Acordar cedo

21.2.13
Esperamos que a escola abra e eles entram, ensonados e bem dispostos. Deixo-os a brincar sozinhos e vou apanhar o metro.
Eu costumo vir trabalhar de autocarro mas, levando-os eu à escola, tenho de fazer um percurso diferente. Vou a passos rápidos, a evitar as poças de água, a contornar os carros no passeio e sei que é demasiado cedo. É demasiado cedo para estarem na escola. É demasiado cedo para andar na rua. É quase demasiado cedo para misturar o leite com o vinho de há umas horas atrás.
Depois entro no metro e encho-me de um enternecimento inexplicável por aquela gente toda. Por estar ali com aquela gente toda, qual deus feito homem (definitivamente estive demasiado tempo em casa).
Esta espécie de elevação espiritual nas catacumbas do metro, rodeada de pessoas antipáticas, pode parecer estranha, mas este cenário, muitas vezes dantesco, faz-me sentir parte de alguma coisa. Não sei explicar. É como se toda a condição do homem se condesasse naquele espaço, naquele momento.
Encho-me de enternecimento, dizia, e apetece-me começar a dizer a todas aquelas pessoas que não sofram, que muito daquele sofrimento é completamente inútil, mas imagino que vão pensar que sou maluca e fico calada.
Depois as portas abrem-se e saímos todos da caverna, sem nunca sair da caverna.

9 comentários:

  1. Seja como for, há muito tempo que dizer a verdade é uma loucura. Estranhamente, percebo-te muito bem neste texto.
    Mas que é uma loucura, é.

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  2. O Saramago já tinha dito isso. E o Manuel da Fonseca. Chegas tarde. À constatação e à caverna da condição humana. Embora eu ache que o metro de Lisboa é mais cavernoso do que o do Porto. O do Porto, principalmente a linha de Gondomar, só cheira um bocado a choco na hora de ponta da tarde.
    E no que diz respeito à inutilidade do sofrimento, tens razão, mas este é um tema em que devemos apostar, em geral. Vendo bem, boa parte do sofrimento humano é totalmente inútil, mas nós humanos gostamos de sofrer, de contorcer corpo e espírito no sofrimento. Auto-flagelação e coroas de espinhos.
    Mas é, como digo, um tema vasto, ramificante e até um pouco cínico nas suas possibilidades. Por exemplo, posso afirmar que parte do tempo que dedicas a ler Virginia Wolf e a sofrer com o nevoeiro inglês e o seu impacto na alma humana é também perfeitamente inútil, mas tu gostas e procuras, porque de alguma maneira de encontras nessa manta húmida.
    Dou por mim muitas vezes a pensar que quase tudo o que fazemos, incluindo sofrer, é perfeitamente inútil. Vamos morrer e vamos, e até quem sabe morreremos amanhã. Passei muito tempo a decidir que opção faria face a esta inevitabilidade e decidi-me pela fórmula dos Monty Python.

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  3. Sim, Dora, é sobre a condição humana que se debruça não só a literatura, como a maior parte das expressões artísticas, mas eu não sou artista. Eu sou só uma gaja que apanha o metro, às vezes, para ir trabalhar e que aprecia a forma como a Virginia Wolf (e o Saramago, em alguns livros, como "A Caverna") descreve a tal condição humana.
    Quanto ao sofrimento nem todo é inútil. Há sofrimento muito útil, porque nos ajuda a crescer, mas há demasiado sofrimento inútil. É só isso.

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  4. oh calita como descreveste tao bem o meu sentimento de há uns tempos atrás!
    Escreves tao bem, e sinto vontade de me lembrar de mim quando escrevia quelquer coisa!
    bjinhos

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  5. Bravo !!! Simplesmente maravilhoso este texto !!! cumprimentos desde Viena !!!

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  6. Gostei muoto de ler. De certo modo tens um certo espírito artístico, sim. Mesmo que não produzas ou cries arte, digamos...
    Solidarizo-me com esse sentimento de comunhão ou de pertença a qq coisa. Tb o vivi mais ou menos assim por5 meses... Outros transportes e tal... Faz falta.

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  7. Hum hum.
    Por vezes tenho segundos de epifania em que tudo me parece tão desnecessário. E esse sentimento por toda uma comunidade que suspira.
    Era fácil, tão fácil acabar com isso... carregar no botão e de repente por exemplo todo o mundo trabalhar metade do tempo. O que isso não resolveria. Mas depois, depois viria o esperto e a ganância iria levá-lo a querer um pouco mais que os outros. E mais um pouco.

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  8. A descrição está tão bem feita que até me senti indisposta ao principio.
    Ainda bem que já não vivo em Lisboa.

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