Cartas de Díli #3

30.5.17
Querida Bea,

Nem imaginas como foi bom receber a tua resposta. Quer dizer, já falamos sobre isso, claro, mas parece-me importante deixar registado. Além da alegria que vem sempre com a chegada de uma carta, foi uma surpresa ver-te falar do que sentes (sim, conseguia ver-te enquanto te lia), de uma forma quase espontânea, quando sei o que te custa olhar para dentro, ou melhor, expressar esse olhar.
Menos surpreendente é ver a pessoa em que te estás a tornar e os sentimentos que essa pessoalização provocam em mim. O espanto, a alegria imensa, o medo e o amor, como quando te vi pela primeira vez. Sim, acho que estamos sempre a reamar os nossos filhos, sem deixar de os amar como da primeira vez.
À medida que ia lendo, sem conter as lagriminhas do costume, parecia que estava a ouvir o "Father and Son" do Cat Stevens (que curiosamente faz parte da banda sonora do filme que te falei na última carta). Eu a pensar: "But take you time, think a lot/Why, think of everything you've got/For you will still here tomorrow, but your dreams may not" e tu a responder: "Now there's a way and I know that I have to go away/ I know I have to go".
Escusas de casar e assentar, evidentemente (é uma música datada, apesar dos sentimentos intemporais), mas tenho de concordar que não deves ter pressa. Só que não há uma maneira certa de perceber isto quando estamos na idade de todas as urgências.
Continua a ler, lê sempre, compõe, faz coisas que te dêem prazer e que façam sentido para ti, apaixona-te, procura os bocados de Natureza na cidade (As árvores são grandes aliadas, tanto na tristeza, como na alegria) (Lembras-te dos nossos piqueniques na Estrela?), e já agora come muitos legumes e faz exercício.
Por aqui não há nada de muito novo a acontecer, mas talvez a minha visão esteja tolhida por uma tristeza ensombrada que sempre procuro combater com excessos vários e, a maior parte das vezes, desnecessários.
Ocorreu um pequeno drama, na verdade. Lembras-te daquele gato que não salvámos tentando salvar? Pois aconteceu uma coisa semelhante. O Isaac viu um lindo gatinho bebé na rua, que é onde vivem todos os animais domésticos deste país, como sabes, e quis trazê-lo para casa. Eu hesitei, sobretudo por não saber como pôr um cão a aceitar um gato na mesma casa, mas acabei por ceder convencida que ia saber resolver o problema. Pois que me enganei redondamente (que é uma coisa que raríssimas vezes acontece, como toda a gente sabe) e tive de devolver o gato à sua "casa", prometendo ao Isaac transformado em menino da lágrima que levaríamos comida todos os dias ao animal.
Acontece que o gato deve ter gostado muito de nós e entrou por baixo do portão. O resto consegues adivinhar, certo? Isto só por si já é horrível, mas nesse momento o teu irmão começou a gritar como alguém que acabou de descobrir a pior tragédia da sua vida, um filho morto num acidente, um marido levado pelo mar, aquele choro lancinante como a dor que estão a sentir. Eu nunca tinha ouvido ninguém chorar assim, e chorei também por causa do choro dele. E por causa da minha irresponsabilidade e por continuar à procura de uma moral nas leis da Natureza.
Fiquei sem conseguir encarar o Douro durante alguns dias. Ele percebeu, mas dizia-me que era um cão, que eu não podia esperar que fosse outra coisa diferente, e voltei a fazer-lhe festas.
Entretanto, as férias estão quase aí e a tua vinda a Timor quase consegue tirar-me do tolhimento. Vai ser giro voltarmos a Jaco, ao black rock (We will allways have Liquiça), a Balibó, a Same e quem sabe a Laclubar. Acho que em Agosto não apanhamos com a "chuva" de efeméridas. Sabes que depois disso fiquei a saber que esses insectos saem da terra e só voam por uns minutos, ou seja, quando eles começaram a cair no chão não foi por causa da luta heróica do Jaime, de insecticida na mão, foi mesmo porque a certa altura morrem, ou perdem as asas, não sei ao certo. Enfim, se soubéssemos disso talvez não tivéssemos vivido aquele momento Hitchcock.
Não sei como lhes chamam aqui em Timor. Vi no livro do Agualusa que em Angola são conhecidos por Salalés e que a ele, ao narrador d' O Vendedor de Passados, sempre lhe pareceram "seres sem maldade".

Os mundos

23.5.17

Há o mundo lá fora. Com os atentados terroristas. As peças de teatro. Crianças de babete. O chiar dos comboios. Migas de vinho. Velhos tristes. O frio das frinchas. Bodas de prata. Refugiados e outros desalojados. Auto-estradas. Com o futuro sempre no presente. O nevoeiro cerrado. Com os olhos nos olhos nos cafés. E o iodo que vem do mar.
Há o meu mundo. Com o som das vassouras que varrem os quintais. O pássaro que caiu do ninho. O gato que veio da rua e o cão matou. As crianças a cantarem na igreja de Motael. O medo. Sempre o medo (E se eles caem. E se eles se afogam. E se eles ficam doentes. E se eu fico doente. E tu, vais estar sempre aqui?). As papaias sumarentas. Os sorrisos forçados. Os sorrisos verdadeiros.  As crianças a aprenderem que "Ela é feita para apanhar/ Ela é boa de cuspir". E o lixo que vai para o mar.
E há o mundo das redes sociais.

Cartas de Lisboa #1

17.5.17
Mamã linda,
Como sempre, a minha vida é um filme (se isso se deve a acontecimentos ou simplesmente à minha tendência para dramatizar [primeira e última vez que me vais ver a admitir isto] é algo debatível, mas eu diria que é uma mistura pouco saudável dos dois). Há coisas muito boas, como ter finalmente encontrado OS meus amigos que ouvem os meus dramas e se riem quando é altura de rir, choram comigo quando é altura disso e têm de ser impedidos de dar murros às pessoas que me chateiam ou finalmente sentir que me enquadro mesmo no ambiente da minha escola. Há coisas pequenas também muito boas, daquelas coisas discretas que sem atenção nem se notam, como andar a descobrir tanta mais música incrível (ouve Liniker - Zero, de nada) do que o costume ou já não querer saber do que vejo ao espelho antes de sair de casa porque a maior parte dos complexos já se foram, ou até ter ganho completamente o hábito de desenhar ao ponto de ter encontrado aí mais um porto seguro (tipo como antes só tinha a música e até certo ponto a leitura). Entretanto voltei a ler, acabei ontem o The Great Gatsby (pela terceira vez), estou a meio do Guerra e Paz e estou também a reler o Persuasão (ainda me estou a habituar aos 20mil nomes diferentes do primeiro, e acho que desta vez estou a gostar ainda mais do segundo). Também comecei a ler poesia, descobri que existe mais poesia além da que aprendemos em português e da que o meu pai faz questão de recitar nas piores alturas para as pessoas mais desinteressadas por poesia de sempre e comecei mesmo a gostar muito. Até, quem diria, voltei a escrever e estou a tentar aprender uma peça de piano (das a sério e não as minhas “musiquinhas”, que já agora estão cada vez mais parecidas com música a sério). Talvez já seja óbvio a este ponto, mas arte tem sido o meu refúgio e sinceramente sem estas coisas não sobreviveria.
As saudades funcionam mais ou menos em ondas. Estão sempre lá, mas afetam-me de formas diferentes dependendo de sei lá eu o quê. Por exemplo, como vou a pé para casa todos os dias passo pela escolinha dos meninos. Às vezes isso deixa-me um sorriso na cara, uma certa nostalgia, como hoje. Outras vezes só não desato a chorar porque estou em público (e mesmo assim). Tal como as coisas boas, a falta que sinto de todos vocês tem coisas grandes e coisas pequenas. Ou seja, há o óbvio que já toda a gente sabia que se ia sentir, tipo nunca estar convosco e não termos os nossos fins de semana. Mas ninguém me avisou que eu ia ficar vulnerável quando as minhas sobrancelhas começassem a ficar nojentas porque quero que seja a minha mamã a arranja-las, nem que eu ia ouvir música fixe e pensar imediatamente “será que o jaime aprovaria?” (ou essa questão ser o que me ajuda a escolher roupa de manhã quando acordo com tempo suficiente para pensar em seja o que for), nem que eu ia estar a fazer trabalhos e sentir falta dessas lindas pestes a interromperem-me (imagine-se) porque já que vou acabar por me distrair de vez em quando ao menos que seja por dois rapazes tão lindos como os nossos.
No outro dia estava a pensar como é que eu seria quando fosse velha e depois apercebi-me de que ia ser velha e ia morrer e comecei a ter uma crise existencial e fiquei meia hora sentada no chão da casa de banho a pensar no Isaac e como eu o compreendo (isso ainda não me passou muito, por isso não vou falar mais de envelhecimentos nem nada do género).
Estou prestes a escolher a área que vou estudar nos próximos dois anos e daqui a 3 semanas as aulas acabam, mas não estou particularmente nervosa com nenhum dos dois (ahahahahahahaahahahahahahahaahahahahahahahahahahahah). Ok, pronto, não estou super segura da minha decisão (logo eu sempre tão pouco indecisa não percebo), mas acredito que é a decisão certa e se não for olha depois trata-se disso (uma crise existencial de cada vez, por favor).
Acho que já mencionei isto algumas vezes, mas preciso mesmo de sair de casa. Não consigo viver num ambiente tão tenso, muito menos sabendo que há uma solução que me trará tanta mais felicidade. Eu sinto, literalmente, o mundo à minha volta a chamar por mim. As exposições às 19 que são muito tarde para dias de escola, os concertos aos fins de semana para os quais não tenho idade (porque se no cartaz diz +13 só pode significar +20), os amigos que me ligam numa sexta à meia noite a precisar de companhia porque estão à beira de um ataque de pânico que eu não posso ajudar porque nunca na vida poderia sair a uma hora tão escandalosa. Entre tantas e tantas outras coisas. Sabes aqueles meus feelings de bruxa? Aqueles assustadores porque como raio é que eu adivinhei? Eu tenho esse feeling em relação a isto. Eu tenho a certeza que vou ser muito mas muito mais feliz. Tens noção do que é sentires-te tão pouco em casa que preferes estar na escola (com ou sem aulas, não interessa) do que no sítio onde vives?Tens.
Enfim, eu tenho um trabalho de desenho para acabar e também não posso gastar todos os assuntos numa carta, não é?
Beijinhos (para todos),
Bea

Memórias sensoriais

13.5.17
Com este clima nunca me tinha ocorrido tricotar, mas como pretendemos ir a Portugal no Natal resolvi trazer lãs e agulhas da última vez que lá estivemos.
Um dia destes estava na sala com o ar condicionado ligado (os desta casa funcionam mesmo bem) a montar e contar malhas e ouvi um camião a passar na rua. Nesse momento pensei que estava na casa da rua Maria, em Lisboa. O som lá fora, que me pareceu um eléctrico, a temperatura normal da sala e o tricot criaram esse momento, bastante confuso, devo dizer.
Mas não foi a primeira vez. Já antes, também nesta casa, estava deitada e um carro a apitar na rua fez-me acreditar que era a peixeira que costuma passar de manhã na minha aldeia.
Ficamos sempre com marcas dos sítios, parece. Estranho é as minhas memórias sensoriais não me levarem ao meu Porto.

Cartas de Díli #2

8.5.17
Querida Bea,

      Já estamos instalados na nossa casa nova. Fica perto do mar e tem um jardim muito bonito. Eu sei que o Jaime já te mostrou a casa no skype, por isso poupo-te os detalhes, menos o dos macacos. Sim, temos macacos, vi-os ontem em cima do telhado e apesar de não apreciar por aí além a espécie, não consegui deixar de ficar enternecida e quase maravilhada a olhar para os dois animaizinhos que se coçavam e nos miravam com igual interesse.
      Depois, fiquei a saber que os macacos mudaram-se para esta zona da cidade quando foram expulsos do jardim de Lecidere . Compreendo-os muito bem, é definitivamente a melhor localização para se viver em Díli.
      A casa tem um quarto de hóspedes com casa de banho e, muitas vezes, imagino que é o teu quarto. Eu sei que não gostas do calor e da lentidão dos dias em Timor mas, acho, haverias de gostar desta casa. Tem uma luz boa e um silêncio justo. Aos domingos de manhã ouvimos a missa da igreja de Motael e o Nicolau a andar de patins na sala.
      Escusado será dizer que ainda não comecei o meu plano de acordar cedo para caminhar junto ao mar, mas eu e os meus planos falhados são um clássico nesta família.
      Além da mudança de casa não aconteceu nada de muito relevante nas últimas semanas. Houve o momento da caixa de legumes da FarmPro (uma ONG que trabalha com agricultores de Ermera e faz entregas a quem subscrever o serviço) que me encheu de entusiasmo, não só por gostar do projecto mas porque é impossível não ficar radiante perante a variedade de verduras: brócolos, couve-flor, espargos, quiabos, rúcula, courgette, beringelas, etc.
      Também tivemos uma manhã fabulosa na praia do Cristo Rei. Estava maré alta e o mar tinha ondas, muitas ondas. Dá para acreditar? E imagina que chegámos a ter um bocadinho de frio quando saímos da água e tudo. Uma maravilha!
      Portanto, uma caixa de legumes e uma manhã de praia foram as coisas que me fizeram feliz por estes dias. Vamos considerar que isso é uma coisa boa, ok? Até porque a caixa de legumes também tinha ovos e morangos e, além disso, eu sou de gostar de coisas simples, como lambuzar-me de papaia e anona acabadas de colher, ver o pôr do sol na areia branca (agora que falo nisso já não vejo um há muito tempo) e estender-me a ler um livro.
      Ah, li o da Isabela Figueiredo, "A Gorda" e lembrei-me de quando a Carla nos perguntou, a mim e à Helena, se sabíamos de alguma casa para emprestar à Isabela para ela conseguir terminar o livro. Foi quando estivemos a três juntas no Porto e o Jaime teve a ideia de usar uma banheira como carrinho de rolamento, na Grande Descida de Carros Artesanais, lembras-te?
      Só mais uma coisa, vai ver o Guardiões da Galáxia 2. Acho que é impossível não gostar, mesmo sem legendas em chinês e bahasa. A banda sonora é soberba.

A casa nova

4.5.17

O tio Abel começou a podar a sebe de buganvílias. Acho que lá para Junho deve terminar. Não por causa do tamanho da sebe, que até é grande, mas porque vai podando aos bocadinhos, uns dez minutos por dia. Depois senta-se a olhar para o infinito. Aprecio-lhe sobremaneira esta forma de passar os dias. Há quem precise de fazer workshops e retiros para conseguir fazer isso, note-se. E, afinal, é muito simples: Um salário para os bens essenciais, um sítio para esticar o corpo durante a noite e tempo livre.
Pelo menos é o que parece visto de dentro da casa com cinco divisões mais a sala e a cozinha. E um closet. Não sei se o tio Abel consideraria um closet um bem essencial. 
Parece-me tudo excessivo na nova casa, menos o jardim. Não me importo nada de ter um jardim grande e frondoso, porque os jardins têm mosquitos (e muita fauna em geral) que, juntamente com o calor, são grandes aliados do anti-burguesismo. 

Ora bem

2.5.17
Mudei de casa e até aqui nada de novo, certo?
Quase certo, porque nunca antes tive um jardim assim. Ele tem:

Bananas


Limas (com muita sombra)

Carambolas

Fruta com nome desconhecido (para mim) que termina em nona (que aqui significa amante)


Outro nome desconhecido mas cujo fruto não é apreciado

Papaias

e Cocos
Ah, e o mar está logo ali, ao virar da esquina.