Aflições

23.6.18
Dei por mim num daqueles armazéns gigantes, com produtos maioritariamente da China, por causa de uma peruca para o espectáculo do fim de ano da escola e, como esperava, saí de lá com dores de cabeça e taquicardia. É uma aflição fazer compras, sobretudo em sítios assim.
Fazer compras no mercado é muito mais tolerável, porque podemos trazer"sardinhinhas" da nossa costa, pescadas no tempo certo, legumes dos produtores locais e alguma carne de animais criados ao ar livre. É claro que ver as galinhas que estarão "no ponto daqui a uma semana", no telemóvel do talhante, faz-nos engolir em seco. É um aflição pensar nisso.
Também é uma aflição ouvir a gata miar desesperada a meio da noite. O google diz que na velhice os gatos tendem a vocalizar mais quando perdem algumas capacidades cognitivas. Que ela está um bocado surda parece-me evidente.
Fui almoçar com a Bea a um dos meus restaurantes preferidos da Póvoa. Ela não gostou da comida. É tão aflitivo (por ser tão familiar) vê-la desinteressada de tudo, ou quase tudo.
Vivo numa aflição constante que tento combater com caminhadas, vinho, pranayamas, meditação, piscina e vinho (já tinha dito vinho?). E tentar que a minha aflição não aflija as pessoas à minha volta é uma aflição ainda maior.
Mas diz que chegou o Verão (ouvi na rua uma mãe a dizer a uma filha: "é só uma chuva tropical" e quase me atirei ao chão a rir às gargalhadas, depois esbofeteei-me por causa da minha pretensão), e as vantagens de viver com estações começam a escapar-me. Nem com o clima podemos contar, a não ser para nos queixarmos. Mais aflições, portanto.
E depois há que relativizar, não é? Só que eu mal saí do processo "sou a pior mãe do mundo, a pessoa mais mal sucedida à face da terra", portanto não quero voltar às comparações. Quero sentir-me felizarda pelo que tenho conseguido.
E, entre a aflição e a intemperança, tenho-o sentido muitas vezes.

Cartas da Póvoa #2

18.6.18
Querida Bea,

Terminou o ano lectivo. O mais desafiante e estranho ano lectivo de todos até ao momento. Cometeste erros, divertiste-te, superaste dificuldades, desiludiste-te e aprendeste muito (espero). Estás cada vez mais autónoma, sem dúvida, mas não vem nenhum mal ao mundo se tiveres em consideração alguns conselhos meus, pois não? Se pensares bem eu até sou uma pessoa com bom senso (espero).
Nunca duvides que tenho, temos, muito orgulho em ti e não é por seres mais ou menos arrumada que isso vai mudar.
A sério, não precisas de arrumar se isso vai contra a tua religião, ou filosofia de vida, mas como já te dissemos algumas vezes há certas práticas que ajudam a preservar os utensílios que fazem parte do dia-a-dia. Por exemplo, se o forno nunca, ou muito raramente, for limpo provavelmente terá de ir para o lixo daqui a uns tempos. Em muito menos tempo do que se for limpo de vez em quando, quero eu dizer.
E tentar que tudo aquilo que usamos dure mais tempo é uma das atitudes mais ecológicas que podemos ter. Sim, eu sei que não comes carne mais por questões éticas do que ecológicas mas umas e outras cruzam-se.
Depois, quando te digo que há mais vida para além dos amigos e de namorar, eu sei que é difícil acreditar, muito por que não há assim tanto mais, na verdade, sobretudo quando se tem 17 anos, mas há todo um percurso que precisas de trilhar para chegar onde queres, mesmo que não saibas ao certo o que fazer com a tua vida.
E também é sempre bom não esqueceres de onde vens, o que te trouxe até aqui. Mais do que o receio que tomes más decisões, que faças escolhas menos acertadas, custa-me que não escolhas a música seguinte nas nossas viagens de carro, que não sugiras o destino da próxima viagem connosco, que não peças aos teus irmãos para te deixarem em paz, que não tenhas aquelas conversas intermináveis, que eu deixava de ouvir a certa altura. É doloroso isto de deixar que vás à tua vida.
Neste teu percurso é bom que estejas a aproveitar a paisagem, a sorver todos os momentos, mas precisas de estar calçada, agasalhada para o frio e protegida do sol. Precisas de te alimentar e essas coisas que temos de ser nós, enquanto responsáveis pelo teu bem-estar, a providenciar. Mas nós não somos só os teus providenciadores, pois não? (não, pois não?)
Eu quero que tu vás até onde quiseres ir, mesmo não tendo a certeza até onde te levará essa vontade, e temendo que precises mais de mim do que eu e tu achamos que precisas, mas estou aqui para ti. Estarei sempre aqui para ti. Faz o teu caminho e fá-lo de maneira a que sintas orgulho nele.

Pelos olhos da gata

14.6.18
A Maia tem 18 anos e quatros anos depois estamos juntas, outra vez. Às vezes olho para a gata e imagino como será estar no lugar dela a olhar para mim.
Já estou a ver o filme e tudo, através de uma câmara ao nível dos olhos dela. Talvez fosse melhor ser uma curta, porque isto de estar a olhar para pés e pernas de pessoas nas suas rotinas, para mãos em teclados, vistas de janelas, gosma com pêlos a sair da boca pode tornar-se aborrecido numa longa-metragem, mas esta é uma gata muito peculiar, sabe-se lá se não tem uma forma de ver as coisas mais interessante do que a mente de uma pessoa, por mais criativa que seja.
Ela viu-me chegar a casa com três bebés em três casas diferentes. Viu-me chegar a casa depois de noitadas na Tendinha, na Casa Independente, no Bairro Alto. Chegar de viagens, de fins-de-semana. Viu-me sair para casamentos, entrevistas de emprego, festas de aniversário. Viu festas de aniversário em casa. Tantas! Viu-me correr atrás dela tresloucada pronta para a esganar. Assistiu a discussões e serões com música, serões com filmes e serões gastronómicos seguidos de manhãs esquizofrénicas.
Caramba, isto era capaz de dar um bom filme.

Mariana

9.6.18
Uma mãe e as duas filhas. Quantas vidas cabem nesta frase? Há tantas, tantas variáveis,  tantas histórias possíveis.
Mas estas são a Raquel, a Mariana e a Alexandra e a história delas é real. 
A Raquel foi mãe há 11 anos e dois anos depois descobriu que a Mariana tinha autismo. A partir daí dedicou-se a aprender tudo sobre esta perturbação do desenvolvimento e a ajudar a filha a progredir. Enfrentou muitas dificuldades  mas mesmo assim teve coragem de ter outro filho. Nasceu a Alexandra, com quem pode falar, de quem pode ouvir queixas numa linguagem comum e com quem pode ter uma relação mãe-filha mais padronizada. 
Pouco depois divorciou-se.
Há cerca de um ano descobriu que a filha mais nova, então com cinco anos, sofria de diabetes tipo I.
Uma mãe abnegada e duas filhas, uma autista e outra com diabetes tipo I.

Entretanto, e depois de uma formação integrada no programa Son-Rise*, a Mariana foi seleccionada para um Intensive Program, no Autism Centre, nos EUA. E é por essa razão que estou a contar a história destas três raparigas.
É que esta terapia/formação de cinco dias tem um custo total que ronda os 15 mil euros e a Raquel com o salário de bibliotecária não consegue comportar esta despesa sozinha. Há familiares e amigos dispostos a contribuir com o que puderem, claro, mas feitas as contas não conseguimos chegar ao valor necessário. Por isso, estamos a organizar um lanche solidário no jardim da biblioteca de Santo Tirso, onde a Raquel trabalha, no dia 30 de Junho, a partir das 14h30. 
Apareçam por lá. Seria bom saber que este blog serve para alguma coisa (além de sanita). 
Quem tiver vontade de contribuir mas não puder ir a Santo Tirso, pode fazer uma transferência para a conta** da Mariana.
A Mariana filha da Raquel, uma mãe abnegada que tem a certeza que a filha mais velha vai conseguir falar, e irmã da Alexandra que sabe que as três vão viver felizes para sempre. 

*O Son-Rise Program assume o autismo como uma perturbação de interacção social e não coloca o foco da sua intervenção no aspecto comportamental. Assume que existe sempre a capacidade de recuperação de competências sociais e de independência através do desenvolvimento de uma relação com a criança, focada na conexão intencional para que ela consiga mostrar-nos o seu mundo e a partir daí nós a convidarmos a conhecer o nosso.

** Mariana Rocha Pinto - IBAN PT50 0045 1210 4029 9083 3254 5