Trabalhar

27.3.17

Andar a pé em Díli é difícil. Perguntem a qualquer pessoa e todos dirão o mesmo. O calor, o pó, o trânsito e, nalguns casos, o assédio verbal desmotiva qualquer caminhante. Mas eu insisto em continuar a andar pelo meu pé, porque é uma coisa que preciso de fazer, quase como preciso de respirar. Por isso, sempre que possível, isto é, quando estou sem as crianças em casa, que apesar de poderem acompanhar-me, já que têm boas pernas para isso, vão o caminho todo a queixarem-se de tudo e mais alguma coisa, vou a pé ao supermercado. Demoro 20 minutos. 
Nesse percurso cruzo-me quase sempre com o vizinho que vende apostas numa mesa pequena e que me cumprimenta calorosamente com um: "Bom dia senhora, onde vai?" E eu respondo que vou passear, ou vou ao supermercado, ou comprar umas coisas, depende. 
No outro dia, decidi ir tomar o pequeno almoço ao da Terra que é um sítio que tem umas panquecas muito boas e um batido de kefir maravilhoso. Ao passar pelo vizinho fui cumprimentada calorosamente, como sempre, mas desta vez ele perguntou-me se ia trabalhar e eu, automaticamente, respondi que sim. 
Depois de já ter comido as minhas panquecas a simpática funcionária, pergunta-me: "Hoje não trabalha, senhora?" e eu automaticamente respondo: "Não, hoje não trabalho, estou de folga".
Fiquei bastante intrigada por nessa manhã diferentes pessoas quererem saber da minha vida profissional, mas se calhar deu-se uma daquelas coincidências de estarem os dois a aprender português e a palavra do dia ter sido "trabalhar". 
Quando me fui embora, e enquanto caminhava em direcção ao supermercado para tomar café, pus-me a pensar nas minhas respostas, e como automaticamente respondi ao que esperavam ouvir, e depois mais alguém me cumprimentou: "Bom dia, senhora professora".

O acontecimento

14.3.17
A Joss Stone veio actuar a Timor Leste e foi um acontecimento. Pelo menos para as três centenas e meia de pessoas que estiveram no Hotel Timor foi um grande acontecimento, proporcionado por dois moços que conseguiram incluir Díli na Total World Tour da banda (não há-de ser à toa que a empresa de eventos que gerem se chama No Limit).
Eu fui, claro. Não conheço quase nada do trabalho da Joss Stone, mas não ia ficar em casa quando acontece uma coisa rara destas. E gostei, achei que foi uma hora e tal muito bem passada e ainda fiquei a conhecer um bocadinho do novo projecto do Etson Caminha, que actuou no início.
Mas não é a música, nem o acontecimento em si que me traz aqui.
A certa altura a artista refere que tem muita pena por só poder estar 20 horas num país tão bonito, mas em contrapartida pode dizer que já actuou em quase todos os países do mundo. Ou pelo menos foi o que percebi.
Nessa altura pensei, a sério que há expatriados/emigrantes em todos os países do mundo? Sim, porque estes concertos não são para os locais, obviamente. Ou para todos os locais. Depois, fui confirmar por onde andou e vi, por exemplo, que no Laos o concerto foi na embaixada britânica, no Sudão numa escola internacional e no Malawi num centro de convenções.  Fiquei curiosa sobre quantas pessoas assistiram aos concertos dela por esse mundo fora (aqui os bilhetes esgotaram no mesmo dia) e pareceu-me limitado e ao mesmo tempo interessante conhecer o mundo por essa perspectiva.
Ou seja, se não puder desbravar caminhos e viver apaixonada pelo que faço, acho que podia viver como groupi da Joss Stone.

O supermercado

7.3.17

Um dia destes estava a ouvir as histórias fabulosas de um rapaz que trabalha aqui em Timor, na área da agricultura sustentável, e a pensar "meu deus, eu também quero fazer coisas assim, desbravar caminhos nunca antes desbravados, viver apaixonada pelo que faço, descobrir coisas novas sobre o Universo (nesta parte do mundo é fácil isso acontecer)", e depois fui ao supermercado.
O supermercado é o sítio onde vou mais frequentemente, não só pelas razões óbvias, mas sobretudo porque não há assim muito mais onde ir. Sim, isso mesmo. Quer dizer, há um shopping, mas não vamos falar sobre isso, e há a praia, mas como dizia no outro dia um italiano, a viver nesta parte do mundo há alguns anos, o Natal é especial, porque acontece uma vez por ano. Ou seja, quando se pode ir à praia todos os dias, a praia deixa de ser um sítio desejado.
Portanto, eu que sempre odiei supermercados agora passo a vida num. É claro que não é um supermercado qualquer (viste, Jaime, como sou tão simpática?), é o sítio onde quase toda a gente se encontra para tomar café, por exemplo, e é capaz de ser o supermercado com a melhor banda sonora do mundo.
Seja como for, depois da conversa que me pôs a pensar como seria bom desbravar caminhos nunca antes desbravados, viver apaixonada pelo que faço e descobrir coisas novas sobre o Universo fui abastecer a despensa e depois fui almoçar ameijoas e caril de camarão. Ou seja, fui à minha vidinha.
Só que o Universo é essa coisa muito engraçada e agora sempre que vou ao Páteo (Jaime, depois discutimos o preço deste post) olho para o jardim que está na foto e lembro-me da conversa com o tal rapaz, porque foi ele que fez aquilo.
Todos os dias, ou quase todos os dias, olho para aquele jardim e penso "que bom deve ser olhar para uma coisa destas e saber que fomos nós que a fizemos. Assim, tipo, fazer mesmo com as nossas mãos e que é a fazer coisas assim que ganhamos a vida".

P.S deu para perceber que o Jaime trabalha no supermercado, certo?