Cartas de Lisboa #3

22.7.17
Querida progenitora,

Estou neste momento na ribeira das naus, sentada numa mantinha a ouvir o Leyder a tocar guitarra (o Hotel Califórnia, note-se, como o nosso Paulinho gostaria) com o Alex, um alemão a fazer backpacking pela Europa porque se aborreceu da sua aldeia num belo dia de verão e apetecia-me estar a escrever à mão, mas há que ser prática e não escrever a mesma porcaria duas vezes não é? A minha vida ultimamente tem sido isto. Como sabes, as condições em casa não são ideais por isso esta comunidadezinha que se criou neste belo sítio está a saber muito bem. 
Passam-se os dias neste verão que eu tenho a certeza que será inesquecível assim, sentada na ribeira (numa zona que como o nome indica tem o rio Tejo ao lado [todos sabemos que o Douro seria preferível, mas não deixa de ser agradável] e tem um espaço com relvinha e umas quantas árvores) a conhecer pessoas novas todos os dias e a passar 12 horas por dia com pessoas que conheci neste sítio há um mesito e tal mas com quem já ganhei a confiança de quem acampou 4 dias seguidos e sabe todas as maniasinhas das pessoas desde que acorda até que se deita e mesmo enquanto dorme. 
Aqui conversamos sobre tudo e mais alguma coisa, desde as coisas mais disparatadas até às mais sérias possíveis, temos ataques de riso que duram horas, trocam-se olhares de cumplicidade, convidamos os turistas que se sentam por aqui a sentarem-se connosco e partilhamos as nossas experiências e culturas e inspiramo-nos todos uns aos outros. Também vamos a concertos de vez em quando e todos os domingos estamos no outjazz, porque não somos assim tão inúteis (ainda que seja um termo carinhoso frequentemente usado neste grupo). É indiscritivelmente lindo, e nem quero saber se indiscritivelmente existe.
E já te falei do Musa? Se já, não deve ter sido grande coisa, porque não me lembro disso. Na quarta feira dia 28, graças a uma amiga da Arroio, mas que conheci na ribeira, fui com ela e mais dois amigos dormir no acampamento. No dia seguinte juntou-se o resto do grupo, incluindo a Francisca e a Joana e mais pessoas maioritariamente da Arroio que conheci principalmente na ribeira. Não existem mesmo palavras para descrever o quão bom foi o ambiente nesses dias. Não existiam dias específicos nem sequer o resto do mundo, nós entrámos numa bolha de boa onda e felicidade que não foi perturbada por nada. Passámos os dias na praia até às 16 da tarde e depois íamos para o recinto dos concertos e passávamos lá o resto do dia a dançar ao som dos concertos e pelas 2 quando acabavam ainda íamos para a praia conversar e só aí é que íamos para as tendas. Apanhei um senhor escaldão mas acredita que valeu a pena.
Ainda por cima, daqui a menos de uma semana já estou convosco e também com a Rita, e vamos passar mais de um mês perfeito, e a seguir disso inicia-se mais um ciclo entusiasmante em vários aspetos.
Mal posso esperar por tudo, já estou a morrer de saudades de todos vocês. Como estão? Já sabes que estou super orgulhosa do teu trabalho na Abut, certo? É mesmo a tua cara.
Enfim, vou voltar para o universo da ribeira, sessões de filosofia esperam-me.
Beijinhos e até já (sabe tão bem).

Pão com passas

21.7.17
O título é emprestado da minha To do list. Lá, diz que além de pão com passas tenho de fazer umas revisões de textos, enviar uns e-mails e escrever este post, que já está nos rascunhos há uns dias com: "Foi encontrado um casal congelado e conservado nos Alpes, que desapareceu há 75 anos".
Usar o primeiro item da minha lista foi uma tentativa de desbloqueio que não faço ideia como vai resultar, porque não estou a ver qual a relação entre a notícia do casal congelado, que me fez lembrar o filme 45 Anos, e pão com passas.
Até pus no google Charlotte Rampling + raisin bread e nada. Não há qualquer ligação, aparentemente.
Como não há na compra da fruta dragão, no dia da campanha do CNRT em Díli, a não ser o facto de ter sido eu a comprá-la, de estar com ela na mão e ver passar os barcos com as bandeiras do partido do Xanana rumo a Tasitolu.
Como não há na ausência de prémio na raspadinha Futu Manu (luta do galo), logo a seguir a saber que a minha avó estava a ser operada no Hospital de S. João.
Ou o meu cão gostar de bolachas Maria, ao ponto de as enterrar cuidadosamente com o focinho, e as anonas ficarem podres antes de amadurecerem.
Quer dizer, estou eu a comprar a fruta e a ver a caravana no mar e a raspar a Futu Manu e a ouvir a minha mãe e a dar bolachas ao cão e ver as anonas pretas e daqui a pouco a fazer pão com passas. Sou eu a ligação entre isso tudo.
Uma pessoa, realmente, precisa de chegar a velha para compreender os filósofos.

P.S no filme "45 anos", o casal que está prestes a celebrar 45 anos de casamento vê a sua vida ensombrada por uma carta que dá conta do aparecimento do corpo da antiga namorada de Geoff, que morreu tragicamente ao cair numa fissura de um glaciar na Suiça, em 1962. 

Cartas de Díli #5

9.7.17
Querida Bea,

Esta carta se calhar vai ser mais curta do que as anteriores, porque estou cansada. Podia continuar a adiar escrevê-la até me sentir com mais energia, ou com as ideias mais claras, mas estou convencida que obrigar-me a manter uma periodicidade é importante.
Estou a meio de uma semana diferente, e intensa, de trabalho com o workshop de jornalismo para crianças e devo dizer que tem sido uma experiência e tanto.
Quando me perguntam como está a correr eu não sei bem o que responder, porque para mim está a ser muito interessante e frustrante ao mesmo tempo.
Primeiro, porque trabalhar com crianças, mesmo não sendo uma novidade, é sempre um desafio. E depois, é muito complicado ver todo o potencial daqueles miúdos e não saber como convencê-los a usar essas capacidades, porque nem eles sabem que as têm.
Há ali miúdos incríveis, que desenham como nunca vi, que riem como nunca vi, que choram, que se controlam, que se esforçam e lutam como sabem.
Só passaram três dias (apesar de me parecerem três semanas) mas já sei de cor quase todos os nomes, mesmo que os pronuncie incorrectamente, já consolei birras de cansaço, já pus pensos em feridas, já sanei conflitos e já dei abraços de mimo (sim, sem pedirem, imagina).
Além disso, acho que começam a ter uma ideia da estrutura de uma notícia. Não sabem escrevê-la, ainda, ou não todos, pelos menos, mas sabem o que é o título, a legenda da foto e que o texto deve responder às perguntas Quem? O Quê? Onde? Quando? e Porquê?
Não tenho a certeza se o orgulho com que me mostram os resultados é por terem concluído a tarefa pedida, ou por sentirem que aprenderam qualquer coisa. Suponho que na cabeça deles uma coisa implica a outra, mas sabemos que nem sempre é assim.
Por outro lado, os teus irmãos, que passam as manhãs no "Summer Camp" e as tardes em casa com a Domingas estão no pico da carência afectiva, tipo, ao ponto de irem para debaixo do coqueiro que é o único sítio da casa para onde não podem ir, porque nesta altura estão sempre a cair cocos.
Não te rias (sim, estou mesmo a ver-te gozar comigo), há mais casos de mortes com cocos na cabeça do que com ataques de crocodilos, lembras-te? Ainda por cima, desde que estou cá só vi um crocodilo, contra três cocos que me acordaram a meio da noite a cair no chão.
Não é que a estatística me interesse por aí além, enquanto disciplina, mas eu guardo uma lista de formas de morrer surreais e nem imaginas as coisas absurdas que acontecem.
Entretanto, a semana acabou e não te enviei a carta. Depois do terceiro dia de trabalho fiquei doente, com tosse, mas o ben-u-ron resolveu a coisa e sobrevivi à primeira semana. Agora, estou mais ou menos em pânico com a que começa amanhã.
Também já dei por mim a pensar que vou sentir a falta deles. São quase todos irritantes e maravilhosos na mesma proporção.
Enfim, é bem possível que esta experiência esteja a ser a mais intensa desde que estou em Timor, porque mexe com o meu lado mais ingénuo. Aquele que olha para estas crianças, que são o futuro deste país, e acredita que pode fazer alguma diferença com as palavras.

Existência

1.7.17
Nunca me ocorreu que se pudesse alugar (que dizer comprar) um filme de ficção científica indie no clube de vídeo (que dizer na loja de cópias manhosas de filmes) de Colmera, apesar de se encontrar de tudo no meio daqueles milhares de DVDs. Mas foi exactamente o que aconteceu e por isso ontem vimos o Bokeh.
É um filme apocalíptico diferente da maioria dos filmes que eu vi sobre o fim do mundo sem, no entanto, deixar de ser desconcertante. Mas aquilo que mais nos surpreendeu foi os miúdos ficarem a vê-lo com um interesse nunca antes demonstrado num filme de adultos.
Aliás, quando lhes dissemos que podiam ver, pensámos que iam desistir passados três minutos e meio, como é costume, só que aguentaram quase até ao fim. Desistiram na penúltima cena, com o Isaac a chorar, e fizeram-nos prometer que lhes contávamos o fim no dia seguinte.
Ao Isaac contei, ainda antes de ele adormecer, que o filme tinha sido um sonho da protagonista e que tudo tinha acabado bem (sim, menti-lhe com quantos dentes tenho) e na manhã seguinte, ainda meia a dormir, respondi ao Nicolau que sim, que as pessoas tinham aparecido todas outra vez.
Não há grandes coisas a acontecerem no filme (se virem o trailer, praticamente viram o filme), o que torna todo este interesse por parte deles ainda mais surpreendente.
É como se as grandes questões existenciais existissem ainda antes de nós.