BRAUTIGANS

Crianças

Quando li a entrevista a Gabor Maté, no Público, na parte em que ele diz que todos os nossos problemas começam na infância apercebi-me daquilo que já suspeitava: eu não me lembro de mim criança. Eu não sei que criança fui. Quer dizer, faço uma ideia com base no que a minha mãe me conta, nas avaliações da professora primária e nas poucas memórias que tenho, mas não sei em que pensava, no que queria ser quando fosse grande, o que sentia pelos meus irmãos. E isto é muito estranho. 
Eu tenho a sensação que essa criança está aqui comigo, que eu sou ela, mas não consigo distanciar-me para a ver. Sei que era doente, ou era tratada como uma doente, por causa da asma. E aquilo que eu mais gostava de comer eram bananas que a minha mãe comprava e escondia da minha irmã, não sei porquê, acho que era por ela não ter problemas de apetite, como eu tinha. Mas não me lembro de comer bananas. Lembro-me do horror que foi ficar internada no hospital durante sei lá quanto tempo, por causa de uma pneumonia, que é o horror que sinto de cada vez que tenho de ir ao hospital. Lembro-me da sala de espera do especialista indicado por alguém, suponho que seria um pedopsiquiatra, com duas pacientes que se riram do meu pai, ou assim me pareceu, quando ele entrou com um compal e um bolo para mim. Lembro-me de as odiar com muita força. Lembro-me da professora primária, era muito má para quase todas as crianças, mas sinto que gostava dela, e do dia em que me disse para ir para casa, quando as minhas mãos ficaram inchadas como dois balões. A minha amiga Rosa veio comigo e quando lhe disse que não conseguia andar mais ela foi a correr chamar a minha mãe. Mas não me lembro do que sentia. Não me lembro de estar com medo, ou aflita. 
Se calhar devia resgatar essa criança, conhecê-la melhor, antes que seja tarde. Se calhar devia ser uma das minha prioridades para os próximos dez anos, porque segundo o que me disse uma cartomante num sonho, eu vou morrer aos 60 e tal anos. É óbvio que nenhum tipo de oráculo nos diz quando vamos morrer, mas nos sonhos tudo é possível e eu fiquei a pensar no que quero fazer nos anos que me restam. Parece que resgatar o meu eu criança é uma delas, mas só me apercebi disso agora. O que tinha pensado antes era que gostava de construir uma casa sustentável e auto-suficiente. Fazer algumas viagens com os meus filhos. Passar tempo com as pessoas de quem gosto e que gostam de mim. Escrever o livro mil vezes começado e nunca terminado. Fazer parte de um PÁRA TUDO até que os palestinianos tenham ajuda, até serem assinados acordos sérios para combater as alterações climáticas, até o que for mais premente resolver-se nos próximos anos. Todos juntos conseguíamos, se ninguém saísse de casa durante um, dois, três dias, sabemos bem as implicações que isso teria. 
O Bruno Nogueira e o Nuno Markl conseguem levar uma multidão até ao Celeiro para comprar stevia. Imagino que com outros congéneres por esse mundo fora conseguiriam juntar gente suficiente para fazer mossa. 
Na verdade, de todas as coisas que me proponho fazer a última é a mais fácil para quem passa 9 horas no emprego, 3 horas em deslocações e recebe o salário mínimo. Mas é melhor começar a fazer alguma coisa, não me resta assim tanto tempo. Não nos resta assim tanto tempo.

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