Querido Blogger

29.10.25
Fui escrever para outro sítio na expectativa de encontrar uma aplicação mais fácil de usar, já que aqui mudaram as coisas, algumas coisas pelo menos, e não me parece que mudaram para melhor, mas pode ser de mim. Acontece que não escrevi mais, como pensei que faria e não gostei muito de me ver ali, no susbstack, porque parece que estou numa daquelas salas com múltiplas reflexões em espelhos, com várias pessoas reflectidas neles. Aqui, sou só eu a olhar para mim num daqueles espelhos para onde posso entrar. Não sei, identifico-me mais contigo, mas talvez não tenha dedicado tempo suficiente ao que me parece ser uma espécie de linkdin de artistas. 
Eu gosto de acompanhar as tendências e arriscar mudanças, mas não há mal nenhum em ficar onde nos sentimos mais confortáveis, pois não? Por isso, aqui me tens. 
No outro dia, trouxe da biblioteca uns livro de Camilo Castelo Branco, um com as memórias do cárcere e outro com as cartas dispersas, e fiquei com a sensação de estar perante um grande escritor demasiado enredado nos seus dramas pessoais, que são os mesmos que ele projecta nas suas histórias. Quer dizer, é até ridículo eu estar com estas considerações quando conheço tão pouco da obra cameliana, mas é este o pão nosso de cada dia, toda a gente a opinar sobre tudo como se fosse especialista em vários assuntos. Isto para dizer que se o Camilo regressasse do mundo dos mortos¹ ele escreveria num blogue e não no substack. Acho eu. Na verdade, decidi (re)ler Camilo, porque precisava de saber mais sobre a sua passagem pela Póvoa de Varzim, depois de ver uma exposição que lhe é dedicada no Museu Municipal. Precisar é capaz de ser uma hipérbole, uma vez que não sei quando vou dar utilidade a estas recolhas de informação, mas se sinto que tenho de fazer uma coisa faço. Outra coisa que sinto que preciso de fazer é definir a classe trabalhadora. Quem são os trabalhadores que Raquel Varela quer, e bem, defender? Somos todos os que trabalham por conta de outrém? São os que estão no fim da cadeia? O operariado? Eu realmente gostava de ver estas pessoas revoltarem-se, mas a grande maioria está demasiado cansada, desinformada e amargurada para isso. Pode até acontecer de se revoltarem (quem me dera poder assistir a isso), mas não será pelas causas mais nobres. Nunca é. Só nas histórias que contamos. 

¹ O que não é uma coisa que Camilo desconsiderasse, como se pode ler no prefácio da 5.ª edição do Amor de Perdição, em 1879: ''Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5.ª edição do Amor de perdição quasi esgotada.''

O diagnóstico

28.9.25
A minha filha foi diagnosticada com PHDA (Perturbação de Hiperatividade/Défice de Atenção) e eu pensei em várias coisas ao mesmo tempo. Primeiro, isto porque no discurso verbal temos de apresentar as ideias por uma ordem, lembrei-me da história de uma amiga que vivia em Timor (podia dizer conhecida, mas não existe isso naquela ilha) e que sofreu um acidente nos tumultos de 2006, quando levou com uma pedra no rosto. Durante algum tempo ela pensou que nunca iria conseguir abrir a boca, mais do que o suficiente para enfiar a comida e mastigar com dificuldade, sem ser submetida a uma cirurgia complexa e com uma recuperação dolorosa. A mãe sugeriu que procurassem outro especialista para ouvir outra opinião, mas o diagnóstico foi o mesmo - tem de ser operada. O seguinte disse o mesmo e, finalmente, o terceiro (ou quarto, já não me lembro quantos é que ela consultou) disse-lhe para não se preocupar, que ela ia acabar por recuperar e voltar ao normal naturalmente. Quando saíram do consultório, a mãe disse-lhe: "Estás a ver? Nunca devemos desistir, só temos de continuar a procurar um médico que nos diga o que queremos ouvir". E, realmente, ela acabou por recuperar.
A minha filha achava, há muito tempo, que tinha PHDA, depois de ter sido diagnosticada com depressão por um pedopsiquiatra para logo a seguir o diagnóstico ser retirado, assim como a medicação, pelo mesmo especialista. Mais tarde, veio o da bipolaridade por uma psiquiatra e, finalmente, o diagnóstico que ela procurava. 
A segunda coisa que pensei foi como é que não vi? Eu eduquei-a, eu passei anos da minha vida de volta dela, e durante oito anos só dela, antes de nascerem os irmãos, eu não tirei os olhos, os braços, o peito de cima dela, o que é que me escapou? Eu sei que o diagnóstico desta perturbação é raro nas crianças do sexo feminino, mas será que deveria ter ido à procura dele?
Toda a gente dizia que ela era uma criança diferente, "genial", mas para mim era uma criança normal. Era a minha menina, que chorava sempre que tinha de ir para a creche e infantário, que adorava brincar às lojas, que gostava de comer e depois deixou de gostar, que adorava o Sérgio Godinho e a Floribela. Quando foi para a primária a professora mandou-a sair da sala com o colega, porque não paravam de falar. Eles saíram e foram bater à porta de outra sala. Foi a professora que me contou, a queixar-se de ela não parar de falar e a elogiar-lhe o desenrasque. Em Lisboa, noutra escola primária, foi seleccionada para debater na Assembleia Municipal e conseguiu que a escola tivesse um novo ginásio, mas quando tinha de fazer os trabalhos de casa levantava-se e sentava-se mil vezes e não era assim tão raro cair para trás com a cadeira. Para mim era normal, tanto uma coisa, como outra. 
Já no conservatório de música a directora de turma disse-me que ela devia ir a uma psicóloga, porque achava que ela podia ser bipolar. Eu achava que ela era adolescente, mas fomos para o hospital psiquiátrico da infância e adolescência, que serviu basicamente para ela começar a interessar-se por psicologia. 
Não vi, porque apesar de tudo ela era boa aluna e uma criança feliz. Na adolescência já não me parecia tão feliz, mas quem é feliz nessa fase da vida? Depois, apesar da auto-exigência, da volatilidade dos interesses, eu acreditava que ia ficar tudo bem. Até ter deixado de ficar. 
Quando falámos sobre isso ela disse-me que tendo em conta que a doença, ou condição, tem uma forte componente genética e que o Isaac provavelmente sofre do mesmo (houve uma professora na primária que achou que ele poderia ser hiperativo), a probabilidade de eu sofrer de PHDA é considerável. Não dei grande importância a esse pormenor, porque não ando à procura de diagnósticos, por enquanto, mas no outro dia estava na biblioteca a ler as Memórias do Cárcere, de Camilo Castelo Branco, e peguei no telemóvel para procurar o realizador do filme O Quadrado, porque devo ter pensado em Estocolmo, onde queremos ir juntas, e quis confirmar se o museu era nessa cidade (é em Gutemburgo) e ocorreu-me se a catadupa de pensamentos sem ligação aparente uns com os outros seria um sintoma desta condição. 


Ser o que somos

6.9.25
Estou a ler o diário de Fernão de Magalhães e a achar tudo fascinante¹ - a descrição dos povos que vai encontrando, a linguagem técnica da rota e das embarcações, a forma meticulosa de relatar os acontecimentos e certas observações como esta: "(...) andámos a singrar o mar Pacífico no qual Deus, na sua sabedoria infinita, parece que Se esqueceu de pôr terras, ilhas e gentes para melhor proveito das criaturas que habitam neste mundo''. Mas o que mais me deixou espantada foi perceber que a maior parte do diário é sobre as intrigas da corte e as guerrilhas entre os tripulantes. 
O homem é o protagonista de uma verdadeira epopeia e não há um único relato apaixonado sobre tempestades, monstros marinhos, perigos à espreita e por aí fora. Quase de certeza encontro esses relatos nos registos de Pigaffeta (há um ou outro que aparece no livro, mais direccionado ao heroísmo de Magalhães), uma vez que os escritores são mais sensíveis aos fenómenos da Natureza, da humana e da natural por assim dizer, mas sei lá se vai continuar a apetecer-me ler sobre a circum-navegação.²
Estava a dizer que o que me deixou espantada foi o quanto o relato das intrigas, e problemas entre os seus pares e a Corte, ocupa as páginas do diário, mas se calhar não deveria espantar-me. O problema é sempre as pessoas. 
Todos os dias confronto-me com essa realidade, mas não foi sempre assim. Não sei se estou diferente,  ou se estou só a trabalhar no sítio errado. Infelizmente, ainda (!!!!!!) é com as pessoas do trabalho que se passa mais tempo.

Outro assunto completamente diferente, sem deixar de estar relacionado com eu ser uma pessoa diferente do que fui, decidi sair do grupo que escreve semanalmente (ou quando calha) sobre o mesmo tema. Estou numa fase da minha vida em que preciso de ver os resultados das minhas acções. Pode ser por causa daquilo da dopamina, não sei, mas não quero estar num projecto só porque é giro, quero estar com uma intenção, quero vê-lo crescer e florescer no meu tempo de vida, que não sei qual é, mas é sempre pouco. É verdade que muitas vezes uma semente cai em terreno fértil e cresce sem qualquer cuidado, mas por norma uma semente precisa de água e sol, às vezes sombra, para florescer e continuar a crescer. Não tenho qualquer dúvida que o Largo (o nome que decidimos dar ao colectivo) pode vir a ser um belíssimo jardim - já é um conjunto de canteiros bem bonitos, mas eu preciso de outra coisa. 
Seja como for, foi muito bom fazer parte deste projecto: escrevi textos de que gosto bastante e outros nem tanto, descobri o substack, e com ele pessoas que andam a dizer coisas muito interessantes, e percebi que quero continuar a escrever num blog quando me apetecer, sem subscritores e sem preocupações com temas. Escrever para mim. 


¹ Tenho a noção de todas as implicações das Descobertas, além do heroísmo que nos permitiu conhecer o mundo, e sei que apesar de só termos um vislumbre, neste diário, das barbáries e explorações dos povos indígenas, é evidente a convicção dos portugueses/castelhanos da sua superioridade em relação aos outros humanos. Mesmo assim continuo fascinada.

² Parece que nos apontamentos que ele escreveu, depois de ter entregado o diário que fez a bordo das naus, Trinidad na ida e Victoria na volta, ao rei D. Carlos, há uma série de textos eróticos a roçar a pornografia, pelo que talvez me apeteça ler.

Terapia

11.7.25
O que eu queria era estar numa residência artística para escrever. Quer dizer, para criar já que é isso que se faz numa residência artística, cria-se. Ora, eu podia criar galinhas, como a minha mãe faz, ou podia criar filhos, se já não estivessem criados (a que idade consideramos as crias humanas criadas?), também há muita arte nisso, mas eu queria escrever. Isto é, queria ser paga para o fazer, ou melhor, queria ver o que aconteceria se tivesse um ano sem qualquer outra obrigação que não fosse escrever.
Quase aposto que bloquearia. Ou não. Passaria muito tempo a tricotar e a caminhar, isso é certo, para arrumar ideias, que é o que se procura com a terapia, e sairia de lá com umas quantas páginas e algumas camisolas e cobertores. E aceitaria que a conjugação de uma série de factores aleatórios, incluíndo a insuficiência de talento, não me permitiu chegar onde queria.
Aceitação. É na aceitação que se encontra a redenção, não é?  Eu sempre confundi aceitação com acomodação e isso não é para mim. Não quero acomodar-me. Mas o que descobri com o tempo - é, a passagem do tempo tem as suas vantagens -, é que a aceitação pode demorar uma vida inteira, porque não podemos aceitar aquilo que não conhecemos e o auto-conhecimento é das coisas mais incómodas que podemos experienciar.
Dito assim até pareço muito entendida, mas isto é puro senso comum. As terapias que fiz ao longo da vida resumem-se a dois tratamentos para a depressão (sobretudo drogas e pouca análise), algumas experiências mais ou menos esotéricas e muita observação à minha volta.
Ainda não sei quem sou, mas estou a caminho de descobrir, espero, porque saber quem somos, no sentido Junguiano do termo, resolve a maioria dos nossos problemas, reais ou inventados, se não mesmo todos. 

Outras terapias:



Salvação

4.7.25
Desta vez achei que tinha de arriscar um haiku:

Salvação sweet
No sal da água do mar
Corri para ti

No original tinha escrito alva, em vez de sweet, mas depois fui ver O Salvado, hoje, e a Olga Roriz usa a palavra sweet relacionada com salvação, ou assim entendi, já não sei. Que beleza de espectáculo! 
Estou farta de dizer e vou continuar a insistir: A ARTE SALVA.
A certa altura ela diz: O mundo pode desabar mas a poesia salva (estou a parafrasear, porque não decorei).
Não tenho quaquer dúvida. Só a arte nos pode salvar. 

Não bebo cerveja

27.6.25

quando como sardinhas assadas, ou bacalhau cozido. Não bebo cerveja ao jantar, a não ser que vá comer uma francesinha.
Não bebo cerveja tão frequentemente como bebo vinho. E quando bebo é quase sempre Super Bock. Também bebi muita Tiger em Timor-Leste e Bintang na Indonésia. Na Tailândia bebi Singha e em Amesterdão Brouweriij'tij.
Mas não bebo cerveja, a não ser que esteja a comer tremoços numa tarde de Verão, francesinhas, como já mencionei, ou depois de uma empreitada como fazer mudanças, ou acartar entulho das obras.
Seria melhor dizer: bebo cerveja às vezes, mas não é esse o tema.
Tenho a certeza que há uma lista, algures, que incluí cerveja. 

Caramelo

20.6.25
Há filmes, ou guiões, que ficam gravados, mesmo que não nos lembremos do nome, ou dos nomes dos actores/actrizes que os protagonizam. Aconteceu-me recentemente com o Rosetta, a propósito da tábua de salvação que um emprego é para tanta, tanta gente. Vasculhei em todo o lado, isto é, no google, à procura do filme, perguntei a amigos e nada. Até que me apareceu uma notícia sobre Émilie Dequenne em Cannes e fez-se luz na minha cabeça.
Com Caramelo não foi assim. Neste caso nunca me esqueci do nome do filme, nem do salão de beleza, onde se cruzam as cinco mulheres da história, e de vez em quando lembro-me dele, sobretudo da personagem Jamale, protagonizada por Gisèle Aouad.
Jamale é uma mulher de meia idade, divorciada e modelo em part-time. Há uma entrevista, ou um casting, para participar num anúncio, ou algo do género, e na sala de espera estão umas quantas mulheres mais jovens. Então, Jamale vai ao quarto de banho sujar a saia para parecer que lhe veio o período. É dessa forma que se sente menos deslocada. 
A lista de compras que publiquei no último post começa com pensos higiénicos e confesso que pensei se me apeteceria publicá-la, quando tenho tantas espalhadas, como esta por exemplo, que está no caderno onde escrevi este post (hoje estou de folga e estava no café à espera da Helena): 
- cebolas roxas 
- queijo brie 
- massa folhada 
- iogurte grego 
- manteiga de amendoim 
- bacon fatiado (será que tenho bacon em todas?) 
- atum 
Depois pensei de onde me terá vindo o pudor, já escrevi aqui sobre pensos higiénicos e outras coisas bem mais escatológicas, sem grandes preocupações e agora penso duas vezes antes de publicar umas coisa tão banal? será da idade? 
Também não sei porque é que uma coisa tão apelativa como o caramelo me trouxe até duas actrizes que, fiquei a saber hoje, já morreram.

Outros caramelos:

Não somos iguais

13.6.25
- Pensos higiénicos/tampões
- Carne estufar 
- massa
- cenouras
- tomates
- queijo (fatiado/feta e parmasão)
- ovos
- bacon
- bacalhau esfiado
- pão
Tenho listas de compras espalhadas por todo o lado. Esta estava no bolso do casaco que vesti hoje. Se abrir um dos muitos cadernos rabiscados com assuntos variados (fichas de leitura, frases ouvidas, desabafos, contas, ideias para desenvolver mais tarde), há sempre listas de compras. Até me lembrei que podia, daqui para a frente, começar todos os textos deste blog com uma dessas listas.
Esta está tal como a escrevi, maiúsculas nos primeiros dois itens e depois tudo minúsculas. Eu embirro muito com isto, não sei como deixei passar esta incoerência na grafia. Há pessoas que não se importam nada. Não somos iguais.
Dou por mim a olhar para as pessoas - e hoje em dia cruzo-me com milhares diariamente - e a imaginar que bizarrias escondem. Muitas vezes tento imaginá-las nuas e, naturalmente, penso que tipo de sexo fazem (se é que fazem). Não faço isso sempre, deter-me nas fragilidades do ser humano, mas faço-o muitas vezes, não devo ser a única, digo eu.
Um dia destes, uma senhora entrou na loja para lhe ligarmos o wifi no telemóvel, porque queria enviar umas fotos para a família. Tinha mais de 80 anos, vinha de Madrid e estava a viajar sozinha. Era alta, roliça e muito bonita, além de uma simpatia de pessoa. Usava um vestido florido e uma bengala e só queria conversar. Pediu que lhe tirássemos uma fotografia junto aos balseiros e não parava de dizer que éramos muy amables. Quando foi à casa de banho não consegui evitar pensar como se seguraria, como levantaria o vestido e desceria as cuecas. É óbvio que fez xixi fora da sanita. É impossível não ter saído de lá com salpicos na roupa e nas sandálias. Mas vinha sorridente e simpatiquíssima. Comprou vinho do Porto, pediu desconto e perguntou se queríamos alguma das fotos que lhe tínhamos tirado. 

Mais provas de que não somos iguais:

Terra

6.6.25
A Terra é o planeta mais fixe da nossa galáxia, como se pode comprovar pelo filme dos guardiões, e é tambem o planeta com os habitantes menos fixes, se nos compararmos ao groot, por exemplo. Há outros filmes que validam esta teoria, mas agora não me estou a lembrar e, depois, somos nós os humanos que os fazemos, por isso a Terra é sempre fixe e tem sempre de ser salva. Por acaso estou a lembrar-me de um filme (não sei como se chama, acho que o Will Smith entrava, mas estou no metro a escrever no telemóvel, não vou fazer pesquisas) em que os extra terrestres aterram aqui para salvar o planeta da humanidade, mas à última da hora decidem dar-nos uma oportunidade.
Eu faria o mesmo. Eu daria sempre uma oportunidade à humanidade, porque se não acreditarmos na humanidade vamos acreditar em quem? Por falar nisso, 30 portugueses puseram-se a caminho de Gaza. Devíamos ir todos. 

Outras terrestres:

Crianças

1.6.25
Quando li a entrevista a Gabor Maté, no Público, na parte em que ele diz que todos os nossos problemas começam na infância apercebi-me daquilo que já suspeitava: eu não me lembro de mim criança. Eu não sei que criança fui. Quer dizer, faço uma ideia com base no que a minha mãe me conta, nas avaliações da professora primária e nas poucas memórias que tenho, mas não sei em que pensava, no que queria ser quando fosse grande, o que sentia pelos meus irmãos. E isto é muito estranho. 
Eu tenho a sensação que essa criança está aqui comigo, que eu sou ela, mas não consigo distanciar-me para a ver. Sei que era doente, ou era tratada como uma doente, por causa da asma. E aquilo que eu mais gostava de comer eram bananas que a minha mãe comprava e escondia da minha irmã, não sei porquê, acho que era por ela não ter problemas de apetite, como eu tinha. Mas não me lembro de comer bananas. Lembro-me do horror que foi ficar internada no hospital durante sei lá quanto tempo, por causa de uma pneumonia, que é o horror que sinto de cada vez que tenho de ir ao hospital. Lembro-me da sala de espera do especialista indicado por alguém, suponho que seria um pedopsiquiatra, com duas pacientes que se riram do meu pai, ou assim me pareceu, quando ele entrou com um compal e um bolo para mim. Lembro-me de as odiar com muita força. Lembro-me da professora primária, era muito má para quase todas as crianças, mas sinto que gostava dela, e do dia em que me disse para ir para casa, quando as minhas mãos ficaram inchadas como dois balões. A minha amiga Rosa veio comigo e quando lhe disse que não conseguia andar mais ela foi a correr chamar a minha mãe. Mas não me lembro do que sentia. Não me lembro de estar com medo, ou aflita. 
Se calhar devia resgatar essa criança, conhecê-la melhor, antes que seja tarde. Se calhar devia ser uma das minha prioridades para os próximos dez anos, porque segundo o que me disse uma cartomante num sonho, eu vou morrer aos 60 e tal anos. É óbvio que nenhum tipo de oráculo nos diz quando vamos morrer, mas nos sonhos tudo é possível e eu fiquei a pensar no que quero fazer nos anos que me restam. Parece que resgatar o meu eu criança é uma delas, mas só me apercebi disso agora. O que tinha pensado antes era que gostava de construir uma casa sustentável e auto-suficiente. Fazer algumas viagens com os meus filhos. Passar tempo com as pessoas de quem gosto e que gostam de mim. Escrever o livro mil vezes começado e nunca terminado. Fazer parte de um PÁRA TUDO até que os palestinianos tenham ajuda, até serem assinados acordos sérios para combater as alterações climáticas, até o que for mais premente resolver-se nos próximos anos. Todos juntos conseguíamos, se ninguém saísse de casa durante um, dois, três dias, sabemos bem as implicações que isso teria. 
O Bruno Nogueira e o Nuno Markl conseguem levar uma multidão até ao Celeiro para comprar stevia. Imagino que com outros congéneres por esse mundo fora conseguiriam juntar gente suficiente para fazer mossa. 
Na verdade, de todas as coisas que me proponho fazer a última é a mais fácil para quem passa 9 horas no emprego, 3 horas em deslocações e recebe o salário mínimo. Mas é melhor começar a fazer alguma coisa, não me resta assim tanto tempo. Não nos resta assim tanto tempo.