As casas

4.12.17


Acordo quando o sol nasce, porque a janela do quarto da casa nova está ali ao lado da cabeceira da cama.
Já não devia estranhar mais uma casa (só em Lisboa é a sexta), mas também já devia saber que o nomadismo é só uma parte de mim. A outra, a do pouso fixo com os caminhos para a escola decorados pelas crianças, com vizinhos que oferecem limões, com trajectos e números de autocarros sabidos de cor e salteado e com os amigos de sempre à mão é, em ocasiões, muito apelativa. Só que há sempre qualquer coisa, às vezes muito boa, às vezes má, que nos impele a mudar.
Desta vez foi uma circunstância inesperada e repentina (como seria de esperar das circunstâcias inesperadas) e, portanto, eis-me aqui numa outra casa nova.
As casas são o que sabemos. Paredes com circulação sanguínea, abrigos e prisões ao mesmo tempo.
Por estar nesta casa, uso muitas vezes a estação de metro de Santa Apolónia, o que me permite passar pelos comboios, apesar de a minha filha não perceber o que me leva a dar uma volta tão grande quando posso passar por baixo deles e diminuir a distância do acesso ao metro. Mas é irresistível para mim. E sempre que há algum comboio prestes a partir sinto o impulso de entrar, como Ora fazia nos autocarros, num bairro de Jerusalém.
Ora é uma pessoa inventada por David Grossman mas para mim é praticamente real. Quase tanto como Gomes Leal, que encontrei numa das minhas deambulações pela cidade.
Foi numa destas manhãs em que fui andando sem destino. Vi um cemitério e entrei. Na entrada dizia Cemitério Oriental da Cidade e quando vi a quantidade de ruas ladeadas por jazigos e toda aquela arquitectura de monumentos fúnebres fiquei bastante pasmada.
E foi nesse estado que me cruzei com o túmulo do Gomes Leal. Estava a decorrer uma visita e o guia dizia qualquer coisa sobre Fernando Pessoa e que Gomes Leal era um menino da mamã. Devia ter ficado a ouvir, mas como eram poucas pessoas e a minha intrusão seria notada, além de que estava a decorrer um funeral perto, deixei de saber como estar ali. Saí e voltei para casa.

Há pessoas assim

26.11.17
Quando saímos de Lisboa, há dois anos e qualquer coisa, sei que estava, estávamos, com muita vontade de mudar de vida. Tínhamos tentado um negócio que falhou e que adiou o nosso regresso ao Porto. E depois, numa segunda oportunidade de trabalho para o Jaime, decidimos ir viver para Timor-Leste.
Mudámos de vida? Sim, claro, passámos a viver numa parte do mundo desconhecida e muito diferente. Deixámos de ter água potável, saneamento básico, queijo fresco, estações do ano, bandeiras vermelhas na praia e passámos a dividir casa com mosquitos assassinos, répteis cantores, galinhas à procura de comida (que acabavam comidas pelo nosso cão), várias espécies de formigas e a ter crocodilos na praia. Conhecemos pessoas novas, outras formas de encarar a vida e, sobretudo, vimos os nossos filhos mais novos viver a infância ideal, na nossa perspectiva: muito tempo livre, muita brincadeira sem actividades didáticas (apesar de haver oferta)  e muita natureza.
É claro que na prática mudou pouca coisa: O Jaime continuou a ser o provedor de sustento da família e eu a doméstica neurótica ainda que menos depressiva (com tanto sol e empregada doméstica não há condições para uma pessoa se lamentar).
E chegamos, cheguei, pois, a este momento de reflexão: o que mudou realmente na nossa vida?
Não estou em condições de responder condignamente neste momento, porque acabei de almoçar. Fiz um assado de domingo- um naco de vitela com batatinhas (sim cozinhei parte de um bebé, depois de me arrepiar com o sangue na embalagem enquanto temperava a carne em vinha d'alho)- para comer com a minha filha, que por sua vez teve outro convite e eu decidi manter o plano só para mim. Ou seja, comi demais e, por conseguinte, bebi mais do que a conta.

Um aparte: pode acontecer de eu publicar este post depois de o escrever (como quase todos), apesar de tentar manter-me fiel à ideia atribuída a Hemingway: escreve bêbedo e edita sóbrio.

Portanto, não estou em condições de responder o que mudou realmente na nossa vida, até porque as conclusões certamente prosaicas exigem uma reflexão bastante profunda, mas posso falar de algumas mudanças que vivencio no meu dia-a-dia.
A maior parte está relacionada com o tempo que tenho para mim. Já toda a gente leu sobre isto, sobre parar, ter tempo, respirar fundo e aproveitar o momento (para quem acha que o carpe diem é uma cena muito esotérica, pensem no momento em que vão cagar. Pensem na satisfação que é despejar os intestinos nas condições certas, sem distracções de revistas, telemóveis, ingredientes do gel de banho, etc.). Por isso, as coisas incríveis que as pessoas descobrem sobre si próprias, as transformações pessoais que relatam, não são novidade para ninguém, tem tudo a ver com simplicidade, minimalismo e tal e tal.
Então, porque é que estás a usar esse tom, Calita? perguntam vocês todos, as dezenas que estão a ler isto.
Eu explico, estou a usar este tom porque, aparentemente, estou sempre ao lado das tendências, ou à frente, é mais capaz de ser isso (abençoado vinho!).
Por exemplo, eu não descubro a pólvora quando paro para pensar (e eu paro para pensar desde que me lembro, praí desde os cinco anos). Eu descubro que consigo ficar uma tarde inteira em casa à espera que a Worten me venha entregar um micro-ondas e um aspirador, e que a partir de certa altura poderia ligar a perguntar o que se passa, mas parto do princípio que se está marcado vai acontecer e que se não for o caso é porque houve um contratempo.
E isto até poderia ser quase querido, a minha credulidade é bastante pungente, mas não é o caso. É só a constatação de que continuo a ser uma inadaptada.
O que é que mudou, então?
Mudou a circunstância da pergunta. Precisava realmente de mudar alguma, ou muita, coisa? Não, precisava de fazer as mesmas perguntas noutro sítio. Há pessoas assim.

Fazer o que tem de ser feito

20.11.17
Estava a pensar numa imagem para esta fase da minha vida - reparem, eu não sei fazer nada sem palavras mas descodifico melhor os acontecimentos se os vir, como num filme - e parece-me que o melhor frame equivale àquele bocado de terra que fica à mostra quando levantamos uma pedra que parece ter raízes. Sim, aquele bocado de terra escura, sem forma, com bichos da conta, centopeias e outras criaturas atarantadas de um lado para outro.
Por alguma razão (mas isto sou eu que gosto de pensar que há uma razão para tudo) houve dois acontecimentos próximos que me puseram aqui, no tal bocado de terra escura: 1) a Bea ficou sem ter com quem viver em Lisboa para continuar a estudar na escola que escolheu há um ano; e 2) um acidente de automóvel que me deixou "confusa", chamemos-lhe assim.
Um e outro não têm qualquer relação a não ser a proximidade temporal mas isso foi suficiente para eu não ter a certeza se o meu medo de sair à rua era ainda um efeito secundário do traumatismo craniano, ou se o meu corpo estava simplesmente incapaz de lidar com o choque de ficar longe deles, dos meus rapazes.
Seja como for, peguei nele, no meu corpo, e fui fazer o que tinha de ser feito, incluíndo cinema, teatro e exposições. Sim, na minha lista tenho o item "comprar um piaçaba" mesmo antes do "bilhetes para o Peter Brook". Não vale a pena organizarmo-nos por categorias, acho eu. Fazemos o que temos de fazer.
E que difícil tem sido. Tenho três filhos que precisam de mim, uma aqui, numa ponta do mundo, e dois na outra. E tenho o Jaime (sempre que digo Jaime deve ler-se "o meu amor", a não ser que especifique outra coisa), também do outro lado do mundo.
Um dia destes perguntei-lhe: "Sendo verdade que há sempre coisas boas que podemos retirar das coisas más que nos acontecem, o que dirias sobre o que estamos a viver?" Ele respondeu: "Conhecermo-nos melhor". Sorri. Tínhamos chegado à mesma conclusão.
Eu estava farta de ser mãe a tempo inteiro (sim, era mesmo giro que se arranjasse outro nome, já que todas as mães são mães o tempo todo, mas há aquelas como eu- as falhadas, diminuidas, coitadas- que se sentem incapazes de acumular a função de assalariada com mãe de filhos), aliás eu vivo nessa fartura há algum tempo, como se sabe, mas de repente pareceu-me tão óbvia a minha escolha.
Escolher aquilo que achamos melhor nem sempre é o mais fácil, não sei se já tinha ficado claro, mas chegar a este patamar de satisfação, ainda que misturado com doses de angústia e ansiedade medonhas, é um feito.
"Sobretudo não morrer", o Tiago Rodrigues sabe.

Arejar

31.10.17
No bairro onde estou a viver temporariamente devo ser a única pessoa que deixa janelas abertas durante o dia. Mesmo sendo certo que a maior parte das casas estão vazias, porque os habitantes só as habitam algumas horas por dia, não deixa de ser estranho.
Mas que sei eu? Eu vou na rua e olho para as pessoas que arrastam aqueles sacos de compras com rodas, das lojas dos chineses, e tento perceber se posso ser eu ali, no futuro.
Vejo os desenhos do Nicolau - eu com um chapéu e a cricatriz na testa, três árvores ao vento. Olho para os três dentro do meu telemóvel, o Isaac a falar comigo, só ele fala comigo, o Nicolau não quer e o Jaime escreve-me.
Preferimos escrever a falar ao telefone. Comovo-me com a nossa falta de jeito para estarmos separados. Surpreendo-me com a minha dependência dele.
E com a minha falta de imaginação para cozinhar pratos sem carne, ou peixe para uma vegetariana que adora bifes.
Vou no metro e tento adivinhar o que vai na cabeça de toda aquela gente. O casal com as duas miúdas, por exemplo, no último dia de férias e por isso já a imaginar o regresso à casa nova com muitos quartos, mesmo assim não os suficientes para alguma das crianças não ter de partilhar o dela. Além daquelas duas, há ainda os filhos de um deles que ficaram em Malta.
No Largo peço o prato do dia mas ainda é cedo, "só à 1h é que está pronto", como uma sandes, as mãos ficam besuntadas de azeite e coentros. Sigo para casa, cruzo-me com muitas, muitas pessoas e algumas parecem reparar em mim.
Fiz sopa de grão-de-bico para o jantar mas a vegetariana tem planos para o Halloween, ou Samhain, ou o que quer que se esteja a festejar.

O sabor das amoras

25.10.17
Estava no cinema com um dos pés descalços (porque magoei o mindinho na costura da meia enquanto andava à procura do Nimas), a tentar perceber porque é que o homem, o protagonista, não se matava em casa e pronto, até que apareceu Mr. Bagheri.
Mr. Bagheri concorda ajudar Mr. Badii mas tenta dissuadi-lo do suicídio. Conta-lhe que há muito tempo também quis acabar com a vida, meteu-se no carro com uma corda e foi até um campo de amoreiras. Subiu a uma das árvores para prender a corda e percebeu que estava cheia de amoras. Comeu algumas e eram doces. Continuou a comer e depois passaram umas crianças a caminho da escola que também comeram amoras e, então, ele sentiu-se feliz.
Gostei muito da ideia de ele já não querer morrer por causa das amoras, mas fiquei a pensar se não quereria dizer cerejas. Ou se disse e foi mal traduzido. Ou se tanto faz serem cerejas, ou amoras desde que as queiramos comer.

Lisboetas

16.10.17

No laboratório, no rés-do-chão de um prédio residencial.
- "É a primeira vez que vem cá?"
- "Sim, não fazia ideia de que havia aqui um laboratório"
- "Há que anos! Eu já trabalho aqui há 41 anos, por aí já vê. E eu também vejo como estou velha, minha nossa, como é possível?"
- "Realmente 41 anos é muito tempo, mas não é caso para dizer que está velha"
- "Ai, estou, estou, noto quando caminho. E de manhã quando ponho os pés no chão a sair da cama, parece que me estão a espetar facas. Ainda ontem comentava com o meu marido o que fazíamos antes e o que fazemos agora (suspiro)".

No ecoponto.
Ponho uma garrafa no vidrão. Tiro as embalagens e depois o papel de um saco de plástico, daqueles grandes que se pagam no supermercado.
Uma senhora está a revirar um caixote de lixo.
- "Desculpe, vai precisar desse saquinho"
- "Não, por caso não vou precisar, quer ficar com ele?"
- "Já viu este cortinado? já não se fazem cortinados destes"
- "Hoje em dia deitam-se fora coisas em muito bom estado", digo, enquanto abro o saco para ela guardar a cortina.
- "É mesmo, este vou aproveitar"
- "Claro, faz bem. Até logo"
- "Até logo e obrigadinha".

No cabeleireiro.
- "Ai não me diga, vive em Timor há quanto tempo?"
- "Há dois anos"
- "Em que parte?"
- "Em Díli"
- "Mas o nível de vida não é muito caro? Eu pergunto, porque o meu marido recebeu uma proposta para ir para lá trabalhar mas uns amigos nossos, que tinham lá estado, disseram que não valia a pena ir para ganhar 2.500 euros"
- "Sim, não é muito barato para os estrangeiros, sobretudo porque as casas e as viagens são caras, mas depende muito das motivações de cada um, do que se procura ao sair do nosso país"
- "Pois... e o que faz lá?"
- "Nada".

Depois

10.10.17
Pouco depois do acidente disse a alguém que tinha a impressão que na minha vida ia haver um antes do acidente e um depois.
Ora, ao contrário do que pode parecer não estava a ser dramática até porque naquele momento era bastante claro que o depois só podia ser bom, quanto mais não fosse por existir um depois para mim.
Só que agora estou aqui meio perdida nos vários cruzamentos da minha pessoa, o da rapariga insegura, o da mulher que ama e é amada, o da maternidade, esse imenso cruzamento...
Não é que eu esteja sempre a pensar em como raio viemos aqui parar. Eu em Lisboa com uma filha e a cabeça à roda, e o Jaime em Timor com os outros dois filhos.
Nem sequer, como pode mudar tanta coisa num repente?
Não, eu penso (quando chego aos Restauradores e confirmo que é o 709 que tenho de apanhar) ah, ainda me oriento em Lisboa, apesar de já não ser exactamente a cidade de que me lembro e de ter a cabeça à roda. E penso, será que vou conseguir abrir a porta do prédio? Espero que esteja encostada.
O que eu estou a tentar dizer de uma forma rebuscada, talvez, é que estou focada no que tenho de fazer e não em teorias do Big Bang. Por falar nisso, ainda não cortei o cabelo.
E tem resultado. Já não choro tanto depois dos telefonemas. Fartei-me de rir na consulta com a médica de família e quando cheguei a casa o carteiro ajudou-me a abrir a porta.

Cartas de Lisboa #4

25.9.17
Querida mamã,

Estamos numa fase um bocado complicada, mas como de vez em quando penso no que tu dirias estou a tentar concentrar-me nos aspectos positivos da vida. Com positivos refiro-me a bons momentos, a coisas engraçadas e a fontes de alegria.
1. A mais óbvia, e mais essencial, é estarmos os 5 em Lisboa. Desde ir à casa de banho às 3 da manhã e ver os dois meninos a dormir que nem anjos, às conversas de jantar tanto sobre cocó como Neruda ou até o clássico “Bea? Bea? Bea? Bea? Bea?... Queres ver os exercícios que fiz hoje?”. Não sei, existe algo de certo em estarmos os 5 juntos.

2. Eu estou a escrever à mão, que sabe muito bem.

3. Eu tenho mesmo bons amigos e passo horas mesmo boas na Arroio ( e tenho ainda 3 professores de Gravura mesmo bons).

4. Este claramente pertence à categoria dos engraçados: a vossa geração deve estar na moda, porque ando a conhecer montes de gente com as vossas alcunhas, desde Topé até Xana e mesmo Calita.

5. Olha, temos uma casa em Santa Apolónia.

6. E por fim, eu já consigo andar e a pancada que levaste na cabeça não deixou danos permanentes no teu cérebro, além das tuas momentâneas senilidades (?) que já estão presentes há muito. 

Cartas de Díli #6

17.9.17
Querida Bea,

Como sabes não escrevo esta carta de Díli mas de Lisboa. Ia dizer a tua cidade, mas será?
Temos falado muito do acidente mas também me parece que temos, ou tenho, evitado falar de alguns aspectos desse acidente. Eu sempre achei que se alguma vez estivesse metida numa tragédia com algum dos meus filhos morreria de sofrimento, se não tivesse morrido dos ferimentos. Mas estávamos as duas no banco de trás do carro e eu simplesmente não me lembro de nada.
O neurocirurgião disse que perante um trauma o cérebro desliga e eu, que fico sempre fascinada com a forma como o nosso corpo funciona, não pude deixar de ficar agradecida, além de maravilhada.
Mas era eu ali, certo? Não era só um corpo a reagir a um trauma. E tu estavas comigo.
Sei que a partir do momento em que fiquei consciente acreditei que ia ficar tudo bem. O Jaime, não sei se me disse mas tenho quase a certeza que o pensou, considerou que esse meu optimismo só podia ser um sinal de que não estava bem, ou tão consciente quanto isso. Mas eu dou-lhe todos os descontos. Como se faz com os nossos super heróis.
Amanhã é o teu primeiro dia de escola e não imaginas como é maravilhoso estar contigo nesta altura do ano. Quer dizer, imaginas, porque é bastante óbvio, já que não consigo esconder o entusiasmo ainda que ensombrado pela perspectiva de ver os teus irmãos irem embora com o pai, para irem também eles para a escola, que fica a 14 mil quilómetros daqui.
Céus, como vou ser capaz de me despedir deles?
Isto que eu ando a dizer sobre eles ficarem connosco até esta tua nova vida ficar mais consolidada é mesmo verdade. Eles podiam fazer o primeiro trimestre em homeschooling e depois retomavam as aulas em Díli. Mas estou a complicar, eu sei, só por me sentir incapaz de estar longe deles ainda que por pouco tempo.
Podes dizer que também fiz o mesmo contigo e não foi assim tão dramático (não??), mas é fácil perceber as diferenças. Além de teres sido tu a pedir-me, já estavas noutra idade e com outra autonomia. É claro que apesar de precisares de mim por perto, a minha presença não é determinante para o teu dia-a-dia como é para eles.
Enfim, mas mudemos de assunto. Estarmos em Lisboa todos juntos, dois anos depois de termos ido embora daqui, sobretudo contigo a começar a escola, deixa-me nostálgica.
E apesar de estarmos a atravessar um momento para o complicado delicio-me com as nossas conversas, com as ameixas (que posso lavar com água da torneira!!!!!), com o preço do vinho, com o peixe, as refeições que fazemos juntos, o casaco que me aconchega e o som do jogo do Porto e os gritos de "GOOOOOOLO" que chegam da sala.
Somos muito mais isto. Não importa em que cidade estejemos a viver, desde que possamos estar juntos.
Tenho a cabeça amassada e um aperto no coração, mas sei que vai correr tudo bem (será que ainda não recuperei?).
Sabes o que podemos fazer? Acenar e sorrir. 

Sobreviver

7.9.17
Estava no hospital quando me disseram: "Aqui em Timor, Agosto é considerado um mês de azar". Fez todo o sentido, mas fiz questão de pensar que para mim Agosto vai ser sempre um mês de sorte. Afinal, foi em Agosto que sobrevivi a um acidente de carro.
E agora até podia falar sobre o que significa isso de sobreviver a um acidente. Pensei em muitos momentos - por exemplo no avião ambulância, deitada numa maca com o cabelo cheio de sangue - que escreveria sobre isso quando me sentisse melhor.
Mas agora que me sinto melhor e depois de ter tido uns sonhos/delírios com figuras que me pareceram mitológicas, ainda que o nome que recorde seja Malaxandra, o que na verdade pode ter origem no verbo malaxar, que significa amassar, como o que se passou no acidente, o que só pode querer dizer que o meu inconsciente está sempre à procura das palavras certas e já não sei o que ia dizer a seguir.
Ah, já me lembrei. Agora que me sinto melhor apercebo-me que aquilo que procuro instintivamente é sentir-me bem, isto é, o mais confortável possível. Passo os dias a fugir da dor, a evitar o calor, a matar a fome, a dar descanso ao corpo. Lembrei-me da minha avó e de como temos tido dias parecidos. Lembrei-me também que é exactamente assim que nos sentimos quando respiramos pela primeira vez.
Enfim, uma pessoa quando se dedica a pensar fica boquiaberta com a basicidade da existência.

Domingo de manhã

22.8.17

O meu pai é o da direita. No meio está o irmão Ismael e à esquerda o António

O meu pai morreu há 31 anos. Tinha 35, portanto este ano entraria na reforma se ainda estivesse vivo. Não sei se ainda teríamos o minimercado "S. Félix" e se ele assaria frangos ao domingo de manhã. Passou a ser quase uma tradição sair da missa e ir comprar frangos ao Cirilo. Depois era só preparar um arrozinho, uma salada de alface e tomate e fritar batatas. Ficava-se assim com o almoço de domingo composto sem ter de deixar o assado no forno e alguém a por um olhinho para não queimar, enquanto se cumpria o dever cristão.
Em nossa casa também se comia, de vez em quando, frango ao domingo, mas como a minha mãe e avó não gostavam, continuámos fieis ao lombo assado.
A minha mãe decidiu fechar o minimercado depois de o meu pai morrer e a minha avó teve de ir com o livro dos calotes bater à porta das pessoas para pedir o dinheiro que deviam.
Tanta coisa mudou desde o final dos anos 80, inclusive a idade da reforma.
Claro que se o minimercado ainda existisse já não íamos à feira de Barcelos, à quinta-feira, comprar a fruta. Nem vinham os "viajantes" recolher as encomendas para serem entregues não me lembro em que dia da semana. Seria tudo muito diferente.
Talvez o sorriso do meu pai ainda fosse bonito.
Também poderia acontecer de o meu pai ser bem sucedido na política, como ansiava, e chegasse a Presidente da Junta, já que era uma pessoa bastante querida e popular lá na aldeia. E se os meus pais ainda estivessem juntos, ele era capaz de conseguir fazer um bom trabalho. Mas não estou a ver como o casamento deles poderia continuar a funcionar, se é que alguma vez funcionou, depois da C.
Um dia perguntei à minha mãe se a C. saberia que ele tinha morrido. Ela disse que provavelmente não.
Quando recordo a minha infância tenho a mesma sensação que Marit, uma personagem de um conto de James Salter, sinto que está lá quase tudo como um romance muito parecido com a minha vida.
E no entanto, aos 35 anos, a idade com que o meu pai morreu comecei outra vida.

O que se passa com as árvores?

16.8.17
Não sei se é por Mercúrio estar retrógrado, ou se é por ser Agosto, esse mês terminal, como em tempos defini, mas parece que a vida está suspensa. Fazemos as mesmas coisas de sempre, sentamo-nos a comer, saímos para comprar água e detergente da roupa, falamos sobre o futuro, enquanto não é formado um novo Governo, sacudimos a areia dos pés antes de entrar no carro, ficamos indignados com a marcação da leitura da sentença do português e da mulher, retidos em Timor há três anos, chocados com a morte de três pessoas num acidente, causado por uma árvore que caiu em cima do carro em que viajavam (o que se passa com as árvores? 13 mortos e 49 feridos, na Madeira. Três mortos e dois feridos em Manatuto).
Pensando bem, não fazemos as mesmas coisas. Repetimos gestos e convenções para não dar em malucos. Seguimos em frente, mesmo quando no início da estrada está o sinal com a fita branca e as cadeiras já estão a ser alinhadas para o funeral da criança, mesmo quando os gritos das mulheres ficam a ecoar dentro de nós.

O vestido amarelo

7.8.17



Numa tarde fizemos um vestido amarelo (nota para mim própria: nunca mais costurar alguma coisa a partir de tutoriais de youtubers). Foi uma tarde com muitas tardes, e vestidos, dentro. Por exemplo, as tardes dos vestidos da Inês de Castro e da Jasmin quando ela estava no infantário. Aquela outra do vestido da Alice no País das Maravilhas, quando estava na primária, igual ao que vestia numa tarde em Paris, quando viajámos sozinhas. Ou a tarde que se prolongou pela noite dentro por causa do vestido do século XVIII, para a apresentação de um trabalho na aula de português do 8.º ano.
Pensei que nunca mais voltaria a ter dessas tardes até ao vestido amarelo.
O vestido amarelo, além de ser um vestido que eu pensei que nunca viria a existir, vai ser sempre especial, apesar de todos os defeitos, porque foi o primeiro que fizemos juntas, com ela a costurar comigo.
E foi o único que teve o privilégio de ser fotografado na Pousada de Baucau o que, convenhamos, o favorece grandemente.

Cartas de Lisboa #3

22.7.17
Querida progenitora,

Estou neste momento na ribeira das naus, sentada numa mantinha a ouvir o Leyder a tocar guitarra (o Hotel Califórnia, note-se, como o nosso Paulinho gostaria) com o Alex, um alemão a fazer backpacking pela Europa porque se aborreceu da sua aldeia num belo dia de verão e apetecia-me estar a escrever à mão, mas há que ser prática e não escrever a mesma porcaria duas vezes não é? A minha vida ultimamente tem sido isto. Como sabes, as condições em casa não são ideais por isso esta comunidadezinha que se criou neste belo sítio está a saber muito bem. 
Passam-se os dias neste verão que eu tenho a certeza que será inesquecível assim, sentada na ribeira (numa zona que como o nome indica tem o rio Tejo ao lado [todos sabemos que o Douro seria preferível, mas não deixa de ser agradável] e tem um espaço com relvinha e umas quantas árvores) a conhecer pessoas novas todos os dias e a passar 12 horas por dia com pessoas que conheci neste sítio há um mesito e tal mas com quem já ganhei a confiança de quem acampou 4 dias seguidos e sabe todas as maniasinhas das pessoas desde que acorda até que se deita e mesmo enquanto dorme. 
Aqui conversamos sobre tudo e mais alguma coisa, desde as coisas mais disparatadas até às mais sérias possíveis, temos ataques de riso que duram horas, trocam-se olhares de cumplicidade, convidamos os turistas que se sentam por aqui a sentarem-se connosco e partilhamos as nossas experiências e culturas e inspiramo-nos todos uns aos outros. Também vamos a concertos de vez em quando e todos os domingos estamos no outjazz, porque não somos assim tão inúteis (ainda que seja um termo carinhoso frequentemente usado neste grupo). É indiscritivelmente lindo, e nem quero saber se indiscritivelmente existe.
E já te falei do Musa? Se já, não deve ter sido grande coisa, porque não me lembro disso. Na quarta feira dia 28, graças a uma amiga da Arroio, mas que conheci na ribeira, fui com ela e mais dois amigos dormir no acampamento. No dia seguinte juntou-se o resto do grupo, incluindo a Francisca e a Joana e mais pessoas maioritariamente da Arroio que conheci principalmente na ribeira. Não existem mesmo palavras para descrever o quão bom foi o ambiente nesses dias. Não existiam dias específicos nem sequer o resto do mundo, nós entrámos numa bolha de boa onda e felicidade que não foi perturbada por nada. Passámos os dias na praia até às 16 da tarde e depois íamos para o recinto dos concertos e passávamos lá o resto do dia a dançar ao som dos concertos e pelas 2 quando acabavam ainda íamos para a praia conversar e só aí é que íamos para as tendas. Apanhei um senhor escaldão mas acredita que valeu a pena.
Ainda por cima, daqui a menos de uma semana já estou convosco e também com a Rita, e vamos passar mais de um mês perfeito, e a seguir disso inicia-se mais um ciclo entusiasmante em vários aspetos.
Mal posso esperar por tudo, já estou a morrer de saudades de todos vocês. Como estão? Já sabes que estou super orgulhosa do teu trabalho na Abut, certo? É mesmo a tua cara.
Enfim, vou voltar para o universo da ribeira, sessões de filosofia esperam-me.
Beijinhos e até já (sabe tão bem).

Pão com passas

21.7.17
O título é emprestado da minha To do list. Lá, diz que além de pão com passas tenho de fazer umas revisões de textos, enviar uns e-mails e escrever este post, que já está nos rascunhos há uns dias com: "Foi encontrado um casal congelado e conservado nos Alpes, que desapareceu há 75 anos".
Usar o primeiro item da minha lista foi uma tentativa de desbloqueio que não faço ideia como vai resultar, porque não estou a ver qual a relação entre a notícia do casal congelado, que me fez lembrar o filme 45 Anos, e pão com passas.
Até pus no google Charlotte Rampling + raisin bread e nada. Não há qualquer ligação, aparentemente.
Como não há na compra da fruta dragão, no dia da campanha do CNRT em Díli, a não ser o facto de ter sido eu a comprá-la, de estar com ela na mão e ver passar os barcos com as bandeiras do partido do Xanana rumo a Tasitolu.
Como não há na ausência de prémio na raspadinha Futu Manu (luta do galo), logo a seguir a saber que a minha avó estava a ser operada no Hospital de S. João.
Ou o meu cão gostar de bolachas Maria, ao ponto de as enterrar cuidadosamente com o focinho, e as anonas ficarem podres antes de amadurecerem.
Quer dizer, estou eu a comprar a fruta e a ver a caravana no mar e a raspar a Futu Manu e a ouvir a minha mãe e a dar bolachas ao cão e ver as anonas pretas e daqui a pouco a fazer pão com passas. Sou eu a ligação entre isso tudo.
Uma pessoa, realmente, precisa de chegar a velha para compreender os filósofos.

P.S no filme "45 anos", o casal que está prestes a celebrar 45 anos de casamento vê a sua vida ensombrada por uma carta que dá conta do aparecimento do corpo da antiga namorada de Geoff, que morreu tragicamente ao cair numa fissura de um glaciar na Suiça, em 1962. 

Cartas de Díli #5

9.7.17
Querida Bea,

Esta carta se calhar vai ser mais curta do que as anteriores, porque estou cansada. Podia continuar a adiar escrevê-la até me sentir com mais energia, ou com as ideias mais claras, mas estou convencida que obrigar-me a manter uma periodicidade é importante.
Estou a meio de uma semana diferente, e intensa, de trabalho com o workshop de jornalismo para crianças e devo dizer que tem sido uma experiência e tanto.
Quando me perguntam como está a correr eu não sei bem o que responder, porque para mim está a ser muito interessante e frustrante ao mesmo tempo.
Primeiro, porque trabalhar com crianças, mesmo não sendo uma novidade, é sempre um desafio. E depois, é muito complicado ver todo o potencial daqueles miúdos e não saber como convencê-los a usar essas capacidades, porque nem eles sabem que as têm.
Há ali miúdos incríveis, que desenham como nunca vi, que riem como nunca vi, que choram, que se controlam, que se esforçam e lutam como sabem.
Só passaram três dias (apesar de me parecerem três semanas) mas já sei de cor quase todos os nomes, mesmo que os pronuncie incorrectamente, já consolei birras de cansaço, já pus pensos em feridas, já sanei conflitos e já dei abraços de mimo (sim, sem pedirem, imagina).
Além disso, acho que começam a ter uma ideia da estrutura de uma notícia. Não sabem escrevê-la, ainda, ou não todos, pelos menos, mas sabem o que é o título, a legenda da foto e que o texto deve responder às perguntas Quem? O Quê? Onde? Quando? e Porquê?
Não tenho a certeza se o orgulho com que me mostram os resultados é por terem concluído a tarefa pedida, ou por sentirem que aprenderam qualquer coisa. Suponho que na cabeça deles uma coisa implica a outra, mas sabemos que nem sempre é assim.
Por outro lado, os teus irmãos, que passam as manhãs no "Summer Camp" e as tardes em casa com a Domingas estão no pico da carência afectiva, tipo, ao ponto de irem para debaixo do coqueiro que é o único sítio da casa para onde não podem ir, porque nesta altura estão sempre a cair cocos.
Não te rias (sim, estou mesmo a ver-te gozar comigo), há mais casos de mortes com cocos na cabeça do que com ataques de crocodilos, lembras-te? Ainda por cima, desde que estou cá só vi um crocodilo, contra três cocos que me acordaram a meio da noite a cair no chão.
Não é que a estatística me interesse por aí além, enquanto disciplina, mas eu guardo uma lista de formas de morrer surreais e nem imaginas as coisas absurdas que acontecem.
Entretanto, a semana acabou e não te enviei a carta. Depois do terceiro dia de trabalho fiquei doente, com tosse, mas o ben-u-ron resolveu a coisa e sobrevivi à primeira semana. Agora, estou mais ou menos em pânico com a que começa amanhã.
Também já dei por mim a pensar que vou sentir a falta deles. São quase todos irritantes e maravilhosos na mesma proporção.
Enfim, é bem possível que esta experiência esteja a ser a mais intensa desde que estou em Timor, porque mexe com o meu lado mais ingénuo. Aquele que olha para estas crianças, que são o futuro deste país, e acredita que pode fazer alguma diferença com as palavras.

Existência

1.7.17
Nunca me ocorreu que se pudesse alugar (que dizer comprar) um filme de ficção científica indie no clube de vídeo (que dizer na loja de cópias manhosas de filmes) de Colmera, apesar de se encontrar de tudo no meio daqueles milhares de DVDs. Mas foi exactamente o que aconteceu e por isso ontem vimos o Bokeh.
É um filme apocalíptico diferente da maioria dos filmes que eu vi sobre o fim do mundo sem, no entanto, deixar de ser desconcertante. Mas aquilo que mais nos surpreendeu foi os miúdos ficarem a vê-lo com um interesse nunca antes demonstrado num filme de adultos.
Aliás, quando lhes dissemos que podiam ver, pensámos que iam desistir passados três minutos e meio, como é costume, só que aguentaram quase até ao fim. Desistiram na penúltima cena, com o Isaac a chorar, e fizeram-nos prometer que lhes contávamos o fim no dia seguinte.
Ao Isaac contei, ainda antes de ele adormecer, que o filme tinha sido um sonho da protagonista e que tudo tinha acabado bem (sim, menti-lhe com quantos dentes tenho) e na manhã seguinte, ainda meia a dormir, respondi ao Nicolau que sim, que as pessoas tinham aparecido todas outra vez.
Não há grandes coisas a acontecerem no filme (se virem o trailer, praticamente viram o filme), o que torna todo este interesse por parte deles ainda mais surpreendente.
É como se as grandes questões existenciais existissem ainda antes de nós.

Férias

28.6.17

Era muito raro chegar ao blog e não saber o que escrever. Agora, acontece-me ficar com a página em branco a pensar se tenho realmente alguma coisa importante para dizer.
Não há nada de muito assinalável a acontecer na minha vida (mas alguma vez houve?). Vejo os meses a ficar para trás no calendário: Maio, fim-de-semana radical; Junho, Calita out, ficha pt, ficha matemática, ficha est. meio, FERIADO, aferição pt, aferição mt, S. JOÃO, Fim da escola do Isaac, Fim da escola do Nicolau. 
A sebe de buganvílias, que o Sr. Abel, afinal, conseguiu podar antes de Maio terminar, mesmo no final, já está exuberante outra vez. 
As férias grandes começaram, o que significa que é Verão (como, se é sempre Verão?) e que esta casa vai ficar virada do avesso. 
Faltam 31 dias para chegar a Bea.

Realidade e ficção

22.6.17

Foto daqui

Estava a virar a esquina para entrar na minha rua e um miúdo, mesmo à minha frente, abre as asas do morcego que tem nas mãos e guincha. Dei um pulo, assustada. Ele riu-se. "Pobre morcego", pensei. Talvez estivesse morto.
Tenho andado rodeada de morte. Das personagens: a Marta Téllez, do Javier Marías; das pessoas que morreram no incêndio; das pessoas que são também personagens: o João Jorge, do Bruno Viera Amaral; da minha lista de "Formas de morrer que não lembram a ninguém", retiradas das notícias.
Acordo todos os dias entre as 4h00 e as 5h00, assustada e volto a adormecer. Li qualquer coisa sobre isso querer dizer que um poder superior está a tentar comunicar comigo. Mas devo ser eu a querer comunicar, como a Hilda Hilst - Calita pedindo contacto.
No meio deste torpor, causado pelo calor e pelo anti-histamínico, misturo a realidade e a ficção. São difíceis de distinguir de qualquer das formas.

Cartas de Lisboa #2

19.6.17
Boas tardes (ou seja qual for a expressão mais apropriada para a situação da estimada leitora [peço desculpa aos fãs do blogue mas refiro-me apenas à minha mãe porque não há garantia de que vocês não sejam assassinos em série ou pior, apoiantes do trump, e portanto não posso afirmar que são estimados]),

Estão quase 40 graus em lisboa, portanto não prometo que o conteúdo desta carta faça muito sentido.
Na verdade, esta já é a quinta carta que te escrevo, mas entre entregas de portefólios e escolhas de áreas e a agitação natural de início de férias (que só morreu este fim de semana porque os amigos mais próximos estão fora e está demasiado calor para eu ter motivação para estar com os amigos menos próximos) acabo sempre por não as acabar. Para resumir o conteúdo das últimas 3, desenvolvi uma obssessão gigante por ABBA e descobri assim todo um novo método de lidar com raiva, tristeza, ou seja o que for (um destes dias devia gravar, porque dançar com raiva deve ser das coisas mais hilariantes que se pode observar), descobri um novo mundo em tinta da china que eu até agora odiava mas que me tem dado ótimos resultados (tipo uma tendinite no pulso por desenhar demais) e já te devo ter contado entretanto pelo querido facebook mas escolhi ir para Gravura e Serigrafia. Na semana das aulas abertas (onde se podem visitar as várias oficinas para ajudar na escolha da área), eu fui toda feliz e contente mais ou menos convencida de que queria ir para RPE à oficina de Gravura (vou esclarecer para futura referência que Gravura e Serigrafia é o nome do curso mas provavelmente vou-me sempre referir ao mesmo apenas como Gravura e mais uma vez que RPE é reprodução plástica para espetáculo ou seja cenografia e figurinos) e lixei-me. Não é que eu, finalmente mais ou menos decidida, finalmente sem crises existenciais chego à oficina de Gravura e saio quase a chorar porque não sei o que fazer da minha vida? Tive um ano inteiro tranquila com a escolha porque já tinha uma ideia mais ou menos final e uns dias antes de ter fazer a escolha é que vem a confusão? Imaginas o drama, não imaginas? Enfim, acabei por decidir seguir o meu curaçón e apesar de ainda não ter 100% de certeza que foi a decisão certa, estou confiante de que vão ser uns bons 2 anos dos quais eu vou ter muitas saudades no futuro.
Entretanto, não sei se sabes, foi-me oferecida a oportunidade de ir viajar com uma amiga a Timor. Vai ser incrível, estou farta de pensar nisso. Mal posso esperar por lhe mostrar a Areia Branca e o cristo rei, a fantástica ilha de Jaco e toda a aventura que será lá chegar e claro, Liquiça (we'll always have Liquiça). Vou é ter de visitar um casal de bêbedos e os seus dois gunas superheróis, mas olha, há sempre um preço a pagar pelas coisas boas :P
Vá, todos sabemos que não é verdade. Quer dizer, é, porque nenhum dos títulos é particularmente injusto, mas acho que não é preciso dizer as saudades que tenho vossas.
No outro dia estava a descer a rua Garret e vi um homem (senhor? gajo? rapaz? ahhhhhhh não sei) alto, de cabelo preto, a usar calças de ganga e uma t-shirt branca e com uma mochila azul às costas a entrar naquela coisinha que vai dar ao ex-escritório do Jaime e quase que corri atrás dele. Quase. Tenho mesmo muitas saudades vossas. Dos nossos almoços com ótimas conversas sejam estas filosóficas, políticas, sobre música (mais com o Jaime) ou até as conversas em que chegamos à conclusão que à exceção do Jaime tu claramente tens mau gosto em espécimes masculinos pelo menos do ponto de vista físico.

Além de traumatizados, como estão os rapazes? E o Douro, sofreu alguma consequência pelo homicídio ou o advogado disse que ele tecnicamente não sabia o que estava a fazer e safou-se?
Acho que descobrir que os bichos morreriam de qualquer das formas é das melhores coisas porque nunca me irei esquecer do ato heróico (agora inútil) do pobre Jaiminho com essas criaturas cujo nome deveria claramente ser Hitchcocks ou então aqueles-coisos-que-voam-em-Laclubar.

Um completo aparte que eu acho que devia ser mencionado, como resposta ao teu primeiro parágrafo da carta #3, é que me tenho apercebido cada vez mais que eu sou aquilo que sou graças principalmente a ti e ao Jaime. Com ele posso falar melhor depois, mas gostava mesmo que tivesses noção que não és, de todo, resumida a "uma mãe bastante depressiva, uma jornalista frustrada". És, de longe, a melhor mãe que conheço. Consegues nomear um par de mãe e filha com uma relação tão boa como a nossa? Eu não. Fizeste e continuas a fazer um ótimo trabalho em educar os teus filhos ouvindo e respeitando na mesma todos os sentimentos deles e aquilo por que estão a passar. Sim, podes não ser a pessoa mais paciente do mundo nem a mais bem-disposta. Mas é assim que gostamos (imenso) de ti, e gostava de ter palavras para descrever melhor o impacto positivo que tens em toda a gente à tua volta.

Em relação à aphantasia, acho que melhorou bastante. Desde que entrei na Arroio que consigo mais ou menos visualizar. No fundo, apercebi-me de que sempre o consegui, mas é de uma forma diferente da das outras pessoas. As minhas imagens não são muito nítidas, e raramente são coisas literais. Por exemplo, agora quando fecho os olhos e me concentro, consigo ver-vos aos quatro a jantar, mas é de uma forma muito Wes Andersoniana e a imagem não é muito clara. Pode mais ou menos ser comparado a um ecrã de cinema muito muito muito muito longe de mim. Basicamente, a escola está a ajudar-me a desenvolver ferramentas para finalmente conseguir ver o que a minha imaginação esquisita e muito ativa sempre criou. Ou então ando a ter alucinações induzidas pela atmosfera provavelmente infestada com drogas à porta da escola.

Cartas de Díli #4

14.6.17
Querida Bea,

Agora que as férias da escola já começaram, tenho tido poucas notícias tuas. Espero que seja por andares entretida com coisas boas.
Na semana passada sempre fui fazer o tal trabalho de campo com a Timor Aid e lembrei-me muitas vezes daquela conversa que tivemos no Museu do Budismo Mundial, em Kandy, lembras-te?
Perguntaste-me se a minha vida era muito diferente da que tinha sonhado/imaginado para mim. Lembrei-me disso, porque andar no terreno a pesquisar sobre tais, a descobrir coisas fascinantes sobre estes tecidos e a conhecer novos sítios foi das coisas mais entusiasmantes que fiz nos últimos meses (e o entusiasmo é tudo. Já te disse isto muitas vezes).
Nessa conversa em que te contava o que tinha imaginado para mim e em que te revelava, pensava eu, como acabei numa vida bastante diferente, mostraste-me que eu tinha conseguido fazer exactamente aquilo que tinha sonhado. Tinha filhos, tinha trabalhado como jornalista e estava a viajar por muitos sítios do mundo.
Pois, de facto. Só que não é bem assim (ou é?). Acabei por ser uma mãe bastante depressiva, uma jornalista frustrada e as viagens são pagas com o salário do Jaime. Mas, sim, estou a viver a vida que escolhi e tem sido bem interessante.
Ainda agora interrompi a carta para observar um pássaro na árvore em frente à janela e  fiquei uns bons minutos a vê-lo coçar-se com o bico, naqueles movimentos rápidos que as galinhas também têm.
[Um aparte. Tenho pensado muito em galinhas. Nas conversas que ouvi ao longo da pesquisa, e que não conseguia acompanhar por causa da língua, ficava muitas vezes a olhar para as galinhas. São animas fascinantes. Também nunca mais me esqueci daquele sonho que tiveste em criança, sobre as pessoas que queriam falar com as galinhas, quando elas não falavam inglês. Só uma achava que sabia, mas não era verdade e os maus vieram matá-la. Isto foi em Agosto de 2006, tinhas cinco anos (as vantagens de ter um blog nunca devem ser questionadas).]
A seguir pensei ir lá fora ver se descobria que árvore é esta, em frente à janela, mas fiquei com medo de me cruzar com a Domingas a pentear o cabelo. Não é medo, claro, é desconforto. Acho sempre que devo dizer alguma coisa quando ela está a pentear-se, ou sentada num banco à sombra, mas nunca sei o quê.
A Virgina Woolf fala desse "medo" em relação às empregadas nos "Diários". Ainda fui à procura de posts antigos no blog, para ver se encontrava alguma referência, mas não encontrei nada. Ainda assim li vários dos quais já não me lembrava, como um a propósito do "Mrs Dalloway". Parece que há um momento do livro em que me lembrei da personagem de um conto, o "Amor", de Clarice Lispector. E acabo o post com a seguinte frase: "Acho extraordinário que ser dona de casa no Brasil (Rio de Janeiro?), nos anos 50/60; em Londres, nos anos 20 e em Lisboa no início do século XXI seja quase a mesma coisa.".
Eu, às vezes, chego a conclusões brilhantes, tens de admitir (estou a rir às gargalhadas).
Enfim, fazer este tipo de coisas, ir à janela olhar para um pássaro e voltar ao computador, é muito habitual no meu dia-a-dia. E é uma coisa que sempre me imaginei a fazer também. Mas a nossa imaginação, no fundo, é bastante limitada, porque não visualiza a solidão, a angústia e as dúvidas. Ou, talvez seja só a minha imaginação.
Bem, pelo menos tu não tens esse problema visto sofreres de 'aphantasia'. Por falar nisso, como é estar num curso de artes com esta limitação, se é que é uma limitação?

Ser ouvidos

12.6.17

Andei uma semana pelos distritos (um dia escrevo sobre o que é que isso quer dizer, porque só quem vive, ou viveu, em Timor sabe exactamente o que significa), com três timorenses a fazer um levantamento sobre tais - os tecidos tradicionais.
Poupo-vos o chorrilho de frases feitas sobre o sorriso das crianças ranhosas, a hospitalidade das comunidades, a vida simples que parece seguir indiferente a carências várias.
Por um lado, porque eu própria não tenho tenho paciência para ler essas baboseiras, e depois de que serve sentir-me tocada pela vida dos outros quando sei que vou chegar a casa, mais cedo ou mais tarde (aqui é garantidamente sempre mais tarde), e comer o que me apetecer e tomar banho de chuveiro e beber duas garrafas de vinho?
É verdade que eu tenho tendência a reagir emocionalmente em certas situações. Por exemplo, no museu onde trabalhei, tive de me esconder no cockpit do avião a fingir, porque uma das crianças do grupo que eu estava a orientar tinha leucemia. De outra vez cruzei-me com um bebé, filho de uma das mães solteiras que a instituição onde eu trabalhava acolhia, e quando cheguei a casa desatei num pranto tal que ninguém sabia como me acudir.
Não foi o caso nesta minha experiência. Nem mesmo com a avó de 60 anos a amamentar o neto que está a criar, porque lhe morreu a filha.
Senti-me embalada pelas conversas que não entendia. Via as crianças penduradas nas mamas das mães, sentia a subida do leite e sabia que não tinha de amamentar. Que liberdade! não há liberdade maior.
As mulheres respondiam às perguntas, falavam das tradições da comunidade, riam-se,
sempre com crianças a fazer ninho nos colos.
Em todas as casas havia um mar de gente, que come e dorme e faz tudo o que se faz numa casa, mesmo com cortinas em vez de paredes e em vez de portas. A privacidade é muito subvalorizada nesta ilha.
Não me sentei no chão de terra batida, ou no cimento, uma única vez, porque há sempre uma cadeira de plástico para as visitas, e um naperon para a mesa.
Pareceu-me tudo muito familiar, como uma memória.
Depois entrava no carro e seguia sem crianças a querer fazer ninho no meu colo, a perguntar se falta muito, a abrir a janela para vomitar. Que liberdade!
Quando cheguei a casa vi a Elza Soares no computador. É pouco mais nova que a minha avó e é um gosto ouvi-la, como é ouvir as histórias que a minha avó inventa sobre o tráfico de droga em frente à escola primária. Mas já ninguém quer ouvir a minha avó. Eu ouvia a Elza e pensava na minha avó e nas mulheres dos distritos e percebi que é tudo sobre isso, sobre querermos ser ouvidos.

O que me preocupa

2.6.17
Eu sei que devia estar preocupada com as provas de aferição e os exames globais e o aproveitamento escolar das crianças e tudo o que possa pôr em causa o sucesso deles no futuro, mesmo que eu não faça a mais pequena ideia do que isso seja, até porque tenho vivido neste engano de que o importante é que tenham saúde e sejam felizes.
Devia estar preocupada com esta dor de lado que me apanha o rim, e talvez o fígado e um bocado do estômago e às vezes o intestino grosso e que aparece e desaparece, mas uma pessoa fica a pensar nisso, porque não vai para nova e nasceu num país onde as doenças são troféus, enormes troféus, cada um mais elaborado e cheio de recocós do que o outro e isto fica entranhado nos genes.
E a paz no mundo, meu deus, devia estar preocupada com a paz no mundo, como as misses do Universo, que é feito delas, já agora? O mundo está a precisar que se faça alguma coisa.
Mas não, não. Eu estou preocupada com os pensos higiénicos que deixei inadvertidamente no balde do lixo da casa de banho e que foram devidamente recolhidos com o restante lixo da casa para serem depositados lá fora, na lixeira que está no passeio, para serem farejados pelos cães que os espalharão na estrada, deixando assim à vista de toda a gente os vestígios da minha feminidade.

Cartas de Díli #3

30.5.17
Querida Bea,

Nem imaginas como foi bom receber a tua resposta. Quer dizer, já falamos sobre isso, claro, mas parece-me importante deixar registado. Além da alegria que vem sempre com a chegada de uma carta, foi uma surpresa ver-te falar do que sentes (sim, conseguia ver-te enquanto te lia), de uma forma quase espontânea, quando sei o que te custa olhar para dentro, ou melhor, expressar esse olhar.
Menos surpreendente é ver a pessoa em que te estás a tornar e os sentimentos que essa pessoalização provocam em mim. O espanto, a alegria imensa, o medo e o amor, como quando te vi pela primeira vez. Sim, acho que estamos sempre a reamar os nossos filhos, sem deixar de os amar como da primeira vez.
À medida que ia lendo, sem conter as lagriminhas do costume, parecia que estava a ouvir o "Father and Son" do Cat Stevens (que curiosamente faz parte da banda sonora do filme que te falei na última carta). Eu a pensar: "But take you time, think a lot/Why, think of everything you've got/For you will still here tomorrow, but your dreams may not" e tu a responder: "Now there's a way and I know that I have to go away/ I know I have to go".
Escusas de casar e assentar, evidentemente (é uma música datada, apesar dos sentimentos intemporais), mas tenho de concordar que não deves ter pressa. Só que não há uma maneira certa de perceber isto quando estamos na idade de todas as urgências.
Continua a ler, lê sempre, compõe, faz coisas que te dêem prazer e que façam sentido para ti, apaixona-te, procura os bocados de Natureza na cidade (As árvores são grandes aliadas, tanto na tristeza, como na alegria) (Lembras-te dos nossos piqueniques na Estrela?), e já agora come muitos legumes e faz exercício.
Por aqui não há nada de muito novo a acontecer, mas talvez a minha visão esteja tolhida por uma tristeza ensombrada que sempre procuro combater com excessos vários e, a maior parte das vezes, desnecessários.
Ocorreu um pequeno drama, na verdade. Lembras-te daquele gato que não salvámos tentando salvar? Pois aconteceu uma coisa semelhante. O Isaac viu um lindo gatinho bebé na rua, que é onde vivem todos os animais domésticos deste país, como sabes, e quis trazê-lo para casa. Eu hesitei, sobretudo por não saber como pôr um cão a aceitar um gato na mesma casa, mas acabei por ceder convencida que ia saber resolver o problema. Pois que me enganei redondamente (que é uma coisa que raríssimas vezes acontece, como toda a gente sabe) e tive de devolver o gato à sua "casa", prometendo ao Isaac transformado em menino da lágrima que levaríamos comida todos os dias ao animal.
Acontece que o gato deve ter gostado muito de nós e entrou por baixo do portão. O resto consegues adivinhar, certo? Isto só por si já é horrível, mas nesse momento o teu irmão começou a gritar como alguém que acabou de descobrir a pior tragédia da sua vida, um filho morto num acidente, um marido levado pelo mar, aquele choro lancinante como a dor que estão a sentir. Eu nunca tinha ouvido ninguém chorar assim, e chorei também por causa do choro dele. E por causa da minha irresponsabilidade e por continuar à procura de uma moral nas leis da Natureza.
Fiquei sem conseguir encarar o Douro durante alguns dias. Ele percebeu, mas dizia-me que era um cão, que eu não podia esperar que fosse outra coisa diferente, e voltei a fazer-lhe festas.
Entretanto, as férias estão quase aí e a tua vinda a Timor quase consegue tirar-me do tolhimento. Vai ser giro voltarmos a Jaco, ao black rock (We will allways have Liquiça), a Balibó, a Same e quem sabe a Laclubar. Acho que em Agosto não apanhamos com a "chuva" de efeméridas. Sabes que depois disso fiquei a saber que esses insectos saem da terra e só voam por uns minutos, ou seja, quando eles começaram a cair no chão não foi por causa da luta heróica do Jaime, de insecticida na mão, foi mesmo porque a certa altura morrem, ou perdem as asas, não sei ao certo. Enfim, se soubéssemos disso talvez não tivéssemos vivido aquele momento Hitchcock.
Não sei como lhes chamam aqui em Timor. Vi no livro do Agualusa que em Angola são conhecidos por Salalés e que a ele, ao narrador d' O Vendedor de Passados, sempre lhe pareceram "seres sem maldade".

Os mundos

23.5.17

Há o mundo lá fora. Com os atentados terroristas. As peças de teatro. Crianças de babete. O chiar dos comboios. Migas de vinho. Velhos tristes. O frio das frinchas. Bodas de prata. Refugiados e outros desalojados. Auto-estradas. Com o futuro sempre no presente. O nevoeiro cerrado. Com os olhos nos olhos nos cafés. E o iodo que vem do mar.
Há o meu mundo. Com o som das vassouras que varrem os quintais. O pássaro que caiu do ninho. O gato que veio da rua e o cão matou. As crianças a cantarem na igreja de Motael. O medo. Sempre o medo (E se eles caem. E se eles se afogam. E se eles ficam doentes. E se eu fico doente. E tu, vais estar sempre aqui?). As papaias sumarentas. Os sorrisos forçados. Os sorrisos verdadeiros.  As crianças a aprenderem que "Ela é feita para apanhar/ Ela é boa de cuspir". E o lixo que vai para o mar.
E há o mundo das redes sociais.

Cartas de Lisboa #1

17.5.17
Mamã linda,
Como sempre, a minha vida é um filme (se isso se deve a acontecimentos ou simplesmente à minha tendência para dramatizar [primeira e última vez que me vais ver a admitir isto] é algo debatível, mas eu diria que é uma mistura pouco saudável dos dois). Há coisas muito boas, como ter finalmente encontrado OS meus amigos que ouvem os meus dramas e se riem quando é altura de rir, choram comigo quando é altura disso e têm de ser impedidos de dar murros às pessoas que me chateiam ou finalmente sentir que me enquadro mesmo no ambiente da minha escola. Há coisas pequenas também muito boas, daquelas coisas discretas que sem atenção nem se notam, como andar a descobrir tanta mais música incrível (ouve Liniker - Zero, de nada) do que o costume ou já não querer saber do que vejo ao espelho antes de sair de casa porque a maior parte dos complexos já se foram, ou até ter ganho completamente o hábito de desenhar ao ponto de ter encontrado aí mais um porto seguro (tipo como antes só tinha a música e até certo ponto a leitura). Entretanto voltei a ler, acabei ontem o The Great Gatsby (pela terceira vez), estou a meio do Guerra e Paz e estou também a reler o Persuasão (ainda me estou a habituar aos 20mil nomes diferentes do primeiro, e acho que desta vez estou a gostar ainda mais do segundo). Também comecei a ler poesia, descobri que existe mais poesia além da que aprendemos em português e da que o meu pai faz questão de recitar nas piores alturas para as pessoas mais desinteressadas por poesia de sempre e comecei mesmo a gostar muito. Até, quem diria, voltei a escrever e estou a tentar aprender uma peça de piano (das a sério e não as minhas “musiquinhas”, que já agora estão cada vez mais parecidas com música a sério). Talvez já seja óbvio a este ponto, mas arte tem sido o meu refúgio e sinceramente sem estas coisas não sobreviveria.
As saudades funcionam mais ou menos em ondas. Estão sempre lá, mas afetam-me de formas diferentes dependendo de sei lá eu o quê. Por exemplo, como vou a pé para casa todos os dias passo pela escolinha dos meninos. Às vezes isso deixa-me um sorriso na cara, uma certa nostalgia, como hoje. Outras vezes só não desato a chorar porque estou em público (e mesmo assim). Tal como as coisas boas, a falta que sinto de todos vocês tem coisas grandes e coisas pequenas. Ou seja, há o óbvio que já toda a gente sabia que se ia sentir, tipo nunca estar convosco e não termos os nossos fins de semana. Mas ninguém me avisou que eu ia ficar vulnerável quando as minhas sobrancelhas começassem a ficar nojentas porque quero que seja a minha mamã a arranja-las, nem que eu ia ouvir música fixe e pensar imediatamente “será que o jaime aprovaria?” (ou essa questão ser o que me ajuda a escolher roupa de manhã quando acordo com tempo suficiente para pensar em seja o que for), nem que eu ia estar a fazer trabalhos e sentir falta dessas lindas pestes a interromperem-me (imagine-se) porque já que vou acabar por me distrair de vez em quando ao menos que seja por dois rapazes tão lindos como os nossos.
No outro dia estava a pensar como é que eu seria quando fosse velha e depois apercebi-me de que ia ser velha e ia morrer e comecei a ter uma crise existencial e fiquei meia hora sentada no chão da casa de banho a pensar no Isaac e como eu o compreendo (isso ainda não me passou muito, por isso não vou falar mais de envelhecimentos nem nada do género).
Estou prestes a escolher a área que vou estudar nos próximos dois anos e daqui a 3 semanas as aulas acabam, mas não estou particularmente nervosa com nenhum dos dois (ahahahahahahaahahahahahahahaahahahahahahahahahahahah). Ok, pronto, não estou super segura da minha decisão (logo eu sempre tão pouco indecisa não percebo), mas acredito que é a decisão certa e se não for olha depois trata-se disso (uma crise existencial de cada vez, por favor).
Acho que já mencionei isto algumas vezes, mas preciso mesmo de sair de casa. Não consigo viver num ambiente tão tenso, muito menos sabendo que há uma solução que me trará tanta mais felicidade. Eu sinto, literalmente, o mundo à minha volta a chamar por mim. As exposições às 19 que são muito tarde para dias de escola, os concertos aos fins de semana para os quais não tenho idade (porque se no cartaz diz +13 só pode significar +20), os amigos que me ligam numa sexta à meia noite a precisar de companhia porque estão à beira de um ataque de pânico que eu não posso ajudar porque nunca na vida poderia sair a uma hora tão escandalosa. Entre tantas e tantas outras coisas. Sabes aqueles meus feelings de bruxa? Aqueles assustadores porque como raio é que eu adivinhei? Eu tenho esse feeling em relação a isto. Eu tenho a certeza que vou ser muito mas muito mais feliz. Tens noção do que é sentires-te tão pouco em casa que preferes estar na escola (com ou sem aulas, não interessa) do que no sítio onde vives?Tens.
Enfim, eu tenho um trabalho de desenho para acabar e também não posso gastar todos os assuntos numa carta, não é?
Beijinhos (para todos),
Bea

Memórias sensoriais

13.5.17
Com este clima nunca me tinha ocorrido tricotar, mas como pretendemos ir a Portugal no Natal resolvi trazer lãs e agulhas da última vez que lá estivemos.
Um dia destes estava na sala com o ar condicionado ligado (os desta casa funcionam mesmo bem) a montar e contar malhas e ouvi um camião a passar na rua. Nesse momento pensei que estava na casa da rua Maria, em Lisboa. O som lá fora, que me pareceu um eléctrico, a temperatura normal da sala e o tricot criaram esse momento, bastante confuso, devo dizer.
Mas não foi a primeira vez. Já antes, também nesta casa, estava deitada e um carro a apitar na rua fez-me acreditar que era a peixeira que costuma passar de manhã na minha aldeia.
Ficamos sempre com marcas dos sítios, parece. Estranho é as minhas memórias sensoriais não me levarem ao meu Porto.

Cartas de Díli #2

8.5.17
Querida Bea,

      Já estamos instalados na nossa casa nova. Fica perto do mar e tem um jardim muito bonito. Eu sei que o Jaime já te mostrou a casa no skype, por isso poupo-te os detalhes, menos o dos macacos. Sim, temos macacos, vi-os ontem em cima do telhado e apesar de não apreciar por aí além a espécie, não consegui deixar de ficar enternecida e quase maravilhada a olhar para os dois animaizinhos que se coçavam e nos miravam com igual interesse.
      Depois, fiquei a saber que os macacos mudaram-se para esta zona da cidade quando foram expulsos do jardim de Lecidere . Compreendo-os muito bem, é definitivamente a melhor localização para se viver em Díli.
      A casa tem um quarto de hóspedes com casa de banho e, muitas vezes, imagino que é o teu quarto. Eu sei que não gostas do calor e da lentidão dos dias em Timor mas, acho, haverias de gostar desta casa. Tem uma luz boa e um silêncio justo. Aos domingos de manhã ouvimos a missa da igreja de Motael e o Nicolau a andar de patins na sala.
      Escusado será dizer que ainda não comecei o meu plano de acordar cedo para caminhar junto ao mar, mas eu e os meus planos falhados são um clássico nesta família.
      Além da mudança de casa não aconteceu nada de muito relevante nas últimas semanas. Houve o momento da caixa de legumes da FarmPro (uma ONG que trabalha com agricultores de Ermera e faz entregas a quem subscrever o serviço) que me encheu de entusiasmo, não só por gostar do projecto mas porque é impossível não ficar radiante perante a variedade de verduras: brócolos, couve-flor, espargos, quiabos, rúcula, courgette, beringelas, etc.
      Também tivemos uma manhã fabulosa na praia do Cristo Rei. Estava maré alta e o mar tinha ondas, muitas ondas. Dá para acreditar? E imagina que chegámos a ter um bocadinho de frio quando saímos da água e tudo. Uma maravilha!
      Portanto, uma caixa de legumes e uma manhã de praia foram as coisas que me fizeram feliz por estes dias. Vamos considerar que isso é uma coisa boa, ok? Até porque a caixa de legumes também tinha ovos e morangos e, além disso, eu sou de gostar de coisas simples, como lambuzar-me de papaia e anona acabadas de colher, ver o pôr do sol na areia branca (agora que falo nisso já não vejo um há muito tempo) e estender-me a ler um livro.
      Ah, li o da Isabela Figueiredo, "A Gorda" e lembrei-me de quando a Carla nos perguntou, a mim e à Helena, se sabíamos de alguma casa para emprestar à Isabela para ela conseguir terminar o livro. Foi quando estivemos a três juntas no Porto e o Jaime teve a ideia de usar uma banheira como carrinho de rolamento, na Grande Descida de Carros Artesanais, lembras-te?
      Só mais uma coisa, vai ver o Guardiões da Galáxia 2. Acho que é impossível não gostar, mesmo sem legendas em chinês e bahasa. A banda sonora é soberba.

A casa nova

4.5.17

O tio Abel começou a podar a sebe de buganvílias. Acho que lá para Junho deve terminar. Não por causa do tamanho da sebe, que até é grande, mas porque vai podando aos bocadinhos, uns dez minutos por dia. Depois senta-se a olhar para o infinito. Aprecio-lhe sobremaneira esta forma de passar os dias. Há quem precise de fazer workshops e retiros para conseguir fazer isso, note-se. E, afinal, é muito simples: Um salário para os bens essenciais, um sítio para esticar o corpo durante a noite e tempo livre.
Pelo menos é o que parece visto de dentro da casa com cinco divisões mais a sala e a cozinha. E um closet. Não sei se o tio Abel consideraria um closet um bem essencial. 
Parece-me tudo excessivo na nova casa, menos o jardim. Não me importo nada de ter um jardim grande e frondoso, porque os jardins têm mosquitos (e muita fauna em geral) que, juntamente com o calor, são grandes aliados do anti-burguesismo. 

Ora bem

2.5.17
Mudei de casa e até aqui nada de novo, certo?
Quase certo, porque nunca antes tive um jardim assim. Ele tem:

Bananas


Limas (com muita sombra)

Carambolas

Fruta com nome desconhecido (para mim) que termina em nona (que aqui significa amante)


Outro nome desconhecido mas cujo fruto não é apreciado

Papaias

e Cocos
Ah, e o mar está logo ali, ao virar da esquina.

Cartas de Díli #1

24.4.17
Querida Bea,

      Quando nos separámos pela primeira vez, e eu ainda não sabia que as separações seguintes seriam igualmente dolorosas, decidi que devia escrever-te cartas com uma certa regularidade. Cheguei até a pensar que o ideal, mesmo, era fazer dessas cartas uma crónica mensal num jornal, porque assim não só me obrigaria a escrever, como conseguiria ser uma cronista a sério. Só que, depois de sondar uma ou outra pessoa sobre essa possibilidade, acabei por desistir da ideia.
      Acontece que desta última vez que estivemos juntas voltei a sentir essa vontade, muito por causa da prenda de aniversário que a Inês me deu, sabes? Não me lembro se te cheguei a mostrar (já estás habituada a estes meus lapsos de memória). Então, ela trouxe-me do Brasil um conjunto de cartas escritas por 12 mulheres em diferentes partes do mundo. Chama-se "Queria Ter Ficado Mais Tempo" e é da editora Lote 42. Ainda só li quatro, as de Buenos Aires, Tóquio, Berlim e Istambul, gostei mais desta última. Não sei como serão as outras cartas mas por enquanto a ideia parece-me melhor do que o conteúdo.
      E já que comecei a falar em livros, deixa-me dizer-te que tens toda a razão em relação ao "Burma Chronicles", realmente eu e o Guy Delisle temos muitas coisas em comum neste livro, se calhar foi por isso mesmo que a Luísa o quis oferecer-me. Aquela cena de ele ter grandes ideias sobre lançar uma revolução prostrando-se todos os dias em frente à casa da Aung San Suu Kyi, ou dar arroz todas as manhãs aos monges, e no dia seguinte continuar a fazer as mesmas coisas de sempre; os encontros de pais para as crianças brincarem e a dele ser a única que não tem ama; toda a gente a achar que ele desenha cartoons como hobby; aquilo de estar sempre a pensar como é que as pessoas vão levar todas as tralhas quando regressarem; a noção do quanto se está desconectado da realidade quando a maior preocupação é não se encontrar água tónica da Schweppes em lado nenhum (definitivamente deve ser a preocupação mais comum a todos os expatriados por esse mundo não ocidental fora); a ida a Bangkok com a lista de compras; o deixar de lavar a loiça aos fins-de-semana porque tem empregada (por falar nisso, a Domingas já voltou e deve estar a odiar esta segunda-feira) e por aí fora.
      O livro é mesmo espectacular e mostra bem o universo dos expatriados em geral e dos que trabalham em ONG em particular.
      Enfim, acho que seria mais fácil aproveitar esta experiência se, tal como ele, tivesse uma profissão e não um hobby, mas a verdade é que quem mais desconsidera o meu trabalho sou eu. Nem mesmo o que faço na Timor Aid consigo valorizar. Eu contei-te que estava a colaborar com esta ONG local no catálogo de Tais de Baucau, não contei? É bastante interessante o trabalho que eles fazem, mas eu só tenho de editar os textos em português. O tema não podia ser melhor- tecidos tradicionais, teares e técnicas de tecelagem e tinturaria. Talvez um dia possa ir com eles num trabalho de campo e escrever sobre isso.
      Entretanto, temos a festa de aniversário do Nicolau (como odeio fazer festas de miúdos) e amanhã, se conseguirmos, vamos festejar o 25 de Abril em casa de uns amigos. Depois, fazes tu 16 anos e pela primeira vez na nossa vida não vamos estar juntas no dia do teu aniversário. Já decidi que vou fazer um bolo na mesma e vamos cantar-te os parabéns aqui. Isto se não piorar desta alergia que me atacou assim que cheguei a Díli. A culpa é do ar condicionado mas o jet lag não ajuda nada. Aliás, estamos todos mais para lá do que para cá (esta expressão é bastante intrigante, apercebo-me agora), mas também não me admira com a viagem que fizemos: Porto-Lisboa-Istambul-Hongkong-Bali-Díli.
      Apesar de me custar sair de Portugal apercebo-me que aos poucos vamo-nos instalando, isto é, fazendo de Timor uma segunda casa. Vamos fazer mais uma mudança e tudo. Já estamos aqui há pouco mais de um ano e meio, quer dizer, estava na altura, tendo em conta o corrupio dos últimos anos. Depois, não usei a ida a Portugal para aqueles detalhes mundanos como cortar o cabelo e ir à depilação, deixei isso para fazer no regresso e toda a gente sabe que este é o tipo de coisas que nos faz sentir em casa. Acho eu.
      Na verdade já não sei nada sobre o que significa estar em casa, sobretudo depois de ir ao Bolhão, logo a seguir à nossa despedida em Campanhã, e ver aquela banca da fruta, quem entra pela Sá da Bandeira, a vender mais lichias e fruta dragão do que maçãs e pêras.

Trabalhar

27.3.17

Andar a pé em Díli é difícil. Perguntem a qualquer pessoa e todos dirão o mesmo. O calor, o pó, o trânsito e, nalguns casos, o assédio verbal desmotiva qualquer caminhante. Mas eu insisto em continuar a andar pelo meu pé, porque é uma coisa que preciso de fazer, quase como preciso de respirar. Por isso, sempre que possível, isto é, quando estou sem as crianças em casa, que apesar de poderem acompanhar-me, já que têm boas pernas para isso, vão o caminho todo a queixarem-se de tudo e mais alguma coisa, vou a pé ao supermercado. Demoro 20 minutos. 
Nesse percurso cruzo-me quase sempre com o vizinho que vende apostas numa mesa pequena e que me cumprimenta calorosamente com um: "Bom dia senhora, onde vai?" E eu respondo que vou passear, ou vou ao supermercado, ou comprar umas coisas, depende. 
No outro dia, decidi ir tomar o pequeno almoço ao da Terra que é um sítio que tem umas panquecas muito boas e um batido de kefir maravilhoso. Ao passar pelo vizinho fui cumprimentada calorosamente, como sempre, mas desta vez ele perguntou-me se ia trabalhar e eu, automaticamente, respondi que sim. 
Depois de já ter comido as minhas panquecas a simpática funcionária, pergunta-me: "Hoje não trabalha, senhora?" e eu automaticamente respondo: "Não, hoje não trabalho, estou de folga".
Fiquei bastante intrigada por nessa manhã diferentes pessoas quererem saber da minha vida profissional, mas se calhar deu-se uma daquelas coincidências de estarem os dois a aprender português e a palavra do dia ter sido "trabalhar". 
Quando me fui embora, e enquanto caminhava em direcção ao supermercado para tomar café, pus-me a pensar nas minhas respostas, e como automaticamente respondi ao que esperavam ouvir, e depois mais alguém me cumprimentou: "Bom dia, senhora professora".

O acontecimento

14.3.17
A Joss Stone veio actuar a Timor Leste e foi um acontecimento. Pelo menos para as três centenas e meia de pessoas que estiveram no Hotel Timor foi um grande acontecimento, proporcionado por dois moços que conseguiram incluir Díli na Total World Tour da banda (não há-de ser à toa que a empresa de eventos que gerem se chama No Limit).
Eu fui, claro. Não conheço quase nada do trabalho da Joss Stone, mas não ia ficar em casa quando acontece uma coisa rara destas. E gostei, achei que foi uma hora e tal muito bem passada e ainda fiquei a conhecer um bocadinho do novo projecto do Etson Caminha, que actuou no início.
Mas não é a música, nem o acontecimento em si que me traz aqui.
A certa altura a artista refere que tem muita pena por só poder estar 20 horas num país tão bonito, mas em contrapartida pode dizer que já actuou em quase todos os países do mundo. Ou pelo menos foi o que percebi.
Nessa altura pensei, a sério que há expatriados/emigrantes em todos os países do mundo? Sim, porque estes concertos não são para os locais, obviamente. Ou para todos os locais. Depois, fui confirmar por onde andou e vi, por exemplo, que no Laos o concerto foi na embaixada britânica, no Sudão numa escola internacional e no Malawi num centro de convenções.  Fiquei curiosa sobre quantas pessoas assistiram aos concertos dela por esse mundo fora (aqui os bilhetes esgotaram no mesmo dia) e pareceu-me limitado e ao mesmo tempo interessante conhecer o mundo por essa perspectiva.
Ou seja, se não puder desbravar caminhos e viver apaixonada pelo que faço, acho que podia viver como groupi da Joss Stone.

O supermercado

7.3.17

Um dia destes estava a ouvir as histórias fabulosas de um rapaz que trabalha aqui em Timor, na área da agricultura sustentável, e a pensar "meu deus, eu também quero fazer coisas assim, desbravar caminhos nunca antes desbravados, viver apaixonada pelo que faço, descobrir coisas novas sobre o Universo (nesta parte do mundo é fácil isso acontecer)", e depois fui ao supermercado.
O supermercado é o sítio onde vou mais frequentemente, não só pelas razões óbvias, mas sobretudo porque não há assim muito mais onde ir. Sim, isso mesmo. Quer dizer, há um shopping, mas não vamos falar sobre isso, e há a praia, mas como dizia no outro dia um italiano, a viver nesta parte do mundo há alguns anos, o Natal é especial, porque acontece uma vez por ano. Ou seja, quando se pode ir à praia todos os dias, a praia deixa de ser um sítio desejado.
Portanto, eu que sempre odiei supermercados agora passo a vida num. É claro que não é um supermercado qualquer (viste, Jaime, como sou tão simpática?), é o sítio onde quase toda a gente se encontra para tomar café, por exemplo, e é capaz de ser o supermercado com a melhor banda sonora do mundo.
Seja como for, depois da conversa que me pôs a pensar como seria bom desbravar caminhos nunca antes desbravados, viver apaixonada pelo que faço e descobrir coisas novas sobre o Universo fui abastecer a despensa e depois fui almoçar ameijoas e caril de camarão. Ou seja, fui à minha vidinha.
Só que o Universo é essa coisa muito engraçada e agora sempre que vou ao Páteo (Jaime, depois discutimos o preço deste post) olho para o jardim que está na foto e lembro-me da conversa com o tal rapaz, porque foi ele que fez aquilo.
Todos os dias, ou quase todos os dias, olho para aquele jardim e penso "que bom deve ser olhar para uma coisa destas e saber que fomos nós que a fizemos. Assim, tipo, fazer mesmo com as nossas mãos e que é a fazer coisas assim que ganhamos a vida".

P.S deu para perceber que o Jaime trabalha no supermercado, certo?

Bicho de estimação

23.2.17

Eu tinha uma pequena aversão a repteis que aos poucos se foi transformando numa quase relação saudável, desde que passei a viver com tekis dentro de casa.
No entanto, há um (uma?) que me anda a chatear. Eu reparei nele há uns tempo, porque ao contrário dos outros não se esconde sempre que alguém se aproxima. Antes pelo contrário, fica ali a olhar para nós, como se fossemos nós os intrusos. Nem com as duas flashadas que levou para esta fotografia ele se mexeu (será cego?).
Depois, tem um aspecto completamente diferente dos outros. É muito mais escuro e com umas patas mais parecidas com garras do que ventosas. Já andei a tentar perceber de que espécie de lagarto se trata mas não consegui.
Um dia, depois de o encontrar no meio de uns brinquedos dos miúdos, decidimos apanhá-lo e levá-lo lá para fora, só que nesse processo ele ficou sem cauda. Pois, coitadinho e tal, mas deixa lá que ela volta a crescer.
O que eu não sabia é que ia vê-la crescer, porque o bicho voltou para casa e faz questão de se pavonear por aí com a cauda em franco desenvolvimento. Outras vezes encosta-se ao lado da minha secretária e fica a fazer-me companhia como se fosse um animal de estimação.
O Jaime acha que o bicho merece o nosso respeito, no sentido de admiração. Eu acho-o feio. Um feio Almodóvar e só por isso apetece-me gostar dele, só que não consigo. Não confio nele, parece um daqueles seres capaz de tudo para ter atenção, inclusive matar outros tekis. 
Sim, estava um teki morto no chão da sala.

Florista

21.2.17

Todos os dias da semana tenho um arranjo de flores, colhidas no jardim, em cima da mesa da sala de jantar. Todos os dias é um arranjo diferente e cada um mais bonito do que o outro.
A Akita, que veio substituir a Domingas enquanto dura a licença de maternidade, devia ser florista em vez de empregada doméstica.
Todos os dias, excepto aos fins-de-semana, não consigo evitar olhar para a jarra de flores e pensar em todas as pessoas que deviam ser floristas e estão a fazer outra coisa qualquer.

Auto-retrato

13.2.17

Apetece-me deixar crescer a melena com cada vez mais brancas e ficar com uma daquelas cabeleiras mescladas que agora estão muito na moda. Só que depois apercebo-me que essas cabeleiras mesmo não sendo pintadas, exigem cuidados. Ainda por cima, os meus cabelos brancos são aqueles cabelitos que ficam no ar quando prendo o cabelo, estão a ver? (Parece que se chamam baby hair, tornando esta coisa do envelhecimento ainda mais engraçada)
Nunca nada é como imaginamos. Uma pena.

Quando falha a luz, ou quando sou a única pessoa acordada e não está a dar nada de jeito na televisão e não me apetece ler, ou jogar no telemóvel (estou viciada num jogo parecido com o Tetris), ponho-me a ver as melhores audições do Britain Got Talent no youtube e farto-me de chorar, sobretudo naquelas em que os familiares dos concorrentes não conseguem esconder o orgulho. Eu sei, tenho problemas. Também chorei no La La Land.

Já pensei várias vezes coleccionar notícias de pessoas que morrem em acidentes inusitados, como o da mulher de 29 anos que caiu de umas escadas rolantes, no World Trade Centre, em Nova Iorque, a tentar apanhar o chapéu da irmã gémea. O que é que lhe deu? Ainda por cima era treinadora de remo, como é que uma treinadora de remo se desequilibra e cai de umas escadas? A sério, se eu quisesse inventar um acidente nunca me ocorreria tal coisa.

No fim-de-semana fui à praia com os miúdos sozinha, porque o Jaime tinha de trabalhar. Sentei-me numa cadeira e avancei 50 páginas do livro, enquanto eles brincavam com outras crianças que lá estavam. De vez em quando olhava para o mar e suspirava (e perguntava-me como é que a Areia Branca se tornou uma praia tão suja nos últimos tempos) com aquela satisfação de quem tem os miúdos por ali a rir e a inventar brincadeiras, enquanto nós estamos na nossa vida.
Percebi, finalmente, porque há tanta literatura, tanto cinema e tanta arte em geral, que mostra os filhos crianças como acessórios que aparecem de vez em quando.

O livro que estou a ler é O Fim do Homem Soviético e, felizmente, é tão viciante como o Tetris, um jogo inventado na Academia Russa das Ciências (claro), em 1984. E agora fiquei a pensar se isto significa que devo voltar ao George Orwell.

Mãe à distância

3.2.17
Muita gente tem-me perguntado sobre como é estar longe da Bea. Não tenho a certeza se sei responder.
Sei que viver longe dela, não vê-la todos os dias, não saber só de olhar como lhe correu o dia, não a ouvir atropelar-se nas palavras ou nos mutismos seleccionados, é mais fácil do que a ideia de estar longe dela. Ou seja, custa-me mais pensar nisso, do que viver isso. 
Além disso, eu sabia, desde os tempos em que eles medravam na mesma proporção em que eu definhava, que este dia haveria de chegar. O dia em que saem de casa. E esse dia é estranho, doloroso, brutal mesmo, mas esse dia chega sempre, ou espera-se que chegue.
Costuma ser aos poucos, porque eles vão mas vêm passar o fim-de-semana a casa, isto é, vêm lavar a roupa e comer refeições cozinhadas. No nosso caso foi assim de repente e por isso acho que ficámos numa espécie de limbo nas semanas seguintes.
Agora, quatro meses depois, já não temos a escova dos dentes dela no quarto-de-banho e já me habituei a tirar quatro pratos do armário.
As comunicações eram difíceis no início, ela falava muito pouco connosco e quando nos queixávamos disso ela argumentava que andava aflita a mudar de vida, a fazer novos amigos, a encaixar-se numa nova rotina. O fuso horário não ajuda nada e ainda por cima eu odeio o skype. Aquilo enerva-me, os miúdos ficam histéricos a falar ao mesmo tempo, a fazer palhaçadas para impressionar a irmã, etc. Não se consegue verdadeiramente conversar assim, nem com a internet a falhar.
Preferimos usar o messenger sempre que nos apetece, e tem funcionado. Às vezes estamos as duas acordadas e ficamos a conversar, outras respondemos uma à outra com horas de diferença.
Eu sei que ela está bem, apesar de nem sempre ser fácil, mas sobre isso não posso falar, porque seria entrar na intimidade de outra pessoa.
Posso dizer que a sinto muito crescida, entusiasmada com a escola e preocupada com o futuro. Sei quase nada do seu dia-a-dia e isso deixa-me, às vezes, profundamente nostálgica, mas ela tem quase 16 anos, mesmo que vivesse aqui em casa eu acabaria por saber pouco do que se passa na vida dela. Bem, aqui em Díli, por acaso, seria difícil não saber dada a dimensão da cidade, mas que me interessava tê-la debaixo de olho e, talvez, mais controlada pelo meio envolvente se vivia infeliz?
Eu lembro-me bem de quando tinha 16 anos e de como a minha mãe e avó tinham pouca importância para mim. Era bom saber que elas existiam e estavam lá para o que fosse preciso, claro, mas os meus amigos é que eram a minha família.
Portanto, não estou à espera que sejamos o centro da vida dela, nesta fase, mas era importante estar mais perto fisicamente nem que fosse só para levar com a ingratidão da adolescência nas bentas.
Enquanto isso não acontece vou-lhe seguindo os passos com os meios que disponho: os e-mails do pai, o google maps, o facebook e por aí fora.
Ela chama-me stalker e eu não me importo.

Ventura

31.1.17

Um dia vou conhecer muitos países, uns mais superficialmente do que outros, e vou poder dizer com alguma segurança, acho eu, onde é que me senti mais feliz, ou infeliz.Vou perceber, rapidamente, que o sítio terá menos a ver com isso do que com o quê e quem levo comigo, mas vou encontrar, de certeza, países com qualquer coisa de primordial que nos faz sentir uma espécie de bem-aventurança.
O Sri Lanka é um desses países.

Sim, fui feliz no Sri Lanka, comecemos já com o chavão. Fui feliz pela razão óbvia: o reencontro com a Bea passados três meses e meio. Fiz um grande esforço para não desabar num pranto de lágrimas assim que a vi sair da porta do aeroporto. Escusado será dizer que o pranto começou muito antes disso, porque se há coisa em que sou boa é a antecipar momentos, mas estávamos num aeroporto, no terminal das chegadas, há lá sítio mais emocionante?
Ela chegou. Eu chorei. O Jaime choramingou. Os irmãos agarraram-se a ela como lapas e foram assim até ao táxi do Sr. Siri.

O Sr. Siri (o som do nome era este, apesar de não existir nenhum parecido numa lista da internet com os 100 nomes mais comuns no Sri Lanka), tinha ido buscar-nos ao hotel nessa manhã. Nós chegámos um dia antes da Bea e por isso ficámos a saber que para entrar no aeroporto é preciso pagar. Estava explicada a quantidade de pessoas na rua à espera de quem chega. Nunca tinha ido buscar uma pessoa ao aeroporto num país onde não vivo. É estranho, porque dá-nos a paradoxal sensação de sermos dali.
Ele, o Sr. Siri, tinha comprado bananas e disse que podíamos comê-las. Os meus filhos que já vão percebendo inglês agarraram-se ao cacho e começaram a devorá-las. Eu fiquei meio sem jeito com aquele comportamento esfomeado mas cruzámo-nos com o amigo sapateiro do nosso taxista, que nos acenou da bicicleta, e as bananas deixaram de ser assunto.
Combinámos que seria ele a levar-nos a Colombo e no dia seguinte telefonámos-lhe para nos levar também a Sigiriya. Fica-se quase amigo dos taxistas, dos condutores de tuk tuk, do pescador das lagostas, do cozinheiro que as preparou para nós, porque há como que uma familiaridade boa entre todos. Por exemplo, sei quantos filhos têm os cingaleses com com quem troquei mais de meia dúzia de palavras. O Sr. Siri tem quatro, três raparigas e um rapaz.

Também fui feliz no Sri Lanka porque sou sempre feliz no meio da Natureza. Deve ser uma coisa que me ficou dos tempos em que levava vacas ao posto e apanhava pinhas na bouça. E no que diz respeito à Natureza no antigo Ceilão não há como não ficar impressionada. Eu vivo numa ilha tropical, estou habituada à abundância de plantas e animais, mas como aquilo nunca tinha visto. São mais de 100 as áreas protegidas deste país e não por acaso, de certeza, a primeira reserva do Mundo foi criada aqui, no século III. Portanto, acho que só por aqui dá para se perceber a minha impressionabilidade. Depois, uma pessoa vai na estrada, ali na zona entre Dambulla e Polonnaruwa, por exemplo, e vê passar os elefantes lá ao fundo, ou abranda para para mirar um par de lagartos gigantes, Water Monitors, na berma, ou fica de boca aberta a olhar para os pássaros nas árvores, enquanto os ovos do pequeno-almoço arrefecem, ou aborrece-se com os macacos que aparecem em todo o lado.
E quando se dá o caso dessa pessoa se encontrar no meio de uma manada de elefantes, no momento em que todos os jipes do safari desligam o motor, acontece magia. Eu até gostava de explicar mas, já se sabe, a magia não se explica.

E há a viagem de comboio mais bonita do mundo. Deve ser um exagero, claro. Mas não parece. Além da viagem em si, porque para andar de comboio nem sequer é preciso um destino, como diz Paul Theroux, há o valor acrescentado da paisagem em looping (a linha faz mesmo um loop depois da estação de Demodara), da ponte com os nove arcos e dos sorrisos deles, dos meus filhos, com as cabeças de fora da janela. Não sei se podia ser noutro comboio qualquer, aquela felicidade, que não naquele a caminho de Badulla.

Ainda por cima, come-se bem no Sri Lanka, por isso as pessoas que são felizes a comer, como eu, são felizes no Sri lanka. O rice and curry é uma mistura de sabores perfeita. A parata com um café cingalês, no cume fresco de Haputale, é um milagre - transformar água e farinha num pão daqueles é como transformar água em vinho.
E depois, a cereja em cima do bolo, ao contrário da maior parte dos países asiáticos há um número bastante considerável de wine shops. Sim, é preciso descer a caves, em muitos casos, e é tudo feito com muito secretismo. Mas, quer dizer, quem é que não gosta de esperar pelo seu gangster, no meio dos caixotes de lixo, rodeada de corvos?