tinha 35, portanto este ano entraria na reforma se ainda estivesse vivo. Não sei se ainda teríamos o minimercado "S. Félix" e se ele assaria frangos ao domingo de manhã. Passou a ser quase uma tradição sair da missa e ir comprar frangos ao Cirilo. Depois era só preparar um arrozinho, uma salada de alface e tomate e fritar batatas. Ficava-se assim com o almoço de domingo composto sem ter de deixar o assado no forno e alguém a por um olhinho para não queimar, enquanto se cumpria o dever cristão.
Em nossa casa também se comia, de vez em quando, frango ao domingo, mas como a minha mãe e avó não gostavam, continuámos fieis ao lombo assado.
A minha mãe decidiu fechar o minimercado depois de o meu pai morrer e a minha avó teve de ir com o livro dos calotes bater à porta das pessoas para pedir o dinheiro que deviam.
Tanta coisa mudou desde o final dos anos 80, inclusive a idade da reforma.
Claro que se o minimercado ainda existisse já não íamos à feira de Barcelos, à quinta-feira, comprar a fruta. Nem vinham os "viajantes" recolher as encomendas para serem entregues não me lembro em que dia da semana. Seria tudo muito diferente.
Talvez o sorriso do meu pai ainda fosse bonito.
Também poderia acontecer de o meu pai ser bem sucedido na política, como ansiava, e chegasse a Presidente da Junta, já que era uma pessoa bastante querida e popular lá na aldeia. E se os meus pais ainda estivessem juntos, ele era capaz de conseguir fazer um bom trabalho. Mas não estou a ver como o casamento deles poderia continuar a funcionar, se é que alguma vez funcionou, depois da C.
Um dia perguntei à minha mãe se a C. saberia que ele tinha morrido. Ela disse que provavelmente não.
Quando recordo a minha infância tenho a mesma sensação que Marit, uma personagem de um conto de James Salter, sinto que está lá quase tudo como um romance muito parecido com a minha vida.
E no entanto, aos 35 anos, a idade com que o meu pai morreu comecei outra vida.

O que se passa com as árvores?

16.8.17
Não sei se é por Mercúrio estar retrógrado, ou se é por ser Agosto, esse mês terminal, como em tempos defini, mas parece que a vida está suspensa. Fazemos as mesmas coisas de sempre, sentamo-nos a comer, saímos para comprar água e detergente da roupa, falamos sobre o futuro, enquanto não é formado um novo Governo, sacudimos a areia dos pés antes de entrar no carro, ficamos indignados com a marcação da leitura da sentença do português e da mulher, retidos em Timor há três anos, chocados com a morte de três pessoas num acidente, causado por uma árvore que caiu em cima do carro em que viajavam (o que se passa com as árvores? 13 mortos e 49 feridos, na Madeira. Três mortos e dois feridos em Manatuto).
Pensando bem, não fazemos as mesmas coisas. Repetimos gestos e convenções para não dar em malucos. Seguimos em frente, mesmo quando no início da estrada está o sinal com a fita branca e as cadeiras já estão a ser alinhadas para o funeral da criança, mesmo quando os gritos das mulheres ficam a ecoar dentro de nós.

O vestido amarelo

7.8.17



Numa tarde fizemos um vestido amarelo (nota para mim própria: nunca mais costurar alguma coisa a partir de tutoriais de youtubers). Foi uma tarde com muitas tardes, e vestidos, dentro. Por exemplo, as tardes dos vestidos da Inês de Castro e da Jasmin quando ela estava no infantário. Aquela outra do vestido da Alice no País das Maravilhas, quando estava na primária, igual ao que vestia numa tarde em Paris, quando viajámos sozinhas. Ou a tarde que se prolongou pela noite dentro por causa do vestido do século XVIII, para a apresentação de um trabalho na aula de português do 8.º ano.
Pensei que nunca mais voltaria a ter dessas tardes até ao vestido amarelo.
O vestido amarelo, além de ser um vestido que eu pensei que nunca viria a existir, vai ser sempre especial, apesar de todos os defeitos, porque foi o primeiro que fizemos juntas, com ela a costurar comigo.
E foi o único que teve o privilégio de ser fotografado na Pousada de Baucau o que, convenhamos, o favorece grandemente.