Cartas de Díli #6

17.9.17
Querida Bea,

Como sabes não escrevo esta carta de Díli mas de Lisboa. Ia dizer a tua cidade, mas será?
Temos falado muito do acidente mas também me parece que temos, ou tenho, evitado falar de alguns aspectos desse acidente. Eu sempre achei que se alguma vez estivesse metida numa tragédia com algum dos meus filhos morreria de sofrimento, se não tivesse morrido dos ferimentos. Mas estávamos as duas no banco de trás do carro e eu simplesmente não me lembro de nada.
O neurocirurgião disse que perante um trauma o cérebro desliga e eu, que fico sempre fascinada com a forma como o nosso corpo funciona, não pude deixar de ficar agradecida, além de maravilhada.
Mas era eu ali, certo? Não era só um corpo a reagir a um trauma. E tu estavas comigo.
Sei que a partir do momento em que fiquei consciente acreditei que ia ficar tudo bem. O Jaime, não sei se me disse mas tenho quase a certeza que o pensou, considerou que esse meu optimismo só podia ser um sinal de que não estava bem, ou tão consciente quanto isso. Mas eu dou-lhe todos os descontos. Como se faz com os nossos super heróis.
Amanhã é o teu primeiro dia de escola e não imaginas como é maravilhoso estar contigo nesta altura do ano. Quer dizer, imaginas, porque é bastante óbvio, já que não consigo esconder o entusiasmo ainda que ensombrado pela perspectiva de ver os teus irmãos irem embora com o pai, para irem também eles para a escola, que fica a 14 mil quilómetros daqui.
Céus, como vou ser capaz de me despedir deles?
Isto que eu ando a dizer sobre eles ficarem connosco até esta tua nova vida ficar mais consolidada é mesmo verdade. Eles podiam fazer o primeiro trimestre em homeschooling e depois retomavam as aulas em Díli. Mas estou a complicar, eu sei, só por me sentir incapaz de estar longe deles ainda que por pouco tempo.
Podes dizer que também fiz o mesmo contigo e não foi assim tão dramático (não??), mas é fácil perceber as diferenças. Além de teres sido tu a pedir-me, já estavas noutra idade e com outra autonomia. É claro que apesar de precisares de mim por perto, a minha presença não é determinante para o teu dia-a-dia como é para eles.
Enfim, mas mudemos de assunto. Estarmos em Lisboa todos juntos, dois anos depois de termos ido embora daqui, sobretudo contigo a começar a escola, deixa-me nostálgica.
E apesar de estarmos a atravessar um momento para o complicado delicio-me com as nossas conversas, com as ameixas (que posso lavar com água da torneira!!!!!), com o preço do vinho, com o peixe, as refeições que fazemos juntos, o casaco que me aconchega e o som do jogo do Porto e os gritos de "GOOOOOOLO" que chegam da sala.
Somos muito mais isto. Não importa em que cidade estejemos a viver, desde que possamos estar juntos.
Tenho a cabeça amassada e um aperto no coração, mas sei que vai correr tudo bem (será que ainda não recuperei?).
Sabes o que podemos fazer? Acenar e sorrir. 

2 comentários:

  1. Força mulher corajosa. Que a vida vos sorria. Um abraço

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  2. "Acenar e sorrir", creio eu, é uma das falas no filme "Madagascar" :)
    Uma das falas mais lindas e significativas que alguma vez escutei no cinema, e ninguém está a falar de filmes para crianças (que até ra, é sabido, só se escreve para crianças o que um adulto pode compreender :)

    Um, dois, três, quatro, cinco abraços.
    Melhoras? Vocês já são dos melhores, os 5 :*****

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