Fazer seis anos num país tropical

29.9.15
é poder ir mergulhar na praia e lançar o papagaio novo.

Aos poucos a vida acontece

28.9.15

Já passou um mês desde a nossa chegada e não posso dizer que saiba muito sobre Dili. Para já sei que as melancias são do tamanho das toranjas e que debaixo dos braços do Cristo Rei existem ninhos de pássaros. Muitos ninhos mesmo.
Sei que há famílias timorenses que comem carne de cão e outras não. E que quando alguém morre os familiares levam comida (tipo uma vaca, um porco, uma galinha e por aí fora, conforme as possibilidades) e "festejam" ao longo de vários dias. É comum, por isso, os timorenses pedirem adiantamentos do salário para os funerais. A Ana já nos pediu o primeiro adiantamento e foi quase metade do que ganha para o funeral do tio do marido. Espero que não lhes morra muita gente nos próximos tempos.
Os miúdos da escola do outro lado da rua metem conversa comigo em inglês, perguntam-me com uma pronúncia perfeita: "What's your name?" Eu digo-lhes o meu nome e pergunto-lhes se sabem português (a língua oficial do país deles, juntamente com o tétum), dizem que não.
Em Timor não há vinho, o que existe é importado, mas há uma bebida alcoólica feita a partir da folha de palmeira, ou do milho, que é absolutamente intragável. Eu não consegui provar, porque só o cheiro ia-me matando.
Descobri que há várias formas de fazer ai-manas, um molho picante que deve ser provado com batata doce. E que há sempre um camada fina de pó (bem, a espessura depende do número de vezes que é limpo) em tudo.
Apesar de Dili ser uma cidade pequena é difícil andar a pé, por causa do calor e do pó. Estou a pensar comprar uma bicicleta, apesar de temer pela minha vida no meio deste trânsito caótico.
Gosto muito da Escola Portuguesa e os miúdos começam a gostar também. O Isaac, que faz seis anos amanhã, está a aprender a ler pelo método das 28 palavras.
Gostava de saber mais sobre os timorenses que vivem à nossa volta, mas os expatriados despertam-me a mesma curiosidade. Pelo menos com estes últimos posso conversar.
Deve haver poucos países onde uma pessoa vá ter com o Presidente da República, a meio de um jantar, para o apresentar aos nossos filhos, depois de estes terem demonstrado um interesse desmesurado por Matan Ruak. E deve haver ainda menos países em que um Presidente da República se mostre verdadeiramente entusiasmado por cumprimentar duas pequenas criaturas.
E depois, há sempre mais uma praia paradisíaca para descobrir.

Respirar debaixo de água

22.9.15

Apesar da aparente felicidade dos fotografados (bom, menos da Bea, que odeia o uniforme) isto aqui está a ser um episódio do Marco com um a gritar "Mamaaaaaaaaaaaaaaaaaaã, não quero ficar aqui" e o outro a berrar "PAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIII", como se o estivessem a levar para o matadouro. Eu a sair da escola a tentar disfarçar as lágrimas, o Jaime a engolir em seco.
No primeiro intervalo da manhã a Bea liga a dizer que estão os dois no recreio a chorar pelo pai. Eu estava à espera de algum drama quando os deixasse, mas nos intervalos?!?!
Assim que os vamos buscar o Isaac diz que quer voltar para Lisboa. Não serve de nada argumentar que em Lisboa também iria para uma escola nova.
É muito aflitivo vê-los tão nervosos.

A escola é só de manhã, das 8h00 às 13h00, mas parece que nunca mais termina. Eu ia aproveitar as manhãs para passear por Dili, caminhar à beira mar, explorar alguns mercados, mas fico a olhar para o relógio, ou para o meu pé deformado pela picada de um mosquito, ou de outro bicho qualquer. Às vezes adormeço, outras olho para o espelho, à procura de me encontrar, mas não tenho a certeza de reconhecer aquela mulher.

No fim-de-semana fizemos um churrasco na One Dollar Beach e alguém levou o equipamento de snorkeling. Experimentei durante alguns minutos e fiquei fascinada ao ouvir-me respirar debaixo de água. Sim, não havia ali peixes à vista, nem grandes corais, por isso podia virar-me para mim sem sentir que estava a falhar o alvo.
Saí do mar com a sensação de que é isso que preciso de fazer aqui, reaprender a respirar, descobrir quem sou e do que sou capaz. Mas antes (durante?) preciso de ajudar os meus rapazes.

Eu disse: Nem pensem que vamos ter outro cão

15.9.15
E, como podem ver, fui completamente levada a sério. Pelos menos consegui, mais ou menos, que não lhe chamassem Haku, uma vez que usar o nome de um personagem do Miyazaki correu mal da primeira vez. Quase me convenceram que talvez o Haku encontrasse a Chihiro, como no filme, mas achei melhor não arriscar.
Assim sendo, apresento-vos o Douro (para alguns aqui de casa Haku Douro).

De resto os dias têm passado lentamente. Parece que aqui tudo demora mais tempo a acontecer. Deve ser impressão, porque já vou no segundo cão; já conheci pessoas novas, incluindo o embaixador de um país que quero visitar; já tive um belo fim-de-semana em Liquiça; já apanhei um daqueles sustos com o Nicolau a gritar no meio do mar porque um bicho o estava a morder (saiu de lá com uma belíssima alergia, que passou pouco tempo depois); já estou demasiado morena e demasiado mordida pelos mosquitos; já temos os uniformes da escola que começa na sexta-feira e já terminei dois livros.

Deve ser impressão, dizia, até porque o tempo é uma coisa muito relativa como se sabe, e como se tem vindo a confirmar em estudos cada vez mais exaustivos, mas o facto de não ter sempre internet disponível é capaz de justificar muita dessa sensação.

O que não deixa de ser curioso é que a coisa que acontece mais depressa neste país é o nascer e o pôr-do-sol. O dia começa e acaba com uma rapidez estonteante e é muito desconcertante este desfasamento entre a lentidão que acontece no meio.

Enquanto não me encaixo

10.9.15
Ao contrário do que eu esperaria não sou melhor mãe por ter alguém a ajudar (leia-se a fazer praticamente tudo) em casa.  E apetecia-me muito desculpar-me com o calor, com as coceiras e inchaços que os mosquitos me provocam e com o não fazer ideia do que o futuro me reserva, mas olhando para mim, como se estivesse de fora, vejo uma enjoadinha de merda. É certo que dois meses em casa com eles, e em tantos contextos diferentes, não é, como se costuma dizer, pêra doce. Mesmo assim, enjoadinha de merda.
Depois, a vida em Timor não se tem revelado o “sonho” que imaginei. Primeiro, porque estou completamente entediada e a odiar-me por estar completamente entediada num país novo. A seguir, porque nos roubaram a chihiro, uma cadela timorense bebé que desapareceu no mesmo dia em que chegou aqui a casa.
Eu sempre a dizer que ter um cão é como ter um filho e fui logo ceder a deixá-la sozinha por alguns instantes no  jardim. Quem é que sai de casa e deixa um bebé sozinho? Sim, sim é um cão, já sei, e não me interessa. Passei a noite toda a chorar e a maldizer os timorenses  que se riram quando lhes fui perguntar com gestos e várias línguas misturadas se tinham visto um  cão pequeno (devia ter dito “asu ki’ik”); a maldizer Timor e as baratas do tamanho de ratos que subiam pelas valetas que eu iluminava à procura da chihiro.
É uma questão de tempo. Acabarei por encontrar o meu lugar neste sítio com tantas coisas boas e outras menos boas, até lá espero encontrar a cadela à venda numa esquina e reconhecê-la.

Somos todos um (ou estou a dar em mística)

7.9.15
Tentativa falhada de mostrar a animação na nossa rua, ao final da tarde, por oposição à calma que reina quando anoitece

Estamos aqui há pouco mais de uma semana e a Bea já tem amigos que a convidam para eventos sociais. Uma noite destas, quando ela estava em casa de uma amiga e o Jaime num jantar institucional dei por mim a pensar que não devia ter chamado "sardão medonho" ao toké que vive no jardim, já que a partir desse dia nunca mais o ouvi cantar. É claro que ele não poderia saber que lhe chamei nomes, mas um bicho tão considerado aqui em Timor é bem capaz de saber ler pensamentos, ou assim. 
Depois cheguei à conclusão que só podia estar a sofrer com a insularidade. É claro que uma semana não chega para sentir os efeitos do isolamento, mas toda a gente sabe que eu gosto de sofrer de alguma coisa. E estava nisto, e a sentir-me um bocado ourada por causa da cerveja (o que só prova que eu não sou mais eu) quando o gajo começa a cantar. Até me arrepiei. Nessa noite, aliás, fartou-se de cantar, sempre em número par, sinal de boa sorte, dizem. 
Se há uns tempos me tivessem dito que um dia viveria em Timor-Leste e que passaria serões a ouvir e a contar tokés teria achado muita piada. Agora que aqui estou acho mais piada acordar a meio da noite e perceber o absoluto silêncio que reina entre as cantorias dos galos, o ladrar dos cães e a música das muitas festas que estão sempre a acontecer. 
Quando Dili dorme ouve-se um som completamente novo para mim. É como se todos nós, animais incluídos, dormíssemos o mesmo sono. 

Nunca me tinha sentido assim

3.9.15
Não compreendo o que se passa na Europa, e não é só por causa da imagem do menino morto que deu à costa, há já algum tempo que não percebo o que se passa nesse continente (é estranho sentir-me já tão distante). Também não faço a mais pequena ideia do que se passa na Ásia, ou nos outros continentes.
Podia até ter uma opinião sobre determinados assuntos, porque já se sabe que não é preciso ter muitos conhecimentos sobre as coisas para se opinar sobre elas, mas nem isso. Bem, talvez tenha sobre o batom da Ana, a nossa empregada, mas nem acerca desse detalhe, muitíssimo interessante, saberia discorrer, creio eu.
Não sei o que me aconteceu. Estou numa espécie de hibernação mental. Nem o livro do Terzani, que terminei hoje, me tirou desta letargia.
E isto seria muito bom se eu estivesse a usufruir desta falta do que fazer, ou se esta apatia fosse a capa natural do frenesim que costuma revolver-me as entranhas perante um novo desafio, mas não é nada disso. Não se passa nada. E isso é muito estranho, quando se passa tanto.

Estamos bem

1.9.15



Estava a aterrar em Timor-Leste, depois de uma escala em Singapura desafiante (juntem jetlag + crianças pequenas com jetlag + quarto alugado no airbnb, numa casa com mais dois quartos alugados com várias camas +  apanhar um taxi, onde o taxista quase não conta, já que tudo é controlado por um "sistema"), e pensei que devia sentir alguma coisa especial ao avistar a ilha dali de cima. Pensei que era gaja para me emocionar, mas depois olhei para o Isaac, o mais entusiasta nestas coisas das descolagens e aterragens dos aviões, e vi que tinha adormecido a 30 segundos de aterrar em Timor. Era esse o sentimento certo - um certo sossego. Emocionei-me na mesma, nunca vou ser capaz de controlar sentimentos.

Depois cheguei à minha casa timorense, vi as papaias, as frangipanis, os detalhes curiosos (chamemos-lhes assim) espalhados pela casa, os timorenses que vivem à nossa volta, com as suas bancas de legumes e as campas dos mortos enterrados ao lado. Ouvi o toké que vive no jardim e os galos dos vizinhos e lembrei-me da Helena. Não deve faltar muito para o bicho que canta tão bem começar a irritar-me (conseguiram-no fotografar e aquilo é um sardão medonho), para deixar de me rir quando a água acaba e tenho de sair do banho para ligar o motor que puxa a água do poço, para abrir guerra contra a Natureza que insiste em entrar pela casa dentro, para me chatear com este mar de gente que vive à nossa volta e que acorda quando o dia nasce.

Mas, para já, estou só a stressar com a novidade de ter uma empregada em casa todos os dias. Além do lixo é o meu maior stress. Podem odiar-me à vontade.