Querida Mónica

30.11.16
Fotografia possível, com os músicos do projecto Sal de Terra. Não se vê do lado direito o músico português, Paulo Pereira.

Pedi ao Tó Zé para te retribuir o beijinho (posso tratar-te por tu, não posso?) mas depois achei que tinha de vir aqui agradecer-te publicamente.
É que isto de estar a almoçar no Hotel Timor e ser abordada pela Sara para me apresentar um dos músicos do projecto Sal de Terra, que me quer conhecer, porque a mulher dele é fã do meu blog, é uma cena espectacular. A sério, não estou a exagerar. 
Eu estou a almoçar em Díli, num hotel requintado e que não perdeu completamente (nem sei se pretende) o ambiente colonialista. Estou com os meus dois filhos e o Jaime. Estamos com pressa, porque acabamos de chegar de Balibó e o mais novo insiste que quer ir à escola. Como sempre não reparei quem estava no restaurante, não só porque não me interessa, mas também porque vejo mal ao longe e parece-se escusado estar a percorrer a sala com os olhos semicerrados. 
Chegou a minha massada de peixe cheia de coentros (que sabiam a coentros) e o tornedó do Jaime. 
Pouco depois aproxima-se a Sara com o Tó Zé e faz as apresentações e eu, além de incrédula, estava com um carrapito ridículo. Foi tudo tão isto está mesmo a acontecer? que até demorei a perceber que o Isaac estava pendurado em cima do teu marido, como se o conhecesse há anos (ias adorar esta cena, Bea!)
Na verdade, ele é mesmo muito simpático e de fácil conversa mas eu, ao contrário do Isaac, que parecia achar tudo muito natural, não conseguia sair da minha incredulidade. 
Além disso, a espectacularidade deste episódio levou-me ao concerto que os Sal de Terra deram na UNTL (Universidade Nacional de Timor-Leste), nessa tarde, e foi mesmo, mesmo muito bom. 
Obrigada. 
Ah, e agora o Isaac quer toca viola campaniça. 

Carta aberta à Comissão de Festas de Vila Verde

16.11.16
Caros Senhores Responsáveis pela Organização de Todos os Aspectos Relacionados com a Concretização do Presépio do Bairro de Vila Verde,

Eu sei que sou só a malae que vive mesmo, mesmo ao lado do presépio deste bairro e que não percebe nada dos vossos costumes, o que aliás se nota por não ter mencionado todos os nomes das pessoas envolvidas neste processo, no início desta carta, e por isso peço desde já as minhas desculpas, mas no segundo ano consecutivo do advento sinto-me no direito de perguntar se vou ter de levar com a música nestes decibéis até ao final do ano. É que, vejam bem,  estamos a meio de Novembro e viver dentro de uma discoteca durante um mês e meio é, no mínimo, surreal.
Reparem, eu acho bastante libertador expressarmo-nos musicalmente e não ter limites para isso. Acho, inclusive, piada ao karaoke que acontece frequentemente na minha rua, até às duas, quatro, seis da manhã, em qualquer dia semana (desde que não seja todas as semanas). Acho também piada às cantigas que se cantam em grupo ao lado da janela do meu quarto. Algumas são mesmo bonitas e bem cantadas. E até tolero os gritos, porque aprecio mesmo essa característica histriónica dos timorenses (menos quando se põe às voltas de minha casa com os tubos de escape das motas rotos). Mas, quer dizer, para tudo há um limite, digo eu.
Portanto, o que eu gostaria de pedir a V. Excelências, e tendo em conta que não vou dormir até 2017, ao contrário dos restantes vizinhos, acostumados a tudo isto, é se pelo menos posso sugerir músicas. É que uma coisa é não aguentar o ruído, outra coisa é sofrer com má música.

Agradecendo a atenção dispensada, subscrevo-me

Atenciosamente
Carla Fonseca

P.S Mal terminei este texto, às 22h36, a música baixou radicalmente de volume. Se for assim todos os dias da semana ignorem esta carta.

A árvore da montanha

8.11.16

Vulcão Batok, o que fica mesmo ao lado do Bromo, dentro da grande cratera Tengger

Estivemos dez dias a passear por Java e no fim pensei: Vou escrever uma crónica de viagem. Eu podia ter pensado: Acho que me apetece escrever sobre Java, e depois abria o computador e escrevia. Mas não, pensei "crónica de viagem" e logo ali fiquei sem saber o que dizer.
Por acaso não é bem assim, porque eu até sei o que queria dizer. Eu queria dizer que há muitas cebolas à volta do Bromo. Só isso. Dizia: Fui a Java e vi muitas cebolas, campos e campos de cebolas, nas redondezas de um vulcão que deita fumo. E pronto.

É claro que isto assim não seria uma crónica de viagem. As crónicas de viagem são como a canção da Árvore da Montanha que tem um lindo tronco, e esse tronco lindos ramos, e esses ramos lindas folhas, e essas folhas lindos ninhos, e esse ninhos lindos ovos, e esses ovos lindos pássaros.
E a minha crónica podia ter a decoração, com videiras de plástico e guarda-chuvas pendurados, da estação de autocarros de Kota, em Jacarta. E a seguir encadear o Tamansari (Palácio da Água) do arquitecto português que o Sultão de Yogyakarta mandou matar, no século XVIII, para manter secretos os compartimentos de prazer e, depois, discorria sobre os templos de Borobudur e Prambanan e até, quem sabe, sobre o parque infantil de Malang, provavelmente a cidade mais europeia da Indonésia. 

Ou, melhor ainda, fazia o roteiro gastronómico da coisa. Começava pelo início, isto é, por Jacarta e apresentava o Café Batavia. Seria simples, muito antes do frango com molho de limão e do mix de dimsum já estávamos rendidos ao espaço e toda a gente sabe como é simpático comer num sítio bonito. Na segunda paragem, em Yogyakarta, teria de falar da tartin de anchovas, do carpacio de vitela e do kebab de frango do Mediterraneo e depois, em Malang, e por muito que o Inggil me tenha surpreendido, aquele chef special do Melati, era de agradecer a todos os deuses hindus, a Alá, a Deus nosso senhor e por aí fora. Sim, gostamos de comer bem, sempre que possível, da mesma forma que podemos passar oito horas metidos num comboio a comer bakso duvidosos e mi gorens na beira da estrada. Não somos esquisitos.

Também podia (e já vou não sei em quantas crónicas diferentes) falar de coincidências, que é um dos meus temas preferidos.
Em Jacarta, o ponto de partida para conhecer Java, tivemos pouco tempo e o único museu que conseguimos visitar foi o de marionetas Wayang, que parece que tem uma das melhores colecções deste tipo de marionetas.
Apesar de todas as legendas estarem em indonésio foi interessante ver os incríveis detalhes de algumas delas e, além disso, os rapazes divertiram-se bastante. 
No dia seguinte, durante a longa viagem de comboio até Yogyakarta, estava a terminar o livro do Pedro Rosa Mendes, Peregrinação de Emmanuel de Jhesus, e leio uma passagem em que um bispo decide contar a guerra de Bratayuda usando marionetas Wayang. Os personagens são Sanja e Karna. Karna é meio-irmão de Arjuna e luta pelo reino de Kurawa. Sanja pelo Pandawas. Ambos morrem nesta guerra, mas isso não interessa nada, na verdade.
Eu não estava à espera de encontrar uma referência às marionetas Wayang neste livro, apesar da variedade de temas que o autor vai aflorando, desde a arquitectura timorense até à pencak silat, uma arte marcial. E nem fazia ideia que a pequena marioneta em miniatura que trouxe da loja do museu era Abimanyu, o filho de Arjuna. Pois.

Continuando, o que eu queria dizer, se ainda se lembram, era que fui a Java e vi muitas cebolas, campos e campos de cebolas, na redondezas de um vulcão que deita fumo. 
É muito impressionante o Bromo. E tem qualquer coisa de mágico, só pode, porque o meu filho mais novo nunca consegue andar com dores nos pés, e ali trepou pelo vulcão acima como se nada fosse, enquanto eu mal conseguia respirar. Ainda por cima morri de medo. Juro. A cratera tem uma vedação, mas uma pessoa que escorregue (e é muito fácil escorregar naquele piso) passa perfeitamente pelo meio, directamente para dentro do vulcão. E eu acabo de escalar as últimas escadas e que vejo? O Nicolau ali debruçado. Eu senti o coração parar. Por breves e instantes segundos, tenho a certeza, morri de medo.
É muito impressionante, mas eu estava a falar das cebolas, não era?

Portanto, já tínhamos descido os 253 degraus, mais uns poucos de metros da encosta do vulcão, mais os dois quilómetros de caminhada pelo "mar de areia", já tínhamos visto um mini tornado na cratera (o Bromo é um dos três vulcões que existem na grande cratera Tengger), e seguíamos no jipe que nos ia levar ao carro que nos ia levar a Banywangi, e eu via campos de cebolas. Via campos de cebolas e pensava nas mãos das pessoas que as plantaram. Eram mãos como as minhas, mãos que cozem arroz, que dão colo, que seguram nos filhos, que teclam nos telemóveis (64 milhões de indonésios usam o facebook), que lavam a loiça e ensaboam cabeças. E o mais fascinante nisto de viajar é isso mesmo, é perceber, como diz Pat Walsh, citando o Dictionary of Obscure Sorrows de John Koening , "que cada pessoa com quem nos cruzamos está a viver uma vida tão intensa e complexa como a nossa...preenchida com as suas próprias ambições, amigos, rotinas, preocupações e loucuras herdadas"*. 

*tradução livre