BRAUTIGANS

Purgatório

Já sonhei algumas vezes com o purgatório, em criança. Agora que penso nisso, tinha sonhos bem mais interessantes na infância. Se calhar devia chamar-lhes pesadelos, mas não chegavam a ser exactamente isso. Lembro-me de um em particular, uns tempos depois do meu pai morrer, devia ter 14 ou 15 anos, já não era propriamente uma criança, mas no sonho sim, era mais nova. Aparentemente decidi ir à procura do meu pai, qual Orfeu sem lira, ao mundo dos mortos e, naturalmente, passei pelo purgatório. Não encontrei vivalma e passei o tempo todo a saltar de pedra em pedra a escaldar. Era uma espécie de deserto, em que não se podia pisar a areia, e as pedras por onde podíamos atravessá-lo queimavam. Fiquei um bocado perturbada pelas almas que tinham de passar longas temporadas naquilo, a purificarem-se, mas eu estava de passagem e pareceu-me um daqueles desafios que todas as crianças fazem: atravessar a passadeira a pisar só as partes pretas, andar no passeio sem pisar os riscos, correr até um certo ponto antes de ser alcançada pelo carro azul. 
Dali passei directamente para o paraíso onde encontrei primeiro os meus avós, numa casa suspensa, com umas escadas que desciam para um pequeno terraço cheio de vasos com sardinheiras. A minha avó, a que me dava moletes com planta, estava sentada numa cadeira a sorrir para mim. Queria fazer-lhe tantas perguntas, mas era óbvio que não tinha respostas. Nem sequer sabia onde estava o meu pai, o filho dela, e isso não tinha importância nenhuma. Eu não entendia muito bem, mas era uma sensação boa estar ali. 
Continuei à procura do meu pai, a caminhar no ar, e quando me cruzei com uma obra em construção, enorme, também suspensa, de tubos de alumínio que se ligavam como estruturas moleculares, soube que ele estava ali. Era mesmo muito bonita, a construção, e nem questionei a utilidade de tal coisa no paraíso. Sei que estava muito ansiosa por vê-lo e quando o vi não era o meu pai, não o que eu conhecia, era outra pessoa, mas soube que era o meu pai, o mesmo pai.

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