Cenas da vida familiar

30.12.15
Cena 9

Personagens: mãe, pai e duas crianças pequenas em segundo plano
Cenário: Sala de jantar, à mesa.

Mãe, bastante enfadada: Não achas que devíamos procurar um atelier de tempos livres, ou inscrevê-los na natação, karaté, ballet, ou música?

Pai: Tu é que dizias que querias que eles tivessem tempo para fazer o que bem entendessem.

Mãe: Pois eu sei, e acho que isso é mesmo muito bom, mas ao fim e ao cabo não os vejo a fazer nada de interessante e acabam a ver mais televisão do que deveriam.

Pai: eles quase nunca param a olhar para a televisão. Põem o mesmo filme todos os dias e brincam um com o outro.

Mãe: Sim, mas quando éramos pequenos brincávamos mais ao faz de conta, acho que éramos muito mais criativos.

Pai: Eles andam agora mesmo a correr com capas de super-heróis, isso não é brincar ao faz de conta?

Mãe chama os filhos

Mãe: Vocês estão a salvar quem?

Filho mais velho: Ninguém, nós não conseguimos voar a sério.

Mãe olha para o pai: Percebes? Nós éramos mais criativos.

Pai, a sorrir: O Nicolau está sempre a fazer recortes; muitas vezes fazem de conta que são o pai e o filho; molham o chão lá de fora e fingem que estão numa piscina. A mim parece-me que não lhes falta imaginação.

Mãe: Pois, se calhar falta-me é a mim.

Filho, a correr pela casa: Corre, Nicolau, corre há um incêndio ali à frente...

Falhanço

28.12.15
De todas aquelas coisas que não fomos capazes de fazer, por esta ou aquela razão (tocar piano, dançar ballet, competir no jogos olímpicos, falar correctamente mais de três línguas), a única que me deixa profundamente triste, isto é, a sofrer da mais pura inveja, é a de não ter sido a melhor aluna a qualquer coisa, depois da escola primária. Assim como ela.
Eu sei que isso vale o que vale, mas era uma coisa que eu gostava muito de ter na gaveta lá de casa, da mesma forma que os anti-heróis guardam medalhas. 
As minhas notas excelentes do secundário, ou da universidade, seriam a prova de que eu sou muito inteligente, excepcional até, e que o falhanço da minha carreira profissional é opcional. 

Natal nos trópicos

27.12.15


Foi um Natal muito diferente e foi bom e triste ao mesmo tempo. Não tão triste como o primeiro Natal que passei depois do meu pai morrer, mas a morte tem esse carácter definitivo difícil de lidar.
Já tive outros Natais diferentes, portanto. Até mesmo antes do meu pai morrer, como aquele em que os meus pais se zangaram e decidiram comprar-nos prendas em separado, quando supostamente ainda acreditávamos no Pai Natal. Nesse ano ele trouxe-nos, além dos brinquedos que tínhamos pedido, cerejas cristalizadas, e apeteceu-me muito abraçar o meu pai natal. Não sei se ele percebeu que eu percebi.
Uma pessoa vai tendo diferentes Natais ao longo da vida, porque se casa e depois divorcia-se e depois casa-se outra vez e depois emigra. Este foi o meu primeiro Natal de emigrante que não vai a casa passar a quadra festiva e que se despede da filha no aeroporto: Boa viagem, filha, Bom Natal, até já minha querida.

Foi um Natal diferente, por estarmos longe e por sermos só quatro à mesa, com o computador por perto, mas mesmo assim fizemos questão de manter algumas referências. Comemos bacalhau cozido (que não soube ao mesmo sem couves), comprámos bolo rei num supermercado português, que por acaso é gerido por um rapaz bastante jeitoso, e eu fiz sonhos pela primeira vez na minha vida. Ficaram mais parecidos com pesadelos mas, apesar de tudo, bastante saborosos.
Depois, como os pequenos se deitaram cedo (o Pai Natal despachou-nos primeiro) pudemos ir para a rua assistir aos vários fogos de artifício, cumprimentar quem passava e ver a grande animação que é o Natal em Díli. Aliás, temos dormido bastante mal este mês, por causa da construção do presépio aqui ao lado de casa, mas podemos dizer que, depois de tantas noites de banda sonora de gosto duvidoso, valeu a pena o esforço: Está ali um presépio em tamanho real que é uma categoria!

Há presépios destes espalhados por toda a cidade. Não sei se serão tão animados (neste momento estão todos em grandes cantorias à volta do menino espalmado), mas dos que vi poucos serão tão fieis à realidade do país. Este presépio tem figuras mais escuras e não inclui pais natais, ou bonecos de neve, como alguns que vimos. O Pai Natal ainda estou como o outro, o marketing pode ser muito poderoso, mas bonecos de neve, em Díli?

É como dizia o anúncio, a tradição já não é o que era e está bem, mas a ser diferente, que seja melhor, digo eu. 

Na caixa de correio 6

23.12.15
Chegou, quase um mês depois de o ter comprado. E comprei-o para ter este prazer de abrir um embrulho de um livro que, além de me interessar, veio de longe, enviado pela ennui. Assim até já parece Natal.

Balanço: conclusões 2

21.12.15
Os trópicos alteraram-me o ciclo menstrual. Eu gostava muito de dizer isto com outras palavras (assim tipo o sangue azul na publicidade aos pensos higiénicos), porque odeio verdadeiramente a palavra menstruação e todas as derivadas, mas de facto não me ocorrem outras.
Parece que aconteceu o mesmo a várias pessoas do sexo feminino que vieram para cá viver, mas ninguém sabe qual a justificação.
Ora, como se sabe, associado ao ciclo coiso estão as hormonas e às hormonas o humor. Portanto, num dia estou feliz e contente da vida e no dia seguinte sou a criatura mais infeliz do mundo. Uma pessoa fica sem saber se ainda está na adolescência, ou a entrar na fase madura da vida (socorro!!!!!)
Sendo mais provável o segundo caso, em termos fisiológicos pelo menos, há aqui um desacerto entre entre a idade física e a emocional, mas nos tempos que correm não poderia ser de outra forma. Os 40 são os novos trinta, temos bebés quando os nossos filhos deviam estar a terminar o liceu, ou temos filhos a terminar o liceu e bebés, estamos em grande forma, somos o máximo. É uma pena as nossas células não o saberem. Ainda, pelo menos, já que estarão a guardar todas estas informações para passá-las às gerações seguintes.
Enfim, esta conversa toda serve basicamente para dizer que não sei bem o que ando a fazer com o meu tempo no meio deste trampolim emocional e entre as sessões de reiki e depilações de sobrancelhas com linha.

Balanço: Conclusões 1

19.12.15
Fui almoçar com um grupo de amigas. É um facto que nenhuma daquelas 11 pessoas é verdadeiramente minha amiga, até porque até àquele almoço só conhecia superficialmente duas delas, incluindo a que me convidou, mas mesmo assim posso dizer que fui almoçar com um grupo de amigas. Chamemos-lhe pressentimento.
Nesse almoço senti-me estranhamente tímida e ligeiramente deslocada, sem saber ao certo por que razão. Acontece a toda a gente mas naquele almoço não fazia sentido algum sentir-me assim. Era como se estivesse a mais, isto é, era como se eu já lá estivesse antes de chegar.
Explico: a rapariga* que organizou o almoço sou eu há uns anos atrás, pelo menos nos aspectos que me são dados a conhecer: gargalhadas sonoras como já não me lembro de dar; rir de si própria como sempre gostei de fazer, sobretudo em relação à forma de vestir e às desgraças da vida (como estar desempregada); questionar-se sobre a maternidade/paternidade; falar das questões transcendentes/esotéricas de uma forma tão apaixonada que faz as outras pessoas quererem acreditar no mesmo que ela.
Toda a gente saiu daquele almoço feliz. Eu saí cheia de saudades de mim.

*Pode ser interessante saberem que antes de vir para Timor levei a minha mãe a uma psiquiatra, à mesma que me ajudou em tempos. Quando ela soube que eu vinha para cá deu-me o número de telefone de uma amiga e sugeriu-me que lhe ligasse (coisa que nunca fiz, obviamente). Essa amiga é esta rapariga.

Balanço

19.12.15

Nesta altura do ano é costume fazerem-se balanços e coisas que tal. Eu ando a fazer o mesmo, mas dos últimos oito anos, ou seja, desde que a minha vida levou uma volta até esta nova reviravolta.
As árvores de Natal nas seis casas onde vivemos até agora (falta a de 2009, que foi foi igual à primeira) fazem um bom resumo das nossas voltas.
Feliz Natal.

O jantar

11.12.15

Sino improvisado na igreja de Laclúbar

Não sei se foi sempre assim comigo. Estou convencida que sim. É certo que quando recuo no tempo vejo-me sempre a subir a rua íngreme da minha infância com um guarda-chuva na mão, como se fosse um amuleto, e toda a gente sabe que não chove todos os dias.
Não sei se foi sempre assim, dizia, mas eu não tenho grandes dificuldades em tomar decisões que podem mudar radicalmente o rumo da minha vida. As grandes reviravoltas entusiasmam-me mais do que me assustam.
O que me custa mesmo são a pequenas reviravoltas do dia a dia, como a bicicleta que afinal não tenho, porque a pessoa que ia vendê-la já não se vai embora. As tardes de praia que não faço com os pequenos, porque ora está demasiado calor, ora aparecem crocodilos na costa. A quantidade de mangas, papaias e maracujás que iam passar a fazer parte da nossa alimentação e que acabam no congelador para não apodrecerem. O quilos a mais que iam desaparecer e que afinal estão todos cá e mais alguns. As refeições no pátio que nunca acontecem.
Enfim, é com as pequenas coisas que nem sempre me entendo. O que não me impede de pegar numa cana de bambu e fazer seis pauzinhos, descascar tamarindos e inventar um molho para temperar o peru, e fazer espetadas para o jantar.

Uma vida simples

9.12.15
 Alguns dos envelopes que já saíram do calendário do advento, pendurado na parede da sala



Casas típicas timorenses, a caminho de Same, depois de Laclúber

Fizemos o calendário. Optei por uma coisa simples mas entre recortar e colar 24 envelopes e depois fazer uns quantos de novo, porque se enganavam a escrever os números, a coisa revelou-se bastante trabalhosa.
Além disso, nem sempre sei o que pôr lá dentro. Supostamente estaria um papelinho com a prenda do dia (um passeio, um chocolate, uma história sobre o Natal, etc.), mas já houve dias em que foram corridos a uma nota de um dólar, moedas de 25 cêntimos e figuras recortadas.
No fim de semana que passou (que só terminou ontem, porque na segunda-feira também foi feriado aqui) estivemos fora e, portanto, hoje foi preciso inventar uns quantos papelinhos para encher os envelopes, e também foi preciso inventar uma desculpa esfarrapada para o facto de alguns deles estarem vazios.
Resumindo, o calendário do advento só não é um flop, porque eles ficam todos satisfeitos com coisas tão simples como um coração de papel.

As coisas simples, ou uma vida mais simples foi o que mais nos motivou a vir viver para aqui, mas a verdade é que temos esta tendência incrível em complicar, com calendários de advento, por exemplo.
Depois das viagens que fizemos por Timor*, disse aqui em casa que gostava de saber, na pele, como é viver numa daquelas casas típicas timorenses que vimos um pouco por todo o país. Gostava de saber como é viver sem quase nada. Suspeito que desistiria assim que estivesse com o período. Parecendo que não, a casa de banho moderna é uma belíssima invenção. Deveríamos saber quem se lembrou disso.

Seja como for, olho para aquelas casas e imagino que poderia arranjar uma forma de viver confortavelmente. Talvez com uns paneis solares para ter electricidade e uma casa de banho aceitável. O amor e uma cabana é isto, certo?
Enfim, depois desta conversa fiquei a saber que a minha família acha muito bem desde que eu vá sozinha. Talvez vá. Temporariamente.

*Os meus passeios por Timor deram um artigo na FUGAS.

Choveu

1.12.15

Choveu, finalmente, mas não tenho a certeza que tenha sido o início da época das chuvas. Deu para limpar um bocadinho o ar, pelo menos, e regar o jardim sem correr o risco de ficar sem água. Há falta de água em alguns sítio de Díli. Tivemos de cavar mais fundo no poço para conseguir encher o depósito.
Quando era pequena tinha pesadelos com poços. Agora tenho um poço. Talvez seja verdade aquilo das nossas merdas virem sempre ter connosco mais cedo, ou mais tarde e de uma forma, ou de outra. Mais vale enfrentá-las e pronto.
Espreitei para o fundo do poço e não senti nada. Não é uma metáfora, foi mesmo o que aconteceu. Se calhar é por não ser assim tão fundo quanto isso.

Ontem fomos ouvir o Tito Paris, que veio para as comemorações dos 40 anos da Declaração da Independência de Timor-Leste. O Tito Paris tem uma banda espectacular e é muito bom ouvi-lo cantar. Além disso, parece um miúdo. Deve ser o que acontece quando se vive do que se gosta. Eu ando à procura disso, mas não sei se não me prefiro assim, ligeiramente neurótica, potencialmente alcoólica, desagradavelmente cínica.

Quando ninguém acorda a horas decentes, isto é, até às 6h00 da manhã, o Douro vem lamber-me os braços para lhe ir abrir a porta.
Tornou-se um cão bastante asseado, portanto.

Estou a pensar fazer um calendário do advento, pela primeira vez na minha vida.