Substituídos pelo incaracterístico horror

16.7.20

Aquela edição de Os Pescadores foi feita pela Biblioteca Municipal Rocha Peixoto e está à venda na vinharia, desde o último Correntes D'Escritas. E aquele vinho, o Tubarão, é feito a partir das uvas das masseiras (está esgotado, antes que perguntem). Pescadores e agricultores, os poveiros que foram estragados e substituídos ''pela fealdade e pelo incaracterístico horror'', representados num livro e num vinho.
Eu achava que já tinha lido Os Pescadores, como poderia não ter lido? Mas não. Mal li as primeiras páginas soube que era a primeira vez, porque fiquei fascinada com a forma como Raul Brandão vê as pessoas e as paisagens.  
Além disso, não deixa de ser incrível como há 100 anos o escritor já descrevia uma realidade tão actual: ''Como temos o condão de estragar tudo, empobrecemos as populações da beira-mar, para enriquecer meia dúzia de felizes. Cultivar o mar é uma coisa - é o ofício de pescadores; explorar o mar é outra coisa - é o ofício de industriais''.

Posso chorar?

5.7.20
Depois da telescola, um dos grandes desafios enquanto pais tem sido gerir a histeria do Isaac com os jogos online (um deles, claro, há outros, muitos outros, como seria de esperar numa família com três filhos).
Num desses momentos em que ele está a arrancar cabelos e a chorar porque a internet não funciona, ou o telemóvel bloqueou, perguntei-lhe calmamente (sem me descabelar, ameaçar que nunca mais o deixava jogar aquele jogo, ou mandá-lo para a cama indiferente aos gritos de dor, como se o estivesse a torturar) -  Achas mesmo que chorar dessa forma resolve alguma coisa?
- (depois de longa pausa a acalmar-se para conseguir falar) Se eu morrer tu não vais chorar?
- Sabes que sim, vou chorar muito.
- E isso vai trazer-me de volta?
- Não
- E vais deixar de chorar?
- Não
- Então, posso chorar mesmo sabendo que não resolvo nada?

Uma lulik

1.7.20

Às vezes, um gesto, um som, ou qualquer outra coisa leva-me a determinados momentos do passado que julgava esquecidos. Chego a duvidar que tenham existido e penso se não serão imaginação minha. Aconteceu ontem, depois de jantar, enquanto conversava com o Jaime e rabiscava num guardanapo.
Faço isso, parece, de ir rabiscando, passando uns riscos por cima de outros, começar a ver formas e explorá-las. Foi assim que acabei a desenhar uma uma lulik no meio de uma chuva que caía na vertical, num guardanapo (deitei-o fora, por isso não posso mostrar o desenho).
Foi quando vi o desenho que regressei a 2002, ao curso de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Lá estava eu sentada na secretária a rabiscar no caderno enquanto o Joaquim Fidalgo falava, quando a minha colega do lado, uma búlgara de cabelo curto, sussurrou: ''such a nice drawing''.