Há pessoas assim

26.11.17
Quando saímos de Lisboa, há dois anos e qualquer coisa, sei que estava, estávamos, com muita vontade de mudar de vida. Tínhamos tentado um negócio que falhou e que adiou o nosso regresso ao Porto. E depois, numa segunda oportunidade de trabalho para o Jaime, decidimos ir viver para Timor-Leste.
Mudámos de vida? Sim, claro, passámos a viver numa parte do mundo desconhecida e muito diferente. Deixámos de ter água potável, saneamento básico, queijo fresco, estações do ano, bandeiras vermelhas na praia e passámos a dividir casa com mosquitos assassinos, répteis cantores, galinhas à procura de comida (que acabavam comidas pelo nosso cão), várias espécies de formigas e a ter crocodilos na praia. Conhecemos pessoas novas, outras formas de encarar a vida e, sobretudo, vimos os nossos filhos mais novos viver a infância ideal, na nossa perspectiva: muito tempo livre, muita brincadeira sem actividades didáticas (apesar de haver oferta)  e muita natureza.
É claro que na prática mudou pouca coisa: O Jaime continuou a ser o provedor de sustento da família e eu a doméstica neurótica ainda que menos depressiva (com tanto sol e empregada doméstica não há condições para uma pessoa se lamentar).
E chegamos, cheguei, pois, a este momento de reflexão: o que mudou realmente na nossa vida?
Não estou em condições de responder condignamente neste momento, porque acabei de almoçar. Fiz um assado de domingo- um naco de vitela com batatinhas (sim cozinhei parte de um bebé, depois de me arrepiar com o sangue na embalagem enquanto temperava a carne em vinha d'alho)- para comer com a minha filha, que por sua vez teve outro convite e eu decidi manter o plano só para mim. Ou seja, comi demais e, por conseguinte, bebi mais do que a conta.

Um aparte: pode acontecer de eu publicar este post depois de o escrever (como quase todos), apesar de tentar manter-me fiel à ideia atribuída a Hemingway: escreve bêbedo e edita sóbrio.

Portanto, não estou em condições de responder o que mudou realmente na nossa vida, até porque as conclusões certamente prosaicas exigem uma reflexão bastante profunda, mas posso falar de algumas mudanças que vivencio no meu dia-a-dia.
A maior parte está relacionada com o tempo que tenho para mim. Já toda a gente leu sobre isto, sobre parar, ter tempo, respirar fundo e aproveitar o momento (para quem acha que o carpe diem é uma cena muito esotérica, pensem no momento em que vão cagar. Pensem na satisfação que é despejar os intestinos nas condições certas, sem distracções de revistas, telemóveis, ingredientes do gel de banho, etc.). Por isso, as coisas incríveis que as pessoas descobrem sobre si próprias, as transformações pessoais que relatam, não são novidade para ninguém, tem tudo a ver com simplicidade, minimalismo e tal e tal.
Então, porque é que estás a usar esse tom, Calita? perguntam vocês todos, as dezenas que estão a ler isto.
Eu explico, estou a usar este tom porque, aparentemente, estou sempre ao lado das tendências, ou à frente, é mais capaz de ser isso (abençoado vinho!).
Por exemplo, eu não descubro a pólvora quando paro para pensar (e eu paro para pensar desde que me lembro, praí desde os cinco anos). Eu descubro que consigo ficar uma tarde inteira em casa à espera que a Worten me venha entregar um micro-ondas e um aspirador, e que a partir de certa altura poderia ligar a perguntar o que se passa, mas parto do princípio que se está marcado vai acontecer e que se não for o caso é porque houve um contratempo.
E isto até poderia ser quase querido, a minha credulidade é bastante pungente, mas não é o caso. É só a constatação de que continuo a ser uma inadaptada.
O que é que mudou, então?
Mudou a circunstância da pergunta. Precisava realmente de mudar alguma, ou muita, coisa? Não, precisava de fazer as mesmas perguntas noutro sítio. Há pessoas assim.

3 comentários:

  1. «Não se vive, sobrevive-se.»
    «Até as vidas mais dilatadas e úteis não chegam para mais nada senão para aprender a viver.» Gabriel García Márquez

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  2. Há algum tempo que não visitava o blog (estou de licença de gémeos de 3 meses :) ), mas valeu mesmo a pena voltar. Adoro ler os seus textos.

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    1. Obrigada Sofia e tudo a correr bem com essa licença. Dois bébes aos mesmo tempo não é fácil! Muitas felicidades.

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